Sunday, December 20, 2009

CONTO DE NATAL

De Verão isto é diferente, aguenta-se melhor. Há dias, quando o mar está calmo, parece que estou à janela, virada para um jardim de água. É bonito, sim senhor. Gosto do cheiro da maresia, sabe? Fui cortador de carnes durante muitos anos (tenho 42, pareço mais velho, pois pareço, tenho levado muitos rombos na vida, sabe como é, elas quando não matam deixam marcas) pois, como lhe estava a dizer, fui cortador de carnes mas do que eu gosto é deste cheiro do mar, não tem comparação, fico aqui deitado a ouvir e a mastigar o ar do mar, tenho dias inteiros que não saio daqui, se o bar lá em cima está fechado porque é dia de folga ou coisa assim, nem subo, não, nesses dias não como nada, só ar do mar. Não tenho ninguém, nunca tive ninguém, as mulheres nunca gostaram de mim, só a Dona Rosa e o marido, os do bar, se não fossem eles já tinha morrido de fome. Como é que eu durmo aqui? Ora como é que durmo... durmo assim meio deitado meio sentado, assim, está a ver? Entro, sou baixo entro sem problemas, o meu amigo, que é mais alto poderia ter mais dificuldade, eu não, entro, e isto tem mais ou menos de comprimento o que eu tenho de altura, sento-me assim, depois encosto-me para trás, e pronto, cá estou. É assim que eu durmo ou ouço o mar. Não dá para fazer outra coisa. Quando o dia está bom, saio, ando por aí pelas rochas, meto conversa com ou com outro pescador, nenhum deles sabe que eu vivo ali na gruta do inferno. Só um é que sabe, esse também me dá de comer sempre que por aí aparece. É bom homem. Casa? Nunca tive casa. Antes de vir para aqui pernoitava debaixo de um viaduto ali para os lados de Algés. Mas não se aguentava. Inferno por inferno prefiro este, na gruta, aqui mesmo na boca do inferno. Aqui estou sòzinho, pois estou, mas não estranho, habituei-me, sabe como é, a gente desaparece e fica aqui à espera que o menino Jesus nos leve. Agora, no Inverno é que isto custa. Há alturas em que as vagas sobem e descem sem descanso, e não saio, não dá para sair, posso estar dois, três dias seguidos sem poder sair. Nesses dias não como nada, claro. As pessoas estão lá em cima, eu estou cá em baixo, e nem eu posso ir lá acima nem elas podem vir cá abaixo, mesmo que quisessem, e não querem porque isto aqui cheira mal. Não dá. Hoje está um dia de Sol mas amanhã, já ouvi dizer, vai chover todo o dia. Que é que posso fazer? Aguentar. Venho para aqui e deixo-me ficar deitado à espera. À espera de quê? Ora à espera de quê, à espera que volte o Sol, não espero por mais nada, não posso esperar por mais nada. Pelo Sol e por umas buchas da Dona Rosa. Não fosse a Dona Rosa um anjo e eu já tinha ido para os anjinhos. Aquele pescador de que lhe falei também é amigo. Sabe, deu-me um telemóvel. He!he!he!, está ver? E telefona-me. Telefona-me sobretudo quando o mar está bravo e ele sabe que eu não posso sair daqui. Para quê? Ora para quê, para saber se ainda estou vivo. Sou cliente da Vodafone, está a ver? Oferta do Pai Natal. Chegou aí com o telemóvel e disse-me: Toma, é para ti, oferta do Pai Natal. Já não posso dizer que não tenho nada, não é?

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