Saturday, July 23, 2011

SE O PORCO GOSTA

A propósito do "escândalo das escutas" que levou Murdoch a tribunal e está a abalar o seu império, Rui Ramos defende hoje no Expresso ( A democracia tablóide) que, pelo perverso status atingido pelo magnata que decidia eleições, tinha polícia por sua conta e abolira o direito à privacidade, Murdoch será tão culpado quanto a culpa do endividamento é dos bancos e a dos tabagistas dos fabricantes de cigarros. A democracia, no Ocidente, é também isto: o sistema pela qual passa a responsabilidade a quem nos dá o que pedimos.  

Colocada a questão nestes termos afigura-se que, se R Ramos fosse chamado a julgar Murdoch, o absolveria e mandaria em paz. Afinal de contas, Murdoch, que foi requestado por todos os políticos britânicos desde Thatcher a Gordon Brown, limitou-se a explorar o maior mito da democracia ocidental nas últimas décadas: o de que o respeito e reserva servem apenas para encobrir a corrupção e a malevolência de um "establishment" que precisa de ser devassado e exposto, se necessário for ilegalmente, para que haja democracia.

Intencionalmente ou não, Ramos cruza dois planos que, obviamente, requerem abordagens distintas: o da transferência da culpa e o da transparência democrática. Quanto ao primeiro, aos exemplos dados por Ramos podem opor-se outros menos digeríveis mesmo para um liberal de sete costados. Se Ramos absolve os fabricantes de cigarros também absolve os produtores e os traficantes de droga? Se Ramos absolve os bancos pelo crédito concedido, também absolve todos quantos, sem calcular riscos, vendem o que têm para vender sem cuidar da capacidade para pagar de quem lhes compra? Ramos sabe que não é assim. Ramos sabe que os custos dos riscos desmedidos dos bancos são pagos pelos contribuintes.

Quanto ao segundo, o da transparência democrática, ela sustenta-se do princípio primordial da democracia: a liberdade de expressão, que não deveria, também neste caso, ser sonegada por Ramos. Ao omitir esse factor fundamental, Ramos condena a democracia de tablóide (que eu também condeno) endossando a responsabilidade da sua existência para a avidez dos leitores, telespectadores e radio ouvintes, por escândalos de qualquer espécie. Uma conclusão que leva, subliminarmente pelo menos, à condenação da democracia. Até porque, segundo os pressupostos utilizados, o respeito e a reserva serão atributos contrários à vivificação democrática no Ocidente (porquê no Ocidente? Ramos não diz).

Tudo isto porque Ramos também esquece nesta sua análise da existência de um pilar essencial da democracia: a Justiça. É a ausência ou o adormecimento desta que está na origem do enorme entorse democrático que Ramos observa. Um estado democrático é, indissociavelmente, um estado de direito. O abuso da liberdade deve, enquanto abuso, ser condenado nos termos da lei, mas não poderá nunca justificar uma abusiva limitação dela. 

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