2024, Julho
Filho do Presidente tentou meter mais ‘cunhas’ além do caso das gémeas.
1964, Março
Numa dessas manhãs de sol frio, o capitão C. fez a apologia da cultura da cunha como demonstração de mérito, depois da preparação do primeiro cigarro da manhã, um cerimonial matinal, que envolvia o manuseamento delicado da cigarreira dourada, do isqueiro Dupont, da boquilha preta rematada a ouro, computado por alguns mais dados à estatística, em trinta movimentos simples e demorados.
"A cunha, meus
senhores é um atributo de triplo mérito: de quem a mete, de quem
intercede e de quem a concretiza".
"Porquê?"
E passava a explicar antes que alguém discordasse.
"Só a mete quem tem acesso junto de quem intercede. Só é procurado
para esse fim quem tem, ou é julgado ter, o que dá no mesmo, mérito
suficiente para fazer com que o objectivo pretendido seja atingido. O
mérito de quem a mete só é menos óbvio para quem não fez uma raciocínio lateral
do assunto. Quem é que mete cunhas? Obviamente quem está suficientemente bem
relacionado para poder chegar até quem esteja disponível para as accionar.
Quanto mais intenso for esse relacionamento e mais elevado o nível a que ele se
realiza, maiores são as oportunidades de sucesso e maiores os seus resultados.
A cunha, senhores cadetes, só está ao alcance dos melhores. Alguém tem dúvidas?"
Ocorreu-te, e certamente à maioria do pelotão,
que o capitão estaria a advogar em causa própria: dos três instrutores
destacados para a formação dos cadetes, dois tinham sido chamados para funções em África, sobrara o C., sem se perceber porquê.
Mas, ninguém contestou o capitão que,
aparentemente desiludido com a falta de competitividade dos cadetes em assunto
tão controverso e provocatório, aguardou uns largos instantes interpelando com
o olhar o silêncio de cada cadete e já se dispunha avançar para aquilo a
que chamava aula prática de psicologia social, decidiste, pela primeira vez,
questionar um oficial.
Com sua licença, meu capitão, não entendi o
argumento do raciocínio lateral …
"Qual é a dúvida?"
Raciocínio lateral, porquê, meu capitão?
"Bom, raciocínio lateral porque … Qual é o seu
nome, senhor cadete?"
Rodrigo Fonseca.
"Hum! Rodrigo da Fonseca … Rodrigo da Fonseca …
Recordo-me de um Rodrigo da Fonseca …"
É nome de rua, meu capitão.
"Então é isso. É da família?"
Não, não, de todo.
"Mas estava a dizer que não concordava com …"
Não percebi o raciocínio lateral para explicar o
mérito dos que metem cunhas.
"E porquê?"
Se um rapaz, em idade de ser inspecionado para
incorporação militar, for de família bem relacionada a ponto de poder
interceder no resultado da inspecção médica e isentar o jovem da prestação de
serviço militar obrigatório, há mérito na cunha que sustentou a isenção?
"É uma boa questão, senhor cadete, é, sem dúvida
alguma, uma boa questão: há mérito de quem conseguiu atingir o objectivo,
livrar o rapaz, mas não há mérito no objectivo que é, neste caso, o cumprimento
de um dever cívico; há muitos casos desses, senhor cadete".
Se o meu capitão me permite uma opinião sobre o
assunto, considero que as cunhas transitam em constelações de amizades ou
interesses mútuos, alguns promíscuos, sempre centrados em poderes de decisão mas
nunca gravitam à volta do mérito. Onde há mérito não há cunha, o que acontece
frequentemente é o mérito ser preterido pela cunha e com isso se subdesenvolver
o país.
O capitão ouviu de olhos semicerrados, sugou da
boquilha e soltou espirais de novelos de fumo, uma habilidade que exibia com ar
blasé, e, depois de instantes de expectativa do pelotão,
"Hum! E, já agora, as constelações em galáxias,
não?"
Exactamente. É isso que eu penso meu capitão.
"O nosso cadete é astrónomo?"
Estudo farmácia, meu capitão.
"Então onde é que leu essa teoria das
constelações das cunhas, pode saber-se?"
Em parte alguma. Decorre da minha observação da
sociedade.
"E essa sua teoria aplica-se apenas à parte da
sociedade mais instruída ou também à mais ignorante?"
É transversal. Até alguns impedidos metem cunhas
e não me parece que seja por uma questão de mérito mas por estarem próximos de
quem pode interceder a favor de alguém, amigo ou irmão, do impedido.
"Mas se não é por mérito como explica que se
coloquem os impedidos junto de quem decide ou intercede? Por sorte?"
Penso que sim, por sorte.
"O senhor cadete é um fatalista."
Não, senhor capitão. Ninguém nasce para ser
impedido, simplesmente as circunstâncias, que são voláteis, colocaram-no como
impedido.
"Para sempre?
Há quem nunca passe de impedido e não se dê mal
com isso.
"Muito bem. Alguém quer contraditar?"
Ninguém quis.
O pelotão tinha estado divertido com aquele bate papo, passámos a outro
divertimento, à aula prática de todas as matérias, igual todos os dias.
Desempenhava-se no campo pelado de futebol, onze contra onze, como é das
regras, os que sobravam, e seriam outros tantos em cada pelotão, jogavam a
deitar a bola para fora do campo.
Segundo C. aquela era uma técnica muito pessoal
para avaliar o comportamento em grupo dos senhores cadetes. Quando chegámos ao
termo do ciclo de especialidade, era fim de Março, ninguém tinha a
mínima noção da razão daquele tempo perdido e muito menos do que viria a
seguir-se. No penúltimo dia, fomos convocados para uma formação na parada, ia
falar-nos o comandante do curso, o major R.
Chuviscava.
Era a primeira vez que o R. nos aparecia pela
frente, constava que tinha casado com uma herdeira rica, imitava o porte empertigado de um oficial de cavalaria, de uniforme número um e pingalim a
bater cadenciado nas botas altas.
...
Discursou o R. acerca do futuro que nos
esperava, a maioria, se não a totalidade, iria ser honrada com
a oportunidade de defender a pátria em África, blablabla,
agora tínhamos uma importante decisão a tomar. E indo directamente ao assunto, sem
mais considerandos, perguntou ao pelotão que, entretanto, tinha aberto
fileiras:
"Quero saber se os senhores cadetes querem ser
classificados por mérito ou por cunha?"
O pelotão manteve-se firme de espanto perante o
insólito da questão e expectante da pergunta que teria de vir a seguir.
"Quem for da opinião que a classificação deve ser
atribuída por cunhas dê um passo em frente!"
Ninguém deu. O capitão C., ao lado do R., sorriu discretamente.
Após uns breves momentos, rematou R:
"Ainda bem que nos entendemos porque os senhores são cinquenta e seis e
eu recebi cinquenta e cinco cunhas! Vamos a provas! O senhor capitão C, será membro único do júri.
As provas realizam-se esta manhã; antes de almoço serão conhecidos os
resultados."
Seria uma blague do major R? A classificação naquela fase da formação de oficiais de administração militar não servia a ninguém e as cunhas, se havia cunhas, qual era o seu propósito? Colocar os cunhados nos lugares mais confortáveis, eventualmente nos serviços dos estados maiores? Esses iriam para onde pretendiam independentemente de uma classificação em provas de última hora gizadas por um capitão manifestamente exótico.
E que provas seriam aquelas se durante três meses a formação específica em administração militar, se isso existia, não se tinha dado por ela?
Psicotécnicos?
O quê?
E que provas seriam aquelas se durante três meses a formação específica em administração militar, se isso existia, não se tinha dado por ela?
Psicotécnicos?
O quê?
...
As provas, com duração de uma hora, iniciaram-se às nove da manhã num dos pavilhões.
O capitão C. entrou com um pacote de folhas de papel, e a morder a boquilha do cigarro a um canto da boca, mandou sentar o pelotão, levantou uma folha com o indicador e o polegar e disse com ar severo e voz grave: "Os senhores cadetes são convidados a escrever, utilizando a frente da folha de papel, sobre um, e só um, dos seguintes temas: Um - A questão do sudoeste asiático - pausa de expectativa – ou, Dois - O problema sexual do combatente"."
Houve um sururu abafado na sala, o capitão sorriu para o ar e depois deu a indicação que faltava:"No verso escrevem o nome e número. Mais nada."
Uma folha de papel tem frente?, gracejou discretamente um dos cadetes e o capitão ouviu.
"Tem alguma dúvida senhor cadete?"
O cadete não desarmou, desculpe meu capitão mas não sei qual dos lados é a frente duma folha em branco.
"O senhor cadete não tem que pedir desculpa, não sabe, perguntou; mas demonstrou que não reparou na folha; repare melhor e tem a resposta para a sua dúvida."
Com esta resposta generalizou-se a dúvida até que alguém reparou que havia no canto superior esquerdo de cada lado da folha, aquele geralmente menos reparado à primeira vista, um f de um lado e um v do outro. Assim como se generalizou a dúvida também se generalizou a descoberta, salvo para aqueles que na pressa de mostrarem o que valiam na frente de uma folha de papel avançaram com a resposta no lado que o acaso lhes colocara à frente. Só cá fora, depois de esgotado o tempo, aliás generoso, meia dúzia deles ficaram na dúvida se teriam respondido no lado certo e que penalização lhes custaria a falta de atenção, se tivessem respondido no lado errado. Mas o que é que isso importa?, perguntavam para se descontraírem, e ninguém contestava, aquilo era um assunto pouco sério, ou talvez não, ninguém sabia.
Optaste por conter dentro dos limites da frente da folha, aliás, iguais aos do verso, o que te ocorreu naquele momento sobre o problema sexual do combatente avisado pelo facto de, considerando as tuas ligações ao M., há uns meses, e a tua arriscada intervenção do dia anterior, poderem juntar suspeitas que te penalizassem se abordasses a questão do sudoeste asiático, muito comentada na altura em alguns meios mais politizados, tinhas lido ( ) o suficiente para encher cadernos daquele papel trazido pelo capitão C.; do que escreveste sobre o problema sexual do combatente não te ficou a mínima ideia que agora preenchesse uma linha sequer daquela folha.
Pelas onze horas foram afixadas as classificações à porta da entrada para as camaratas : Todo o pelotão com mérito para administrar a logística da guerra. As colocações seriam conhecidas daí a uns dias mas em que medida dependiam as colocações de narrativas sucintas sobre temas que talvez dessem para avaliar a capacidade de expressão e de síntese de cada um dos cadetes, mas só muito remotamente avaliariam os seus conhecimentos e capacidades para os serviços de administração militar, ninguém sabia. O que se pressentia é que a decisão das colocações era discricionária e aquele arremedo de prova a patacoada final do capitão C.
Uma folha de papel tem frente?, gracejou discretamente um dos cadetes e o capitão ouviu.
"Tem alguma dúvida senhor cadete?"
O cadete não desarmou, desculpe meu capitão mas não sei qual dos lados é a frente duma folha em branco.
"O senhor cadete não tem que pedir desculpa, não sabe, perguntou; mas demonstrou que não reparou na folha; repare melhor e tem a resposta para a sua dúvida."
Com esta resposta generalizou-se a dúvida até que alguém reparou que havia no canto superior esquerdo de cada lado da folha, aquele geralmente menos reparado à primeira vista, um f de um lado e um v do outro. Assim como se generalizou a dúvida também se generalizou a descoberta, salvo para aqueles que na pressa de mostrarem o que valiam na frente de uma folha de papel avançaram com a resposta no lado que o acaso lhes colocara à frente. Só cá fora, depois de esgotado o tempo, aliás generoso, meia dúzia deles ficaram na dúvida se teriam respondido no lado certo e que penalização lhes custaria a falta de atenção, se tivessem respondido no lado errado. Mas o que é que isso importa?, perguntavam para se descontraírem, e ninguém contestava, aquilo era um assunto pouco sério, ou talvez não, ninguém sabia.
Optaste por conter dentro dos limites da frente da folha, aliás, iguais aos do verso, o que te ocorreu naquele momento sobre o problema sexual do combatente avisado pelo facto de, considerando as tuas ligações ao M., há uns meses, e a tua arriscada intervenção do dia anterior, poderem juntar suspeitas que te penalizassem se abordasses a questão do sudoeste asiático, muito comentada na altura em alguns meios mais politizados, tinhas lido ( ) o suficiente para encher cadernos daquele papel trazido pelo capitão C.; do que escreveste sobre o problema sexual do combatente não te ficou a mínima ideia que agora preenchesse uma linha sequer daquela folha.
Pelas onze horas foram afixadas as classificações à porta da entrada para as camaratas : Todo o pelotão com mérito para administrar a logística da guerra. As colocações seriam conhecidas daí a uns dias mas em que medida dependiam as colocações de narrativas sucintas sobre temas que talvez dessem para avaliar a capacidade de expressão e de síntese de cada um dos cadetes, mas só muito remotamente avaliariam os seus conhecimentos e capacidades para os serviços de administração militar, ninguém sabia. O que se pressentia é que a decisão das colocações era discricionária e aquele arremedo de prova a patacoada final do capitão C.
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