Sunday, April 21, 2024

POR FAVOR, NÃO MATEM OUTRA VEZ A AVEZINHA!

 

Não me venham contar histórias,

já tantas vezes repetidas,

de heróis de intenções generosas e almas puras

que o povo idolatrou,

porque me repugnam as idolatrias.

Não me venham contar  histórias de heróis impolutos,

que arriscaram a vida

rumo ao sul

para soltarem a ave encarcerada por outros seus iguais,

igualmente idolatrados,

de norte a sul,

quarenta e seis anos antes.

É verdade, só quarenta e seis anos antes, 

uma imensidão de tempo para quem nasceu há menos de cinquenta!

Conheço essas histórias contadas e recontadas como contos de fadas

embrulhadas, enfeitadas, perfumadas de poemas piegas, 

discursadas com vozes cheias

de intenções ocas. 

Conheço-as todas.

E vi, porque senti, que a avezinha solta naquela manhã de primavera

desenhou no céu puro e limpo um perfeito e único golpe de asa

como eu nunca antes tinha visto.

E que, como um raio me tivesse trespassado,

e emocionalmente tivesse fulminado as minhas congénitas reacções

à irracionalidade das emoções das turbas.

Porque também eu me juntei aos que idolatravam os heróis do dia

que tinham aberto a gaiola onde outros parecidos,

também idolatrados, 

como libertadores do povo,

por terem engaiolado a avezinha quarenta e seis anos antes.

Até me aperceber que a intenção dos heróis daquele dia,

de libertação da avezinha,

não era tão desinteressada e pura como a turba tinha acreditado,

e como, num qualquer catecismo, ainda continua a querer acreditar. 

Ainda a avezinha não se tinha regalado de voar,

levou uma chumbada numa asa,

atirada por quem tinha chumbo para atirar,

a avezinha,

deu de lado mas não caiu ao chão,

batendo desesperadamente as asas feridas,

depois de a uma chumbada ter sido atingida por outras,

piando, desesperadamente por clemência,

até pararem as chumbadas quase dois anos e meio depois.

A avezinha sobreviveu, tem-se mantido viva,

ao longo de quase mais quarenta e seis anos,

mas não está garantido que se mantenha sempre solta e viva.

Há sempre alguém à espreita 

para ensaiar a pontaria com uma chumbada,

reflectida.

1 comment:

Rogério Silva said...

Gostei Rui.
Abração.