Putin no parlamento português
Já não espanta que o PCP insista no apoio ao regime da Rússia. O que não sabemos, por enquanto, é se o Chega tem um alinhamento tão claro como outras forças do grupo europeu Identidade e Democracia.
Há dois equívocos habituais sobre a crise na Ucrânia. O primeiro é o de que estamos na antecâmara de uma guerra, expectantes para ver se ela deflagra ou não. O segundo é o de que a crise é só uma questão de luta pelo poder geoestratégico, nada tendo de ideológico.
Sobre o primeiro equívoco, a verdade é que uma invasão russa significará apenas mais uma batalha de uma guerra em curso, travada por outros meios que não só os meios militares clássicos. Nessa guerra, que é uma guerra de reconquista da vocação imperial da Rússia, percebe-se que Vladimir Putin queira reconstruir uma zona de influência contra o bloco ocidental. E percebe-se que, para isso, precise de ter a NATO longe das suas fronteiras. Mas é falaciosa a ideia de que a intenção é simplesmente a de que haja uma zona neutral de amortecimento entre os dois blocos, como assegura a propaganda do regime.
A Ucrânia tem na sua Constituição o projecto de aderir à União Europeia e à Aliança Atlântica. Se esse desejo for inviabilizado por imposição de Moscovo, então a Ucrânia passará a ser de facto um Estado subalterno da Rússia. Estará sempre dependente do que o vizinho achar aceitável. Não há qualquer neutralidade na “neutralidade” que Putin quer.
Além disso, a guerra extravasa em muito aquela hipotética barreira protectora de países não-alinhados. Putin levou a sua guerra ao centro do mundo ocidental, com o lançamento de ciberataques às nossas instituições, a tentativa de manipulação das nossas eleições, os envenenamentos de opositores nas nossas capitais, o financiamento de partidos amigos nos nossos sistemas políticos e o apoio a regimes criminosos que forçam a aterragem dos nossos aviões para prenderem activistas que os ameaçam. São actos hostis de uma guerra que se serve da liberdade do Ocidente para minar a confiança dos ocidentais no seu próprio modelo de convivência.
O que me traz ao segundo equívoco – o de que nesta guerra não há nada de ideológico. É claro que a luta pela expansão da influência internacional é basicamente amoral. Mas, neste caso, há uma luta entre dois blocos que assentam em duas concepções antagónicas sobre qual é a ordem política legítima: de um lado, a ordem política autoritária; do outro lado – o nosso lado –, a ordem política democrática. É inevitável que a prevalência de um bloco sobre o outro tenha um impacto no quadro de valores com que o mundo se organiza. É por isso indispensável conhecer o pensamento dos protagonistas políticos sobre estas duas tensões, geoestratégica e ideológica, que marcarão os próximos tempos.
Em Portugal, já não espanta que o PCP insista no apoio ao regime da Rússia, mesmo que haja lá um partido comunista congénere na oposição. Foi o que fez de novo há dias, com um comunicado em que Putin aparece como uma vítima incauta da agressão imperialista americana. O PCP nunca se conseguiu libertar do sentimento de orfandade desde o fim da URSS. É um perdedor ressentido que se alia cegamente a qualquer potência que desafie os Estados Unidos.
Mais original é o que se está a passar à direita. Sabemos do fascínio que Putin exerce sobre as forças da direita iliberal na Europa, de Le Pen, Orbán ou Meloni. É um fascínio natural, dada a afinidade ideológica dos conservadores autoritários com um líder que se opõe às instituições do liberalismo político e coloca no centro do regime a figura do “homem forte”, guardião carismático da ordem moral. Sabemos, também, como a Rússia apoia activamente essas forças. O que não sabemos, por enquanto, é se o Chega, que está com elas no grupo europeu Identidade e Democracia, terá um alinhamento tão claro com Putin.
Se isso acontecer, então a profundidade da fragmentação da direita democrática portuguesa não significará apenas que, pela primeira vez, há um partido parlamentar desconfortável com o regime pós-1974. Significará igualmente que, espelhando o que sempre sucedeu à esquerda, a direita deixou de estar inequivocamente unida no europeísmo, no atlantismo e na fidelidade geoestratégica e ideológica ao bloco ocidental. Um caso a acompanhar.
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