Friday, April 13, 2018

NATUREZA VIVA


O quadro estava exposto num museu de uma cidade de província,  há anos sem conta.
Raramente aparecia um visitante, o vigilante passava os dias a dormitar, à hora do almoço fechava a porta, reabria-a de tarde consoante, mais ou menos, se prolongasse a conversa com os amigos que apanhasse pelo caminho. Era uma natureza-morta, aquilo que os britânicos designam mais apropriadamente, para o meu gosto, still life

Um dia, era Setembro, às três da tarde, passou por ali um grupo excursionista, que incluía três garotos. Dois deles, preferiram não entrar e ficar a entreter-se com uma bola no lago fronteiro ao museu. O outro, o que entrou no museu, poderia ter ido para outro lado qualquer, às vezes à miudagem dá-lhes para desaparecer e pregar um susto aos progenitores, quando a comitiva já debandava, após uma ronda breve pelas obras expostas, que não eram muitas, e foi feita a contagem de quem estava ou faltava na viatura, tinha ficado lá dentro, a olhar e a remirar, em bicos de pés, porque o puto ainda era baixote, o tal quadro.
Nada, nem naquele quadro nem nos outros, havia suscitado interesse que tivesse merecido a mais, fugaz que fosse, atenção dos que tinham entrado e saído tão silenciosamente que o vigilante não deve sequer ter acordado da passagem pelas brasas com que habitualmente se reconfortava depois do almoço. Se fosse gente entendida, capaz de avaliar o que tinha ali para ver, e mal intencionada, talvez um ou outro daqueles quadros tivesse  sido levado naquela tarde, ou em qualquer dos dias em que o museu estava aberto, quando não estava aberto também estava mal guardado.

O quadro era de autor desconhecido, provavelmente do Séc. XVII, e figurava sobre uma mesa coberta com toalha branca, um peru com ar bem disposto, de bem bebido, de asas abertas, se aquilo era natureza morta ele parecia estar ainda bem vivo, umas ostras, umas frutas num cesto descaído ao lado do peru, uns pedaços de pão, um vaso de vidro, um vaso de estanho, o trivial em obras daquela natureza.

A atenção do pequeno homem centrava-se, no entanto, apenas no canto inferior direito, quando, alvoraçados, os pais e mais uns quantos, que o procuraram durante uns bons dez minutos nas redondezas do museu, foram dar com ele naquela concentração que o fazia mover muito ligeiramente a cabecita à esquerda e à direita, à volta de qualquer coisa onde ninguém mais via senão o remate indiferenciado do fundo da tela. Mas o rapazinho garantia que havia ali naquele cantinho, mesmo no cantinho, um passarinho que voava, mas é que voava mesmo, de um lado para o outro, mas só no cantinho.    

Entretanto, voltaram ao museu os outros viajantes que tinham ficado no autocarro, e todos eles, e mais dois ou três visitantes ocasionais, passaram a discutir se era ou não era visível, ali naquele cantinho do quadro, um passarinho a voar, pequenino, talvez um beija-flor. Uns tinham a certeza que, sim senhor, o rapazinho tinha razão e boa vista, havia ali passarinho a voar, podia não ser beija-flor mas se não era beija-flor era passarinho parecido; outros, que miravam e remiravam, coçando e balanceando a nuca, afiançavam, uns com óculos outros sem óculos, que não havia ali passarinho nenhum. Havia, não havia, a discussão já levava um tempão, esgotou-se a paciência ao motorista, que entrou no museu, que é que se passa?, ele não tinha mais tempo para esperar por conclusões unânimes, tinha horário a cumprir, e, ainda a discutir o caso do passarinho, voltou a gente ao autocarro, um ainda disse que passarinho não tinha visto mas passarinhas havia várias a bordo, só que não estavam visíveis naquele momento, e, com a brejeirice, pôs o pessoal  bem disposto, e acabou com a questão do passarinho.  
E nunca mais se soube daqueles nem do pequenote que tinha visto naquela natureza morta um passarinho a voar, que outros também viram e os outros não viram, nem nada que se parecesse com um passarinho a voar.

Voltou a calma regulamentar à sala do museu, despertou o vigilante da sua modorra, e, por desfastio ocasional, foi olhar para o que nunca tinha olhado, aliás, um vigilante não é pago para ver os quadros mas vigiar quem entra para os ver, regras do regulamento. Para comodidade conveniente e atenção concentrada, trouxe o banco do canto em que se sempre se sentava e sentou-se nele em frente do quadro que talvez tivesse mas talvez não tivesse um passarinho a voar. Mirou, remirou, foi até buscar a lanterna para melhor observar, não viu passarinho nenhum, voltou a colocar o banco no canto do banco, e dormitou até que no relógio da torre da igreja tocaram as seis, horas para fechar as portas e ir até casa, não sem ter passado antes pela roda de amigos que se reunia por ali à tardinha até ao sol se pôr.

No outro dia, de manhã, fez o que fazia desde que fora contratado como vigilante do museu municipal: abriu a porta de entrada principal e as portadas das janelas, deu uma volta de ronda às salas, que eram só cinco, a confirmar que não havia parede sem quadro, nem quadro torto na parede, o que mais o chateava era ver um quadro torto, um desequilíbrio que lhe arranhava os nervos e obrigava a indispor-se com a mulher da limpeza que, por acaso, era a sua mulher.
Depois, ia a sentar-se no banco, ainda não se tinha sentado, entra um grupo excursionista que o vigilante, facilmente, percebeu serem brasileiros. Se não a totalidade, pelo menos a maioria era. Ficou abismado com o fenómeno, nunca antes, que ele se lembrasse, tinha o museu recebido excursões em dois dias seguidos, e ainda estava a começar aquele dia. Não restavam dúvidas que o país estava agora em franco crescimento e o turismo era o grande motor desse desenvolvimento.
Também facilmente percebeu, eles falavam bem alto, subvertendo as regras em visitas a museus,  que tinham aqueles brasileiros voado de São Paulo e Rio até Paris, e dali tinham passado em autocarro por Madrid, Salamanca, Santiago de Compostela, Coimbra, Fátima, e, a caminho de Lisboa, de onde voltariam a Paris para o voo de retorno, convenceu-os a casualidade de o avô de um deles ter nascido numa aldeia que ficava perto, a passarem aquela amanhã naquela cidadezinha de província que nenhum dos restantes alguma vez ouvira falar. O descendente foi até à aldeia avoenga, por, prometeu ele, não mais que três horas, e a comitiva tinha-se ali dispersado entre o mercado, algumas lojas de roupa e calçado, tudo caríssimo não acha?, um ou outro preferiu uma ou outra tasca para petiscar as especialidades locais, umas bebidinhas da zona, uma escassa dezena, a princípio, uns quinze depois, entraram no museu, mais pela traça antiga do edifício do que qualquer chamamento do recheio.

Já viu Nenhinha esta belezinha de natureza morta? Adoro natureza morta. Não perco. No Louvre não tinha muito pois não?
Ah! O Louvre, querida, o Louvre é um mundo inteiro de cultura ... Você teve lá tempo de ver o que há naquele luvrão todo?
Pois não...pois não. Aquela entrada é simplesmente esmagadora, a gente sente-se imergir num oceano de cultura clássica. A gente desce, e, só de olhar para toda aquela pirâmide cai de pasmo, sem saber por onde é melhor começar. Aquilo, para ser visto como deve ser, quanto tempo precisa, tem ideia?
Tenho, não, mas não aguentava mais do que aguentei. Ao fim do dia estava mortinha para zarpar para o hotel e dormir até ao dia seguinte.
Já o Prado, é diferente, tem muito corredor, é mais orientativo. Em todo o caso, nada que se compare ao Louvre, não acha?
E o Rainha Sofia, que lhe pareceu?
Para lhe ser franca, minha amiga, a mim não me pareceu museu.
Nem Guernica?
Bom, nesse caso, o que eu não gosto mesmo é do Picasso. Mas não diga às nossas amigas, por favor.
Para elas, o Picasso é o máximo. Você gosta do Picasso?
Não muito ... não muito ...assim, assim, tem coisas que gosto, tem outras que não gosto. Gosto do período azul, do rosa ...
Pois isto será anedota, mas eu não sabia que Picasso tinha períodos ...
Teve. E teve até períodos de naturezas mortas.
Nados-mortos?
Não, não, naturezas mortas ...
Como estas, com peru e tudo isso, tão bem pintado que até parece estar vivo?
Diferentes, bastante diferentes, menos realistas, menos fotográficas, não sei se me fiz entender.
Quase. Tenho de dar, um dia destes, uma mirada nisso.

Ia a conversa cultural entre as duas neste ritmo alucinante quando se aproximou delas um homem do grupo.
Não é uma maravilha?
O homem chegou-se ao quadro, mais do que a distância regulamentar permitia, mas o vigilante entendeu condescender e não fazer cumprir as regras.
Logo a seguir outro, outro, e outro, enfim todos, obedecendo à força da curiosidade individual na formação dos grupos quando ignora as razões pelas quais os grupos se começaram a formar, e, em pouco tempo, estavam todos à volta, se não todos, quase todos a desrespeitar as regulamentadas distâncias mínimas de proximidade das obras expostas.
Não é uma maravilha?, voltava a perguntar a senhora que adorava naturezas mortas a cada um que se ia juntando ao grupo . Não é uma maravilha de natureza morta?, insistia perante a mudez do grupo.
É quê?, arriscou um tímido do fundo para o vizinho do lado.
Natureza morta, sussurrou quem estava à frente dos dois.
Em minha casa não entraria, nem dada. É coisa mórbida, não é? Eu acho. Prefiro os impressionistas...

Acercou-se o vigilante do grupo com a intenção de proteger o quadro de tanta concentração de gás carbónico, e, num inesperado momento de génio, que nele existia congénito mas nunca antes se manifestara, informou que aquele quadro era uma natureza morta mas que também era uma natureza viva.
Como é isso?, perguntou a maior admiradora de naturezas mortas, que nunca tinha ouvido falar em naturezas mortas e vivas ao mesmo tempo, e já lhe custara a engolir aquela do Picasso ter dado à luz nados-mortos.
É assim, começou a explicar o vigilante quando o grupo todo se calou, aqui neste quadro, que sem dúvida alguma é uma natureza morta, de autor desconhecido, talvez do séc.XVII há, no canto inferior direito, mesmo no cantinho, um passarinho que voa de um lado para o outro ... sempre no cantinho. Por isso lhe chamamos o quadro do passarinho, acrescentou o vigilante, e fez história.
Como é isso?
Sente-se, o senhor, aqui neste banco, concentre-se, e verá que um passarinho, muito pequeninho, esvoaça constantemente. Há quem pense que seja um beija-flor.
O homem sentou-se, colocou óculos de ver ao perto, espreitou que se fartou, saiu do banco, e disse, não tem porra de passarinho nenhum.
Há beija-flor em Portugal, perguntou curiosa e tímida uma das senhoras que até ali não tinha aberto a boca.
Não tem, mas natureza morta pode ser matada em qualquer lado, respondeu e riu-se do que disse, um que entendia estar o assunto a ficar pesado demais para o momento.
Pelo sim, pelo não de averiguação, sentou-se um voluntário, espreitou, fez óculo juntando polegar ao indicador, esteve tempo estranho a espreitar, estranho por coisa tão pouca, entenda-se, levantou-se vagarosamente e disse: tem passarinho, sim senhor. É mesmo muito pequenininho, mas tem.
E voa?
Voa, está sempre a voar. Se é beija-flor não sei.
A partir dali, sentaram-se todos e as conclusões só não foram unânimes porque o primeiro observador nem quis repetir a observação. Para ele, não havia passarinho nenhum, ponto final, e vamos embora.

Foram quase todos, só ficaram dois na sala.
E você acha mesmo que pode ser negócio mesmo?
Pela alma da minha mãe lhe juro que estou seguro que pode ser negócio mesmo. Vamos falar com o vigilante.
Vigilante, o senhor, por favor pode marcar uma reunião, ainda hoje, com o presidente do município?
Eu???, perguntou com interrogação aterrorizada o vigilante.
A questão, senhor vigilante, é que nós dois estamos interessados em comprar esse quadro, o do passarinho, entende?, e estamos dispostos a pagar um preço justo por ele.
O quadro do passarinho? O quadro do passarinho não está à venda, aliás, nenhum quadro aqui está à venda. Isto é um museu, senhores, não é galeria de arte.
Que bobagem!, vigilante, tudo se compra e vende mesmo sendo quadro de museu. Telefone a ele! Vá telefone a ele!
É do séc. XVII, senhores, não tem preço.
Tudo tem preço, vigilante, tudo neste mundo tem preço. Muito ou pouco, tudo tem preço.

Neste ponto, chamou um dos interessados o outro à parte, o vigilante aproveitou para voltar ao seu posto, se bem se lembram, sentado no banco.

Você acha mesmo que, sendo o quadro do séc. XVII, pode andar o passarinho andar a voar há mais de trezentos anos? Quanto tempo de esperança de vida tem um beija-flor? Não mais que três anos, cinco no máximo, sabia?
Pode não ser beija-flor. Aliás, pelo que você agora se lembrou, não é beija-flor, mas não é por isso que deixa de ser passarinho.
Então que passarinho pode ser este que voa há trezentos anos, pelo menos?
Só Deus sabe os limites ilimitados da criação. Talvez o quadro tenha sido pintado por Deus? Tem prova do contrário?
Não, não, o quadro é de autor anónimo. Pode ter sido Deus quem pintou essa coisa morta-viva? Pode, mas não vamos alterar a chapa da autoria na moldura. Iria o negócio do quadro ao ar, como autor de obra de arte, Deus não vende, como milagre talvez possa vir a ser mina sem fundo.
Vamos comprar a porra do quadro!

Vigilante, por favor pode pelo menos indicar-nos o número do telefone do município.
Posso, não é favor nenhum, aqui o tem, mas devo informá-los que hoje nem o presidente nem os vereadores estão disponíveis.
E por que não? É feriado?
Estão todos reunidos em sessão de discussão de aumentos ao pessoal.
Bom, se assim é, convém não perturbar eles. E amanhã?
Amanhã é sábado, fim-de-semana, e na segunda-feira é feriado municipal.
Que azar, hem! Bom, estamos de saída para Lisboa para pegar o voo de Paris para o Rio e São Paulo.
Vamos telefonar de lá. Afinal, que negócio é que não pode ser feito hoje pelo telefone? Como é que licitam os árabes, e outros parecidos com eles, nos leilões da Sotheby´s  ou da Christie´s  para comprar anonimamente por milhões e milhões arte europeia, americana, ou do fim do mundo? Pelo telefone. Pelo telefone! Pela internet! Talvez até pelo feicebuque, pelo WhatsApp ... A propósito, você já instalou no seu celular o Instagram? Instale.
Viu como o museu estava a precisar de obras?
Se vi! Eles vão vender-nos o quadro por tuta-e-meia.

Não tinha ainda passado uma semana, a quietude do museu voltara ao normal, um ou outro visitante de passagem, de vez em quando uma excursão ou outra, do passarinho vivo em natureza morta guardou o vigilante o maior segredo, que, afinal nem segredo seria, porquanto ele, vigilante experimentara, entretanto, sem sucesso, aproximado que fosse, enxergar passarinho ou réstia dele, quando toca o telefone, da secretaria da câmara. Vigilante, pode comparecer na câmara esta tarde, por volta das quatro? Sim. Pode encerrar esta tarde mais cedo. Deixe aviso na porta que o museu reabrirá amanhã com o horário habitual.
Tremeu o vigilante com a convocatória, nunca lhe tinha acontecido coisa assim em tantos anos de serviço, às quatro horas em ponto estava ele a entrar na secretaria.
Veio a secretária do vereador da cultura e desportos, como está senhor vigilante, ligou para aqui um senhor brasileiro, disse que esteve no museu há uma semana, que viu lá uma natureza morta, e que quer comprar o quadro ...
Sim, senhora secretária, tivemos a visita de uma excursão de brasileiros, aliás tínhamos tido antes outra de gente de não sei donde no dia anterio, esgotou-se há uns tempos o livro das visitas, requisitei outro mas ainda não chegou, e dois brasileiros quiseram falar com o nosso senhor presidente, logo naquele instante. Disse-lhes que não seria possível, que era dia de reunião da câmara, foi isto, portanto, na sexta-feira passada, depois metia-se o sábado, o domingo e o feriado municipal, disseram-me que nesse caso, porque tinham de voltar ao Rio e São Paulo, contactariam o nosso presidente pelo telefone.
E não disseram mais nada?
Disseram que queriam comprar o quadro.
E o vigilante que lhes disse?
Que o quadro era de museu, que eu soubesse, não estava à venda, depois eles disseram que tudo se compra e tudo se vende, pelo telefone fazem-se vendas de quadros por milhões e milhões. Ah! Já me esquecia, não sei se é importante, antes, no grupo da excursão anterior, um rapazinho, seis, sete anos, tinha estado a ver o quadro e afirmava que no canto inferior direito do quadro havia um passarinho, vivo, a esvoaçar. Às tantas andava toda a gente à procura do miúdo que faltava no autocarro, e, em pouco tempo estava toda a gente a ver se via ou não via o passarinho. Uns viam, outros não viam, e lá se foram sem acordo sobre o assunto.
Na manhã seguinte, logo que abri a porta entraram os brasileiros, uma dúzia, para mais, não para menos. E logo duas senhoras se puseram a admirar o tal quadro de natureza morta. Devem ter entabulado conversa sobre arte, pelos vistos tinham estado no Louvre e no Prado, às tantas estava todo o grupo a falar mais alto no museu do que o regulamento do museu permite. Para desanimar a discussão disse-lhes que um menino que tinha estado no museu no dia anterior tinha visto um passarinho vivo naquele quadro de natureza morta. Toda a gente se calou, e, calmamente, cada um se pôs a observar, a distância conveniente, o quadro para tentar encontrar o passarinho que, alguém admitiu, pudesse ser um beija-flor. Depois, discordaram todos entre si. Uns viam, outros não viam, uns às vezes viam, depois deixavam de ver, acabaram por sair todos menos dois, que, à viva força queriam falar com o senhor presidente. O resto já contei tudo, penso eu.
E o vigilante viu algum passarinho?, perguntou com sorriso irónico a secretária.
Não, senhora secretária, não vi, mas confesso que a minha curiosidade também me levou a espreitar numa altura em que não tinha visitantes na sala.
Não tem mais nada a acrescentar?
Sobre este caso, não, senhora secretária.
Obrigado, boa tarde!, despachou a secretária antes que tivesse ouvir o relato de casos que, certamente, o vigilante teria para contar mas não constavam da convocação daquele dia.

Na sessão da câmara da sexta-feira seguinte foi agendado, a pedido do vereador da cultura e desportos, o inusitado telefonema, depois confirmado por e-mail, de dois cidadãos brasileiros, convenientemente identificados e referenciados como industriais no sector da produção de etanol, propondo a compra de uma natureza morta que tinham visto no nosso museu há duas ou três semanas
durante uma visita ocasional no caminho para Lisboa, onde iam apanhar o avião para o Rio e São Paulo na segunda-feira seguinte ao da visita ao museu. Pela obra de arte, de autor anónimo, tido por pintada no séc. XVII, ofereciam os magnatas brasileiros trezentos e cinquenta mil cruzeiros.
Lida a proposta pelo vereador da cultura e desportos, insurgiu-se logo de seguida o mesmo vereador,  considerando a proposta simplesmente repugnante. Que pensam, esses ricalhaços pançudos, quem somos para vender património cultural nosso? Que estamos de rastos a ponto de vendermos aquilo  que é parte importante da nossa memória?
Seguiu-se o silêncio da praxe, aguardando a palavra do presidente.
Parece que o quadro tem passarinho, disse o presidente ao fim de alguns momentos de expectativa, por que não vamos lá dar uma olhadela? Já agora, aproveitamos para ver como está o museu, confesso que há já alguns anos que não entro lá.
Parecia à generalidade da vereação que talvez a visita ao museu fosse justificável, a maioria nunca lá tinha posto os pés, mas aquela do passarinho uma treta que só podia caber na cabeça do presidente.

E, na sexta-feira seguinte, depois da sessão da câmara foram até ao museu, considerando a visita um prolongamento dos trabalhos do dia.
Viram e consideraram unanimemente que o museu estava a precisar de obras urgentes. No canto do vigilante, por exemplo para o qual o mesmo chamara a atenção, pingava água em dias de chuva, obrigando o trabalhador a sentar-se noutro canto, menos conveniente para a observação do espaço.
Quanto à natureza morta com passarinho a voar, ninguém conseguiu ver passarinho algum, também os esforços foram poucos para não dizer negligentes, salvo o vereador dos cemitérios que viu e se entusiasmou com o que viu, e que nunca tinha pensado que alguma vez poderia vir a ver, uma natureza morta com um passarinho, talvez um beija-flor a voar.
Resumindo e concluindo, nenhum vereador, incluindo o vereador da cultura e desportos, nem o presidente, que foi o primeiro a observar e a dizer que não tinha visto passarinho algum, e, para irritar o vereador discordante, o dos cemitérios, que era da oposição, disse que só poderia ver passarinho naquele quadro quem tivesse defeito na vista.
Quanto é que oferecem os brasileiros?
Trezentos e cinquenta mil cruzeiros, líquidos de impostos.
Quanto é isso?
Hoje, para aí uns setenta mil euros, calculou o vereador tesoureiro, recorrendo ao telemóvel, mas,
cruzeiro não é moeda de transacção, amanhã pode não valer nada. Se queremos negociar devemos negociar em euros.
Responda-se que o quadro se vende por duzentos mil euros, disse o presidente, para logo acrescentar, se houver unanimidade da vereação, oposição incluída.
Duzentos mil euros dariam um jeitão, o orçamento tinha sido aprovado mas muito esmagado, com algum dinheiro daquele, inclusive, se repararia o museu que bem precisado estava de obras, como todos haviam visto.
Observou o vereador da cultura e desportos que a proposta de venda tinha de ser submetida a aprovação da tutela, mais prudente seria que não se contasse com o ovo ainda no ovário da galinha.
Vigilante, diga-nos quantas naturezas mortas temos em acervo? ... Na cave.
Para aí umas dez.
Em boas condições?
A mulher da limpeza passa-lhe com o espanejador todas as semanas.
Constam todas do inventário?
Peço desculpa mas não sei responder.
Saberia, ou deveria saber o vereador da cultura e desportos, mas não assim do pé para a mão.
A sessão camarária do dia terminou por ali, em inventário havia menos naturezas mortas que as que tinham sido contadas  no dia seguinte, e, para não alongar demais nem ser indiscreto mais do que a prudência aconselha, o que ouvi dizer é que, passados três meses, chegava a São Paulo, embalado com seguro assegurado pelos compradores, uma natureza morta onde uns viam, outros não viam, mas os compradores tinham visto, um passarinho, pequenininho a esvoaçar constantemente, para aí há uns trezentos anos, não menos, no canto inferior direito.
O valor da transacção foi colocado, por unanimidade e compromisso de confidencialidade, no saco azul, alegadamente por já não ter chegado a tempo de constar no orçamento aprovado para aquele ano. Oportunamente, seria feita a correcção com a justificação devida. E, na sala do museu, ninguém deu por falta de quadro algum, nem o vigilante nem  a mulher da limpeza que, como já se disse, era a
mulher dele.

Entusiasmados com a chegada do quadro, trataram os compradores de contratar agente que garantisse o lucro que uma natureza morta e viva merecia, quanto mais não fosse pela originalidade impossível no campo da física, talvez da física quântica, mas, se assim viesse a ser concluído, aquilo era negócio
para deixar para trás todos os recordes imagináveis por largo tempo.
Não fosse o diabo tecê-las, guardaram a natureza morta e viva num cofre forte capaz de se aguentar com uma bomba atómica, assegurou o vendedor do cofre forte.
Compareceu um agente, representante local de uma leiloeira mundialmente bem conhecida,  que não mencionamos, não vá alguém pensar que vivemos de publicidade, abriu-se o cofre, colocou-se o quadro em local com luz adequada, e, perguntou um dos vendedores ao agente se ele conhecia aquele quadro.
Aquele não, mas conhecia centenas, quase todos de autores conhecidos, reconhecia algum mérito à obra, mas não tinha valor que merecesse ser levado a leilão. Valeria, com boa vontade e muito amor às naturezas mortas, para aí uns duzentos mil cruzeiros, valor sujeito a correcção contra o câmbio o dia em dólares.
Duzentos mil cruzeiros, sem passarinho? Em quanto avaliaria o agente quando visse o passarinho?
Fortunas!
Sente-se, por favor, senhor agente aí em frente do quadro, concentre-se no canto inferior direito, o que vê?
O agente fez várias tentativas para ver algum coisa que não tivesse visto à primeira vista, pôs óculos, tirou óculos, usou lente, e disse, não vejo nada de especial, nem cagadela de mosca sequer. Talvez uma muito imperceptível ruptura mesmo no canto da tela, mas isso ocorre com muita frequência, com obras antigas e contemporâneas, é simplesmente irrelevante.
Caíram os corações aos pés dos industriais de etanol, agradeceram ao agente, depois mande a factura para pagarmos o seu trabalho.

Mal o agente saiu, sentaram-se e levantaram-se os dois industriais junto do quadro, tantas vezes que
ficaram-lhes derreados os ossos e a arder insuportavelmente os olhos.
O que é que se passou? O que é que se passou? O que é que se passou?
Trocaram os portugueses o quadro e mandaram-nos um, parecido, com peru bêbado e tudo, mas sem passarinho? Teria o passarinho aproveitado o voo no avião para se safar de um aprisionamento de três séculos?
Foram descansar, voltaram no dia seguinte, e, para os  mesmos ensaios, os mesmos resultados. Não havia dúvida, ou os portugueses tinham feito marosca, mas como prová-lo?, ou o passarinho andaria agora a voar, talvez por ali perto, mas quem é que poderia convencer um passarinho em liberdade a voltar para um quadro do séc. XVII, de mais a mais, uma natureza morta?
Talvez o Tancredo?
Quem?
O Tancredo é um restaurador, pessoa muito competente e idónea, talvez o Tancredo possa colocar-nos aqui um passarinho, afinal uma coisa que passa tão despercebida mas com tanto potencial.
Foram ter com o Tancredo.
O Tancredo estava de saída, era fim de dia, ouviu atentamente os parceiros, e foi peremptório recusando o trabalho, mesmo sem saber por que queriam aqueles dois etanois um rabisco seu numa obra antiga.
Porquê, Tancredo, diz cá ao teu amigo há tantos anos já, porque recusas uma coisa que para ti é uma pequeníssima pincelada, para ti que já fizeste tantas ... Quantas pinceladas já fizeste Tancredo, em toda a tua vida? Milhões e milhões, hem?!
Destas, que vocês me pedem, nunca fiz na minha vida. Nem vou fazer.
Tancredo, pagamos bem.
Não pagam, que eu não recebo.
Olharam os do etanol um para outro, fizeram sinal entre eles, e colocaram, cada um cinco mil cruzeiros num envelope.
Tancredo, se não te importas, ficas cá com o quadro na oficina até amanhã, e este envelope.
E decides livremente, se fizeres o trabalho, ficas com o envelope, se não levamos o quadro e o envelope, o que nunca deixaremos é de ser amigos como dantes. Nem teve tempo o Tancredo de dizer que não, porque saíram os dois antes que ele desse por isso.
Por prudência guardou o envelope num cofre que tinha escondido em lugar bem seguro, na cave.

No dia seguinte, aparecem-lhe os dois do etanol ao fim do dia, estava o Tancredo a fechar a loja, a começar a correr a cortina de aço que protegia a entrada. Entraram, olharam para o quadro e não viram o envelope. O Tancredo tinha cedido, estava o trabalho feito. Olharam os dois o quadro, e lá estava o passarinho. Entretanto, o Tancredo tinha descido à cave da oficina, quando subiu já os dois tinham sumido, tanta era a pressa para chegar a qualquer lado que, de cá de cima, disseram até um destes dias Tancredo e saído com o quadro.

Um ou dois anos depois, estava o Tancredo às voltas com uma restauração delicadíssima, entram os do etanol com cara de satisfeitíssimos da vida, dá cá um abração, desculpa termos saído naquele dia tão sem te dar um abraço, tinhas descido à cave, mas não esquecemos o que te deve ter custado fazer o que fizeste por nós. Nunca, nunca em caso algum contaremos a quem quer que seja esse trabalho que tanto te deve ter custado à consciência de homem impoluto. Fica para sempre entre a gente. Só te pedimos que aceites este envelope para tranquilidade  da nossa consciência e da nossa amizade.
Tancredo sentiu-se, por breves instantes, faltar-lhe o sentido do equilíbrio, tinha estado todo o dia envolvido num trabalho extenuante de restauro de uma obra valiosíssima, a exigir-lhe a máxima atenção, precisão, competência, e, a ouvir aqueles dois, não percebeu patavina da conversa deles. Quando recuperou a memória, subitamente nublada, passou a mão esquerda pela testa e, a segurar-se com a mão direita no corrimão que dava para a cave, desceu, e demorou-se lá por pouco tempo. Quando subiu, trazia um envelope com ele.

Tenho aqui o envelope que aqui deixaram há um, dois anos? o tempo passa depressa, esperando que vocês por aqui passassem. Nunca passaram e eu também não tive tempo, com o trabalho que tenho tido, de vos procurar. Mas aqui está ele, é vosso, e pelas mesmas razões não vou aceitar esse que me querem oferecer agora.
Mas porquê, Tancredo, tanta honestidade é exagero, amigão. Sabemos que foi só uma pincelada, nem pincelada sequer se deve chamar, mas foi uma pinceladazinha, que nos trouxe o passarinho de volta.
Queremos, fazemos questão, de partilhar contigo, ainda que simbolicamente, o trabalho teu, que sem ele, o passarinho nunca mais voaria.
Ao fim de muitas insistências de um lado e mais resistência do outro, saíram os do etanol com os dois envelopes

Se me perguntarem se eu vi ou não vi o passarinho, devo confessar que nunca vi o quadro.
Nem sei onde para agora.

2 comments:

Maria João said...

Olá Rui, mas que história bem engendrada, até me ri. Estive sempre na expectativa de como acabava
e conseguiu surpreender-me.

Continue.

Rui Fonseca said...


Obrigado, Maria João.

Continuarei enquanto beber pela manhã um copo de água morninha com um pinguinho de limão.