Monday, December 23, 2013

UM OUTRO CONTO DE NATAL

Miguel, Doralice, Rosa, Rita,
                                                                 
Lembro-me que naquela manhã a Mãe disse:  - Jonas, chegou o Inverno, o regato já canta.
O meu nome é João mas a Mãe sempre me chamou Jonas. Eu tinha, então, quase seis anos.

- Os regatos cantam, Mãe?
- Se os ouves cantar, cantam. Se não, não cantam. Consegues ouvir o regato cantar?
- E também assobiam?
- Alguns assobiam, se os ouvimos assobiar.
- Ouves este assobiar?
- Não. Este, ouço-o cantar. E tu, que ouves?
- Não sei.
 - Então tens de lavar melhor os ouvidos.
 - Ouço-o dizer: já vou, já vou, já vou ...
-  Afinal ouves bem. O rio chama-o e o regato responde.
 - O regato também fala?
-  Fala. Se tu o ouves falar é porque fala. Anda daí.
-  Aonde vamos?


Era domingo, tinha chovido toda a semana, estava menos frio, envolvia-nos uma cortina húmida enquanto subíamos o outeiro  à procura de musgo, barro, pequenas piteiras, que havia naquela dobra da serra a poente da nossa casa. No fim desse dia, a Mãe tinha moldado o cenário do presépio em cima de uma mesa num canto da sala, percebia-se nele sensivelmente o recorte do monte de onde viera o barro, coberto com o musgo, salpicado com meia dúzia de pequenas piteiras, no centro do palco estava uma casa rudimentar que a Mãe contruíra  com folhas de espigas de milho e pedaços de vime apanhados à beira do ribeiro para onde corria o regato.

- Quando é o Natal, Mãe?
- Daqui a três semanas, mais ou menos.
- Agora faltam as figuras.
- Pois faltam.
- Onde estão elas?
- Daqui até ao Natal, chega uma em cada dia, se te portares bem.

Portar-me bem, queria dizer comer para crescer, que era coisa que não me apetecia muito. Logo na manhã do dia seguinte apareceu José no presépio em frente da casa de folhas de espigas de milho. Era uma figurinha de barro, do comprimento do meu indicador, não mais que isso, pintada a azul e branco, salvo as barbas, que eram grisalhas.

 -Por que é que o José foi o primeiro a aparecer?
- Porque era o mais velho da família. Senta-te aí que eu conto-te.
- O quê, Mãe?
- A história do Natal.
- Já conheço essa história.
- Mas eu conto de outra maneira.
- A mesma história?
- As histórias são sempre mais ou menos as mesmas. A diferença está no modo como as contas.
- E são todas verdadeiras?
- Só aquelas em que acreditas que sejam.

Naquele tempo, na nossa casa cozinhavam-se os alimentos no lume da lareira de lenha, que era suficientemente larga para se sentar a mãe de um lado e eu do outro em pequenos bancos de pernas curtas. Antes de nos deitarmos, aproveitávamos o calor das brasas que se extinguiam e a Mãe filosofava . O Pai, porque tinha as pernas compridas, não cabia na lareira, ia para a cama mais cedo.

Este José, disse a Mãe, era carpinteiro, e viveu há muitos anos na Judeia, uma terra muito longe, para aquele lado, de onde o sol se levanta todas as manhãs. José vivia sozinho, sem família, numa casa de madeira que ele construíra na encosta do monte, e de onde o seu olhar abrangia a aldeia toda lá em baixo. Fazia  obras de madeira por encomenda: portas, janelas, cancelas, portões, coisas assim. Chegava um, queria um a porta, ele fazia uma porta, era só escolher a madeira e o feitio. Se outro queria uma janela, José fazia a janela. Como o Manuel Abade? Sim, como esse. À volta da casa tinha uma horta onde cultivava legumes, couves, cenouras, batatas?, não, batatas não havia por lá nessa altura, favas, ervilhas, e alguns cerais, centeio, aveia, também tinha oliveiras, macieiras, pereiras, castanheiros?, castanheiros não tenho a certeza, mas laranjeiras e limoeiros, tinha com certeza. Também tinha parreiras à volta da casa. E tinha galinhas, coelhos e ovelhas, ovelhas tinha pelo menos dez. E um jumento e três cabras. Dava para ele comer e vender. Como era poupado, constava que tinha algum dinheiro, mas essas coisas nunca se sabem ao certo. Porque vivia sozinho e não tinha família também não é possível saber, são segredos pessoais. Um dia, quase ao fim do dia, estava José a aplainar umas tábuas para um portão, que se comprometera entregar daí a três dias, viu iniciarem a subida do caminho que dava para sua casa dois jovens, à primeira vista pareciam dois jovens, um homem e uma mulher, estariam perdidos, pensou José, montados em cavalos soberbos, bem arreados, José nunca tinha visto nada assim. A sua casa só subia gente da aldeia, a pé, pessoas que trabalhavam nos campos, pastores, um ou outro funcionário público, mas nunca a cavalo nem vestidos daquela maneira. José, depois de os observar por alguns momentos, pegou de novo na plaina e recomeçou o trabalho, porque tinha um compromisso a cumprir e não era pessoa que ficasse embasbacada mesmo que, de repente, lhe aparecesse o rei David. Levaram algum tempo os estrangeiros a subir a encosta, José dava conta do seu avanço sempre que levantava um lado da tábua que aplainava para lhe avaliar o alinhamento, piscando o olho esquerdo, e recomeçava a aplainar. - Senhor José, bom dia!-, disse o cavaleiro ao mesmo tempo que desmontava. Assim, de repente, José ficou surpreendido que o cavaleiro soubesse o seu nome mas deduziu logo a seguir que não seria assim descoberta tão difícil uma vez que não haveria ninguém, em cinco léguas ao redor dali, que não soubesse que ele se chamava José e que era mestre carpinteiro.- Bons dias nos dê Deus, respondeu José, logo que a surpresa lhe passou. O que os trás por cá, a este lugar no fim do sol posto? perguntou a seguir, já confiante, pensando numa encomenda de requinte, a carpintaria de um palácio, podia muito bem ser que o procurassem para a carpintaria de um palácio, porque não, talvez até um trabalho de marcenaria fina, coisa que não fazia há algum tempo mas de que não estava esquecido de todo. Pensava nisto José, o pensamento é rápido, enquanto o cavaleiro ajudava a sua companheira a desmontar, coisa que fizeram num ápice e elegância bastante para encantar José. - O meu nome é Gabriel, esta é a minha mulher, disse o jovem, e ambos cumprimentaram José. Não sendo homem dado a grandes cortesias, José era hospitaleiro e convidou o casal a entrar para sua casa. Aí se sentaram à volta da mesa e beberam água, vinham com sede, antes de Gabriel dizer porque estavam ali. 

Continuamos amanhã à mesma hora, disse a Mãe.
E na manhã seguinte, no presépio,  estava Maria.

A mulher de Gabriel chamava-se Maria e esperava um filho dali a uns meses. Gabriel era descendente do rei David, ele mesmo seria rei se o seu reino não estivesse ocupado há muito anos pelos romanos. Ninguém sabia por onde andava Gabriel, mas toda a gente pensava que ou já teria sido preso pelos romanos ou se encontraria escondido nas montanhas. Nem uma coisa nem outra: Gabriel tinha saído do país para organizar a resistência à ocupação romana, e procurava um refúgio seguro para sua mulher. Tendo mandado que lhe indicassem quem poderia receber a jovem, a escolha recaiu sobre José: não tinha mulher nem filhos e vivia num local bem afastado das estradas por onde passavam as tropas ocupantes. Se Gabriel vencesse, viria buscar Maria e o filho, e retribuiria generosamente José; se fosse vencido, José registaria o filho como seu, Gabriel deixaria uma bolsa de moedas, suficiente para garantir a subsistência de todos. José recusou a bolsa mas aceitou a incumbência de proteger mãe e filho. Gabriel não voltou e,  a partir daqui, a minha história não difere daquela que é conhecida: Maria deu a seu filho o nome Jesus, durante cerca de trinta anos Jesus trabalhou com José, seu pai adoptivo. Depois, subitamente, por uma inspiração inexplicável percorreu toda a Judeia pregando o amor entre toda a humanidade. Se fez milagres, não sei. Depende do que se entende por milagre. Se milagre é um acontecimento sem explicação, ainda hoje acontecem muitos mas naqueles tempos aconteciam muitos mais. Mas é, certamente, um milagre que, depois de passados tantos anos, em toda a Terra se celebre o nascimento do filho de Gabriel e Maria. 

Nas manhãs seguintes foi-se completando o presépio, cada dia uma nova figura, salvo o rebanho de dez ovelhas que entrou junto. Na noite de 24 de Dezembro, a Mãe ficou a trabalhar até tarde. Contra o combinado mantive-me acordado muito tempo mas acabei por adormecer. Na manhã de 25, ficou completo o presépio, via-se o menino dentro de casa ao colo de sua mãe, envolto num bonito manto de seda azul claro. José, continuava junto à porta, de sentinela a guardar o tesouro que meses atrás lhe entrara em casa. Na lareira, no sapato que lá deixara à noite, estava uma bola, uma bola grande e linda, de gomos coloridos de carneira, cheia de lã, a bola mais linda que vi na minha vida. 

- Foi Jesus quem deu, Mãe?
- O que é que tu achas?
- Penso que sim.
- Então foi.


 

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