Há dias, a notícia das retribuições miseráveis oferecidas a enfermeiros para trabalhar no SNS em regime de "outsourcing" foram motivo de pasmo e escândalo. De forma mais avulsa, têm aparecido ultimamente anúncios de baixos salários oferecidos a licenciados à procura de emprego, que chocam a opinião pública.
A informação do IEFP divulgada ontem resume e quantifica aquilo que já se sabia: Sem investimento reprodutivo não há crescimento económico sustentado, sem crescimento económico sustentado não há emprego qualificado. Durante mais de uma década, banqueiros e políticos direccionaram as poupanças (exíguas) dos portugueses e o crédito importado sem critério para investimentos de encher o olho aos votantes e os bolsos aos comparsas. Resultado: Cresceu exponencialmente a dívida, pública e privada, o país perdeu parte da sua já incipiente actividade industrial, o crescimento foi praticamente nulo, na ressaca da bebedeira os bancos vêem os incobráveis a subir imparavelmente, os contribuintes são chamados a pagar-lhes as contas, os mais velhos reformam-se quanto antes, os mais jovens e válidos emigram. E, por enquanto, continua tudo praticamente na mesma, salvo o crédito que deixou de escorregar como escorregava pela garganta funda dos embriagados. Ainda assim, persistem as ofertas de crédito ao consumo a juros que andam entre os 20 e os 30%! Um tipo de pechincha que embebedou muita gente e a que o Banco de Portugal continua a fazer vista grossa.
E, agora?
Agora, enquanto neste país não for colectivamente apercebido que mais do que os diplomas valem as competências, o facto de um serralheiro ganhar mais do que um licenciado em direito põe meio mundo assombrado. E, no entanto, não há nada mais natural neste mundo.
Se os licenciados abundam num país que reduziu o seu nível de actividade reprodutiva e escasseiam os serralheiros, é compreensível que os serralheiros sejam mais bem pagos que os licenciados. Por que não? Se a automatização tende a substituir os processos administrativos e tecnológicos mas em menor medida as tarefas manuais dificilmente automatizáveis, os serralheiros, enquanto forem poucos, não terão mãos a medir.
Por outro lado, o mercado do trabalho em Portugal continua segmentado e existe, sobretudo no sector público, uma rigidez que não permite a admissão suficiente de competências porque não existe a necessária demissão das incompetências: enquanto as últimas continuam não ameaçadas pelo despedimento, as primeiras ou esperam e desesperam, ou acabam por emigrar.
De qualquer modo, e já tenho apontado várias vezes isto neste caderno de apontamentos, enquanto os portugueses não tiverem a consciência cívica de que um diploma não vale por si mas por aquilo que o seu titular tem capacidade para fazer com ele, que a anedótica utilização de um título indevido é uma das causas do nosso atraso social, e que um chorrilho de doutores da mula ruça não faz crescer um país, a sociedade portuguesa continuará a espantar-se com o facto de poderem ganhar mais aqueles que são mais úteis, mesmo não sendo licenciados e muito menos doutores.
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Um dia, entrei numa oficina de reparação de automóveis, porque alguma coisa estava encravada no motor da minha viatura. Disse ao que ia ao primeiro oficial que me apareceu, e ele chamou, alto e bom som, para o fundo da oficina: Oh! Doutor! Chega aqui!
Apareceu um rapaz de fato de macaco, sorridente, pedindo desculpa de não cumprimentar, tinha as mãos cobertas de óleo.
Percebi depois que se chamava José Joaquim Doutor. Um Doutor, a sério, como poucos.
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