Sunday, July 08, 2012

TRADIÇÃO LUSÓFONA



No edifício da Lusófona ao Campo Grande, que começou por ser uma fábrica de lanifícios inaugurada em meados do sec XIX,  esteve aquartelado o Regimento de Engenharia 1. Na década de 60 do século passado, por se encontrarem saturadas as instalações da EPAM (Escola Prática de Administração Militar) no Lumiar, a  EPE 1 cedeu o sítio a um destacamento da EPAM para a formação de oficiais milicianos de administração militar. São os primeiros os mestres engenheiros, era ainda  a legenda afixada ao cimo do primeiro lanço da escadaria que, no edifício principal, levava às camaratas dos cadetes quando a EPAM ocupou o local.
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Sempre que por ali passo recordo algumas das cenas mais hilariantes a que assisti, ou participei, na minha ida à guerra. A maior parte dos que se apresentaram na EPE1 em Janeiro desse ano para o segundo ciclo do COM na EPAM, tinha feito em Mafra ou Santarém o primeiro ciclo, onde os jovens alferes de cavalaria formados na Academia Militar procuravam fogosamente, com a ajuda dos sargentos, incutir nos milicianos a disciplina, o rigor, a endurance, a estaleca e a cagança da cavalaria, bebidos na Academia. A mínima falha custava pelo menos o corte do fim-de-semana.  

Na casarão abandonado pelos mestres engenheiros, dos três  oficiais da EPAM, geralmente ex-estudantes universitários enjoados com as sebentas que tinham optado pela carreira militar, incumbidos da formação na especialidade dos cadetes milicianos, destacava-se o capitão Clarro pela originalidade dos métodos formativos nas três cadeiras que lhe competia ensinar. Os outros dois despacharam a matéria, que era de carregar pela boca, em menos de um mês por, dizia-se,  terem sido mobilizados para o Ultramar.

O Clarro era um dandy. Apresentava-se sempre impecavelmente fardado, escolhia para local das aulas um lugar ao sol de inverno, nas casernas o frio a a humidade só eram sofridos em dias de chuva, sustentava-se numa das pernas, dobrando a outra como um flamingo, encostado a uma parede. Os cadetes ouviam, de pé em semicírculo à sua volta, as suas prelecções de obtusa dialética.

Numa dessas manhãs de sol frio, o Clarro fez a apologia da cultura da cunha, depois da preparação do primeiro cigarro da manhã, um cerimonial matinal, que envolvia o manuseamento delicado da cigarreira dourada, do isqueiro Dupont, da boquilha preta rematada a ouro, computado por alguns mais dados à estatística, em trinta movimentos simples e demorados. A cunha, meus senhorres é um atributo de duplo mérrito: de quem a mete e de quem a aceita. E porquê? E passava a explicar antes que alguém discordasse.

De quem a aceita, é óbvio. Só é procurado para   esse fim quem tem, ou é julgado ter, o que dá no mesmo, mérito suficiente para fazer com que o objectivo pretendido seja atingido. De quem a mete, só é menos óbvio para quem nunca fez uma reflexão lateral do assunto. Quem é que mete cunhas? Obviamente quem está suficientemente bem relacionado para poder chegar até quem esteja disponível para as accionar. Quanto mais intenso for esse relacionamento e mais elevado o nível a que ele se realiza, maiores são as oportunidades de sucesso e maiores os seus resultados. A cunha, senhores cadetes, só está ao alcance dos melhores. Alguém tem dúvidas?

Ninguém se pronunciou, na guerra o silêncio é de ouro. E passámos à aula prática, igual todos os dias. Desempenhava-se no campo pelado de futebol, onze contra onze, como é das regras, os que sobravam, e seriam outros tantos, jogavam a deitar a bola para fora do campo. Explicava o Clarro que era uma técnica muito pessoal para avaliar o comportamento em grupo dos senhores cadetes.

Resumindo, quando chegámos ao fim do ciclo, era fim de Março, ninguém tinha a mínima noção da razão daquele tempo perdido e muito menos do que viria a seguir-se. No penúltimo dia, fomos convocados para uma formação na parada, ia falar-nos o comandante do curso, o major Rabaça. Chuviscava. Era a primeira vez que nos aparecia pela frente o Rabaça, constava que tinha casado com uma herdeira rica, era cavaleiro sem ser de cavalaria, apareceu-nos de uniforme número um e pingalim.

Discursou acerca do futuro que nos esperava, a maioria, se não a totalidade, iria ser honrada  com a oportunidade de defender a Pátria em África, bla, bla, bla, bla, bla, bla, agora tínhamos uma importante decisão a tomar. E indo directamente ao assunto, perguntou ao pelotão que, entretanto, tinha aberto fileiras: Quero saber se os senhores cadetes querem ser classificados por mérito ou por cunha? Quem for da opinião que a classificação deve ser atribuída por cunhas dê um passo em frente!
Ninguém deu. O Clarro, ao lado do Rabaça, sorriu discretamente.

Após uns breves momentos, rematou o Rabaça: Ainda bem que nos entendemos porque os senhores são cinquenta e seis e eu recebi cinquenta e cinco cunhas! Vamos a provas! O senhor capitão Clarro será membro único do júri. As provas realizam-se esta manhã, antes de almoço serão conhecidos os resultados.

As provas, com duração de uma hora, iniciaram-se às nove da manhã num dos pavilhões.
O Clarro entrou com um pacote de folhas de papel, mandou sentar, e ditou: Os senhorres são convidados a escrrever, utilizando a frente da folha de papel, sobrre um ( e só um) dos seguintes temas: 1- A questão do sudoeste asiático; 2 - O prroblema sexual do combatente.
No verso escrrevem o nome e número.

Pelas onze horas foram afixadas as classificações à porta da entrada para as camaratas.
Estávamos todos habilitados a administrar a guerra.

4 comments:

aix said...

Parabéns, Rui, por esta bela descrição alegórica e oportuna. A Lusófona é, então, um digno sucedâneo de tão notáveis e inteligentes predecessores para-bélicos. Se o ‘Clarro’ defendia a cunha, outros a praticavam. E não só em contexto militar.No liceu de Vila Real um profe aprovou um aluno que não acertara em nenhuma. Perguntado porquê o profe respondeu que era o único que não trazia uma cunha (de clérigos!) pelo que se compadeceu. Em contexto castrense também colhi os benefícios de umas tantas perdizes de caça para me isentar(fui subornante ativo). Tudo episódios de um País de cunhados. E o ‘Clarro’ tem um digno sucessor intelectual no obtuso Damásio.Abç

Rui Fonseca said...

Viva, grande Francisco!

Quando é que vamos almoçar?

Abç

Pedro Fonseca said...

Obrigado pela história engraçada tão bem contada!

João Miguel Vaz said...

Gostei muito, imprimi e vou passar a uma mãe "infoexcluída" por opção própria.
JVaz