Monday, December 31, 2018

NA CASA DO LOUVA-A-DEUS *


     
         
             ... eh!eh!eh! ... volto a dar conta, daqui deste lugar em que me encontro, do que ouço e vejo e me põe o pelo em pé. Gostaria de vos trazer boas notícias, mas lamento...

O outono ameno já lá vai, chegou o inverno e com ele os dias de neblina, de chuva, de frio, de neve, é tempo dos animais se refugiarem nas luras e os humanos temperarem a agressividade do tempo com gestos de boa vontade, mais comunhão e menos confronto, mais fraternidade e menos ódio, eh! eh! eh!  Boas intenções e muita conversa fiada à mistura, a espécie humana não é a mais hipócrita das espécies porque é a única capaz de o ser. Vive e mata-se adorando e ofendendo deuses, criados à sua imagem e semelhança, implorando-lhes favores, desfavores para outros. Gostaria de imaginar um mundo futuro que removesse o meu desalento e me insuflasse esperança, mas não tenho com quê. Sei que há quem, mesmo nas mais remotas distâncias da esperança, consegue iludir-se e superar-se. Durmo mal, porque dormito muito, e nas intermitências do meu sono sobressaltado assaltam-me pesadelos que só não me destroem de vez  por sobrecarga emotiva porque não sei quem nem como tem tido a gentileza de apagar-mos da memória.

Cá em casa continua a viver-se em regime de prisão domiciliária, somos os mesmos seis nos últimos dois anos e picos, contando comigo e os dois gatos. De vez em quando aparece aí um casal, sem filhos, raramente entra uma criança para convivência com as duas cá da casa. Quem vem regularmente umas quatro vezes por ano é uma velhota que fica uma semana na casa, anda sempre a esquecer-se onde deixou a caixa dos comprimidos,  e depois desaparece até à próxima.
Ultimamente, as garotas, que ficavam sempre encantadas quando alguma visita batia à porta, têm vindo a mostrar-se irrequietas, indisciplinadas e pouco entusiasmadas com estas visitas velhas que não lhes trazem gente das idades delas. A velhota bem tenta manter relacionamento amigável contando-lhes histórias contadas vezes sem conta, elas mantêm-se concentradas por algum tempo mas não tarda saltarem-lhe para as costas, como faziam quando eram mais leves e a velhota menos velhota. Há dias, a brincadeira terminou com a velha a praguejar em surdina quando viu, com elas às costas, caírem e quebrarem-se os óculos no chão.
O dia-a-dia das crianças, para mim monótono e sonolento, preenchido com o contar de histórias e trabalhos manuais, sem actividades que lhes desperte e fortaleça os músculos e os ossos, atormenta-lhes o corpo que pede relaxamento e distensão física que este encarceramento não consente. Falo por mim, esta clausura, que me tolhe os movimentos, está a tornar-me paralítico à medida que os anos passam. Não gemo quando me levanto, como a velha da caixa dos comprimidos, por uma questão de dignidade, mas apostaria que não me doem menos as articulações a mim que a ela. 
Entre mãe e filhas o relacionamento é gomoso, reforçado pela repetição, a despropósito, que o pai é mau, ele é mau, é mau, ele quer que elas frequentem a escola mas a escola é má, quem sabe o que quer aprender são as crianças, a escola é má porque quer ensinar o que as crianças não querem aprender... É verdade, é verdade, concorda e abana a cabeça a velhota dos comprimidos. Ele é mau, o pai há muito que agora é ele, os avós são maus, são, concorda e abana-se a velhota, os tios são maus, os primos são maus... o que são avós? o que são tios? o que são primos? ... O que são?, são maus! São todos maus, concorda e abana-se repetidamente a velhota, que acrescenta, o mundo é mau, é mesmo muito mau. O que é mundo? O mundo, explica a mãe e repete a velhota, o mundo é uma coisa má, mesmo muito má, apagam-se os nomes e os rostos na memória das crianças, submergidos na maldade generalizada. 

À noite, não sei o que se passa lá em cima de noite. No primeiro andar da casa há quatro quartos mas mãe e filhas dormem juntas na cama que antes foi cama do casal. Ouço-as a rirem-se, talvez estejam a fazer cócegas umas às outras, porque o riso  solta-se em crescendo até ao esgotamento que as sossega. Que tara, que desejos, que carências, que aberrações incitam esta mãe a esta colagem que não a despega das filhas por um instante sequer?

Forçado a dormitar de dia, passo as noites meio a dormir meio acordado até o sol nascer e a vontade de ir à rua para a mijinha matinal me acordar de vez e me contorcer o corpo em sofrimento.
Antes, quando o pai das crianças habitava na casa e saía cedo para trabalhar, levava-me à rua a horas convenientes, agora tenho que aguentar que mãe e filhas desçam coladas do andar de cima, geralmente duas horas mais tarde que antes da saída do homem da casa.
Se, enquanto espero e desespero que desçam, passa um amigo meu na rua, um daqueles que encontro durante a volta antes do almoço, e lhe envio um sinal de cumprimentos, ui!ui!, o que tu fizeste! aqui só abres a boca para bocejar e comer ..., impera lei da rolha, se a violas, por mais discreto que sejas, levas um berro de fazer tremer a casa de alto a baixo e um pano encharcado por cima do lombo.
Se, por acaso que penso ser muito improvável, o que aqui se diz chegasse ao conhecimento da carcereira seria, calculo eu, condenado a solitária, na cave, onde, aliás, nunca me foi consentido meter as patas, sem luz nem aquecimento, quase certamente sem paparoca, a verdade é muitas vezes inacreditável e perigosa. Mas manda a verdade que aqui se diga que certa noite ouvi entre a velha e a mulher que nos tem encarcerados uma conversa daquelas para acreditar quem quiser: falavam de vidas passadas, as crianças, todas as crianças são, até ao momento do nascimento, um repositório de conhecimento que se apaga quando inspiram o primeiro oxigénio, a sua alma é superior à dos adultos, o tamanho aumenta em cada reencarnação, daí que sejam, as crianças, entenda-se bem, mais capazes de decidirem sobre elas do que os adultos por elas e, daí, ser uma violência obrigá-las a frequentar a escola. Na mesma ocasião ouvi, pasmem!, se ainda não fecharam a boca de espanto, que alguém, mas não entendi quem, teria consultado uma vidente para conhecer quem fora seu antepassado. O resultado compensara o custo, em vida passada o consulente tinha sido não menos que Luís XVI. Esperançada, recorreu a esposa à mesma vidente, sem informar com quem era casada, e saiu-lhe a Maria Antonieta na rifa. Foi um delicioso delírio até ao momento em que, numa altura de confidências, souberam que a tão consultada vidente tinha atribuído a mesma antecedência a um casal amigo.
E a mim, que vida passada me tramou?
Perguntei insistentemente à velhota da caixa dos comprimidos quando a apanhei a jeito, mas, como a outra, ela não ouviu o meu olhar. 

Continuo a passar os dias e as noites sentado ou deitado no capacho, num canto da sala, se me levanto é para três saídas à rua, uma de manhã, outra à noite para alçar a perna, muito breves, tão breves que quando volto para o capacho sinto uma vontade intensa de voltar logo lá fora por não ter despejado quanto devia. É durante a saída, antes de almoço, para um giro nas redondezas que alço a perna à vontade ou encurvo as costas para fazer força no sítio devido. 
Depois dormito, se me levanto não ultrapasso aquela linha imaginária que circunscreve o território, uns quatro metros quadrados, em que posso dar meia volta e voltar ao capacho. Uma linha imaginária que se, por inocente distracção, a toco, desencadeio um berro dela capaz de acordar um morto. A primeira vez, logo no dia em que entrei cá em casa, o impacto do grito saído de um silêncio  estranho, estranho para quem deixara há poucas horas o sol, o mar, a vozearia nas ruas cheias de gente a qualquer hora, atravessou-me a espinha como um raio. E disse-lhe, com calma, não com medo, porque grita tão alto estando eu aqui tão perto? Mas ela não me ouviu, não compreendeu. Temos formas de expressão diferentes, a dela e os da espécie dela pelo som, geralmente em tom baixo, ela, comigo, pelo berro,  só não ouve quem não tiver bom ouvido, a minha, a da nossa espécie, lê-se nos nossos olhos, e ela não repara, nunca reparou no meu olhar. 
Hoje, dez anos depois, reconheço que fui tanso quando não respondi à estridência bruta daquele electrocutante primeiro grito com uma resposta à medida. Talvez ela me tivesse devolvido à procedência e eu estaria agora a regalar-me com o calor do sol e  a maresia do lugar onde fui parido e cresci até ser trazido para esta casa. Talvez tivesse, nesse caso, que fazer pela vida, mordiscar o que aparecesse, dado ou roubado, e não apodrecer neste capacho à espera que a bruta me faça sinal mudo para me aproximar da tigela apenas uma vez por dia. Primeiro come ela e as filhas, depois eu. Nada a reclamar se eu pudesse avançar logo que a tigela é colocada junto da linha invisível, normalmente meia hora depois de terminado o almoço delas. Mas não senhor, a tigela está ali a uns dois metros do meu faro esgalgado, contorço-me no capacho, sigo-lhe ansioso  todos os movimentos, e só após uma longa espera sou autorizado a avançar. Tanta fome, recordo que não me entra pitada na goela há um dia, precipita-me para o tacho e, de vez em quando, o tacho tomba. 
E lá vem o grito assustador pelo crime cometido pela larica, sem atenuantes. Pior que isso é ficar a tigela vazia, o chão sujo, de onde ela não me consente comer, limpa tudo para o lixo, e a fica-me a barriga a dar mais vinte e quatro horas em vazio.
Ponham-se no meu lugar: imaginem-se sentados a uma mesa para almoçar onde todos, naturalmente, começam a comer logo que a comida chegue e o dono da casa diz bom proveito! mas, tu não. A comida está à tua frente, tens tanta ou mais vontade comer que os outros, já não petiscas nada há pelo menos um dia, mas não podes começar a comer enquanto os outros não terminam e não tiveres permissão para comer. Não é a mesma coisa? Por que não? Somos diferentes, pois somos, mas todos somos animais que para viver precisam de comer. Ou não? Qual a diferença no funcionamento dos sistemas básicos entre os humanos e os outros animais?
E não se fica a tortura da espera pela tigela da paparoca. De manhã, quando ela se decide a colocar-me a coleira para a saída da mijinha matinal, já estou torcido e contorcido de tanto aguentar a apertar, um dia destes, a velhice trás destas coisas e eu agora já não sou assim novo, ainda mijo no capacho, e não sei, nesse caso, o que me possa acontecer, talvez lhe dê uma dentada bem ferrada se ela se atrever a ir além do grito histérico, e seja o que Deus quiser.
Durante o passeio antes do almoço assalta-me sempre a ideia de aproveitar a oportunidade de, nos breves momentos que ela me solta a corda, pôr-me ao fresco, dizer-lhe adeus de longe, passe bem que eu vou à minha vida, mas seria uma tentativa frustrada em poucas horas, porque quando aqui cheguei meteram-me debaixo do pelo uma coisa que depois vim a saber se chama chip, uma espécie de bufo que informa a polícia, a fuga é possível mas seria inconsequente, e lá volto eu para o capacho. 

E assim continuo sequestrado nesta sala, sentado ou deitado no capacho quase todo o dia de todos os dias. Um sequestro que me obriga a ver e ouvir o que me revolta sobretudo nesta época do ano quando, durante a curta saída diária vejo os sons, as luzes, o encanto estampado no rosto das pessoas pela celebração em família do milagre do nascimento, e me assaltam mais intensamente saudades dos meus irmãos, que será feito deles a estas horas, estarão também condenados a uma vida vegetativa, a servir de bibelots vivos em regime de sequestro? Para que sirvo eu, aqui, condenado em prisão perpétua a envelhecer neste capacho, neste canto da sala, a ver a entrar e sair os dois gatos pela gateira, também eles condenados a clausura, mas menos sofrida, perpétua mas menos sofrida, porque têm licença de saída para as traseiras e a vaguear por toda a casa,  e ser a clausura doméstica mais conforme à sua natureza independente mas aconchegada? Em tempos idos, os gatos caçavam ratos, agora a caça ao rato pode matar o gato que se regale a comer um rato semi morto por envenenamento, já não se passeia pelos telhados a miar por amor, brinca com o que calha quando é juvenil, come o que lhe põem na taça, e dorme a sono desprendido quando é adulto e velho, quer dizer, também não presta para nada.
De frio ou calor em casa, não me queixo. Não sei o que pensam os gatos, a arrastar a barriga da velhice ou mais a dormir que acordados no poleiro, já tenho tentado entendê-los pelos olhares,  cada vez mais embaciados, inexpressivos, quem sabe se já quase cegos, e não lhes descortino senão tédio cristalizado pelo conforto, pela papinha e uma inutilidade sem limites que só lhes exige submissão em troca. Bibelots vivos, ou meio vivos, como eu, que gozo, que prazer, que interesse, desfrutam os carcereiros da posse destes prisioneiros castrados sem crimes cometidos?
Se vissem o que eu vejo, manteriam os gatos aquele ar de múmia se sentissem o que eu sinto? Somos diferentes, não é por eles estarem velhos, meios cegos e surdos, que estes gatos sentados no poleiro não mexem um pelo, insensíveis ao que se passa na sala à frente dos seus bigodes. Não a mim, contorço-me no capacho, revolvem-se-me os interiores, apertam-se-me as meninges, por ver o estendal de perversidade que testemunho sem poder depor.
Quando, durante algum tempo acompanhei o Urs e a Cherry, o Urs parava a conversar com quem se cruzava nos nossos  passeios matinais. Com um discutia política internacional, com outro economia doméstica, com outro o mérito da homeopatia, com outro as potencialidades da parapsicologia, com outro curiosidades e aberrações da natureza, neste caso, do mundo animal.
Como a Cherry não era o meu tipo nem eu o dela, não havia conversas entre nós e eu ouvia o que dizia o Urs.

Foi por ele que fiquei a saber que há bichos fêmeas que matam e comem o macho depois que, truca-truca, os dois fizeram filhos, um tema que desencadeou uma discussão longa acerca da culpa e do livre-arbítrio, se sabem de que se trata, ainda bem porque a mim escapam-me.
Para o Urs o canibalismo sexual de alguns bichos fêmeas não é  uma aberração da natureza mas uma consequência da evolução das suas espécies ao longo de muitos milhões de anos. É assim e não há nada que demova a fêmea canibal a deixar de ser.
E o bicho homem, o maior predador de todas as espécies, e, sobretudo, da sua, que culpa tem dos actos que pratica se o caminho do livre arbítrio o conduz para a prática de tantas atrocidades? perguntou-lhe o outro.
O livre arbítrio é uma armadilha em que cada um pode cair consoante a fórmula dinâmica gerada no instante da concepção e das circunstâncias que defronta uma vez lançado no lago amniótico e depois no mar exterior. O homem, só em parte é um ser racional porque nunca se livra de alguns instintos primitivos comuns a todos os bichos. A alienação parental, por exemplo ...
... A quê?, perguntou o outro, um sujeito idoso, meio surdo, ao mesmo tempo que ajustava sintonia das orelhas e eu espevitava as minhas.
Alienação parental é o aprisionamento dos filhos de um casal por um dos seus progenitores, quase sempre a mãe, impossibilitando o pai de conviver com os filhos de ambos.
É possível? É legal?
É ilegal mas a justiça é lenta e a sequestradora aproveita a morosidade para fazer esquecer aos filhos que o pai existe e sofre com a perversidade montada pela mãe. É uma fórmula de canibalismo sexual feminino, que difere da do escorpião ou do louva-a-deus porque a deglutição da fêmea humana canibal é muito mais prolongada que a de outras fêmeas canibais. Se a espécie humana evoluiu para formas de comportamento diferentes das outras espécies foi porque, no ramo da árvore de evolução das espécies  subiu a patamares superiores de minimização de funcionamento dos seus instintos mais primitivos.
Percebo o que dizes, Urs, mas considero exagerada a comparação ...
E é, aparentemente, é, mas porquê? Porque a humanidade evoluiu sociologicamente e a fêmea canibal humana não mata o pai dos filhos porque o homicídio é crime pesadamente penalizado,  mas, ao recusar a convivência dos filhos com o pai, pretende matá-lo pela angústia da ausência e esquecimento dos filhos. As acções são diferentes mas os instintos que as comandam são os mesmos. Curioso é que o comportamento da fêmea canibal humana imita bem o do louva-a-deus que, em permanente oração, parece incapaz de matar uma mosca mas mata o parceiro sexual após copular com ele.
Queres dizer que poderíamos confirmar a validade da tua comparação se o homicídio e o canibalismo não fossem punidos? Que, nesse caso, a fêmea humana mataria e comeria o macho?
Que te parece?
Hum! ... Não sei. De entre um incontável número de espécies de seres vivos apenas um reduzidíssimo número mata e come o parceiro sexual...
... mas também apenas um reduzidíssimo de humanos, homens e mulheres, mas sobretudo mulheres, rejeita o parceiro sexual e rapta os filhos de ambos. 
A rejeição do parceiro não é condenável...
Não, é óbvio que não, aliás,  a ninguém pode ser imposto o martírio de viver com quem deixou de querer continuar a viver. Mas o rapto dos filhos é um crime, salvo motivo reconhecidamente grave, que só os meandros da justiça consentem que subsista traumatizando profundamente o pai, ou a mãe, e os filhos envolvidos no sequestro. É um crime motivado por instintos perversos do sequestrador. 
Por quê?
O perverso alimenta-se da dor provocada às suas vítimas.
Incluindo os filhos? Não é possível.
Pois não. O perverso inverte os efeitos perniciosos da perversão, neste caso sobre os filhos, invocando benefícios dos meios que lhe justificam os fins. A felicidade do perverso está no gozo da infelicidade das suas vítimas.

E esta conversa ficou por ali.

Recordo-me também que um dia, não sei a que propósito, o Urs demorou um tempão a convencer com quem conversava que os cães têm capacidades de telepatia que lhes permitem entender à distância o pensamento do seu acompanhante. Talvez o Urs tenha razão, mas nunca me pareceu que houvesse entre ele e a Cherry algum canal de comunicação telepática, a Cherry era de temperamento desobediente. Quando agora me recordo dessa revelação do Urs, fixo, por períodos longos, o meu olhar nos gatos tentando estabelecer com a mente deles uma comunicação de pensamento mas, ou os emissores estão apagados ou as linhas de comunicação não se ligam, não recebo qualquer sinal daquelas cabeças duras.
Curiosamente, leio com estranha precisão o que passa pela cabeça da nossa carcereira. Estranha precisão porque, como tenho dito e redito, um velho repete-se muito, não existe entre mim e aquela mulher, agora ali a três ou quatro metros à minha frente, a mínima vibração de empatia. E pergunto-me se leio por telepatia ou por inevitável conhecimento da extrema previsibilidade comportamental dela. Aliás, esta foi a diferença que separou a opinião do Urs, que andava a ler tudo sobre telepatia, da do amigo, que disse não haver evidências científicas de transmissão de pensamentos sem utilização dos cinco sentidos, reconhecendo, no entanto, sem dificuldade que a acuidade de cada um deles varia muito de espécie para espécie.
 A mim, cá em casa, cheira-me sempre a esturro,  mas não é pelo faro que chego lá ... 
E o que é que vai na mente desta carcereira na véspera deste Natal?
Nada de novo.
Em tempo oportuno comprou o quadro do advento, um abeto, velas finas de cera branca, que vai acender esta noite de véspera de Natal, depois senta-se com as filhas à volta da árvore, cantam as canções da época, de louvor ao Senhor, a mim vêm-me as lágrimas a ver tanta solidão quando o momento deveria ser de comunhão de alegria pela celebração do milagre do nascimento. Os gatos dormitam, como sempre, não há alegrias nem tristezas alheias que os comovam. 
Não estará pai, nem os avós, nem os tios, nem os primos das filhas da carcereira. Só elas três.

Há dias passou por aqui a velhota, visita habitual da casa duas ou três vezes por ano, que se esqueceu cá, aqui debaixo do sofá a caixa dos comprimidos, a não mais que um metro da borda do capacho. Telefonou no dia seguinte a perguntar se, por acaso, não tinha sido encontrada a sua caixa dos comprimidos. Estava preocupada, não por causa dos comprimidos, já tinha comprado outros, mas porque poderiam ser encontrados pelas crianças, receava que elas pudessem, por curiosidade, provar-lhes o gosto. Disparate! As miúdas não eram bebés, sabiam bastante bem o que era e o que não era bom para elas, melhor que os adultos. 
É verdade, é verdade, respondeu a velha do outro lado, e ninguém mais pensou na caixa dos comprimidos. Ali mesmo, ao meu alcance, reparei eu uns dias depois.
Hoje, depois dos cânticos do trio ao mesmo tempo que se extinguiam as velas, e a casa ficar às escuras, estendi a mão direita e puxei a caixa dos comprimidos para o capacho. Ao puxar a caixa, não sei que jeito lhe dei, saltaram os comprimidos. Cheirei-os, gostei do cheiro, provei um ou dois, não eram desagradáveis, para evitar problemas devolvi a caixa à procedência e os comprimidos à solta. 

Horas depois, não sei quantas nem como estava a muitas milhas dali, entre familiares e amigos que não via há tanto tempo. Estavam os meus pais, os meus sobrinhos, os meus tios, estavam os meus amigos, além de outros que eu não conhecia. Estavam também os meus irmãos vendidos e embarcados há mais de dez anos. Não os via desde o dia em que nos encontrámos numa reunião de convívio de indivíduos da nossa espécie. Todos me gabaram o pelo sedoso e a graciosidade máscula das minhas orelhas. Corremos atrás uns dos outros, nunca corri tanto em toda a minha vida, desforrei-me de anos de atrofia e tédio sem que os músculos, os ossos ou o coração reclamassem. Foram horas e horas a encher o papo de brincadeira, e ninguém estava exausto. Só não foi uma paródia infindável porque me ocorreu perguntar aos meus irmãos imigrantes como lhes corria a vida. Nada mal, depreendi, estavam em casa de gente cordata, que os estimavam, eram, se assim se pode exagerar, tratados como fazendo parte das famílias. 
E a ti, perguntou-me um deles, como te tratam?
Para não fazer figura de pouca sorte do grupo, engoli em seco as minhas angústias, os dias e as noites passadas no capacho e  o espaço limitado pela linha invisível que não me permite ir além de dois metros fora dele, a tortura da espera das horas da mijinha e da tigela à frente de tanta fome sem pode comer, dos berros que me arrepiam o sistema nervoso, do chip que não me permite evadir-me do cárcere, daquilo que vejo e me tortura sem poder denunciar.
Hum! Acabou-se a paródia, está a nascer o sol ... 
E, oh! diabos a levem, mijei no capacho... E agora?
Se ela me berra, leva uma dentada! Algum dia teria que ser. E talvez me entregue no canil... Mal por mal prefiro o canil.

E, já que tenho que esperar que desçam ao rés-do-chão, vou apanhar e esconder os comprimidos que sobraram.
Logo à noite, talvez haja mais farra.

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* Sequência de COR DE ROSA SHOCKING

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