És muito tola, já é quase
meio-dia, estás à espreita desde a entrada dos primeiros raios de sol no quarto,
ele não aparece, e tu aqui incomodada com o que lhe possa ter acontecido.
Lá que é estranho, é, ele move-se consoante o andamento dos astros, a estas
horas o bicho já devia estar cá fora há muito tempo. A tentação de atravessares
a rua e entrares por ali dentro é grande mas o receio de um raspanete é maior.
E se lhe aconteceu alguma coisa e precisa de ajuda? Se o homem, que vive
teimosamente sem companhia em casa, morreu? Aparentemente, ele ainda está rijo
como um pero mas com setenta em cima, os mesmos que tu, ninguém se livra nestas
idades que lhe dê o badagaio de um instante para o outro. Podias chamar a
polícia ou os bombeiros, não seria a primeira vez, mas se o velho decidiu ficar
mais tempo que o costume dentro de casa por uma razão qualquer, por ser domingo?
… Hoje é domingo? Ficava ele ainda mais furioso contigo e a polícia ria-se
outra vez de ti. Seria estranho, mas seria possível, até porque é domingo,
ainda que ele há muito tenha dispensado o calendário e o relógio, sabe lá ele
se é domingo ou outro dia qualquer. Não, não é por ser domingo que ele não está
já no quintal quando o sol já vai alto. Consomes-te com imaginações idiotas,
ainda estás em jejum, não saíste um momento sequer do teu posto de observação.
Já é quase meio-dia, está o sol a pino, em jejum sentes-te desfalecer, vá
lá, levanta-te e vai à cozinha comer qualquer coisa, agarra-te à cadeira,
hum!.. Volta a sentar-te, está tudo a rodar à tua volta, pois está. Aguenta uns
instantes de olhos fechados, vê se te reequilibras, avança o braço
direito, isso mesmo, agarra-te agora à portada da janela, firma-te nela,
volta-te e tenta agora pôr-te de pé. Abre os olhos, estás a ver? … O carrossel
parou. Vá lá, agora só mais um instante de sentinela, e depois, a passos
indecisos, avança pelo corredor, a mão direita a percorrer a parede até à
entrada da cozinha. Aqui, amparas-te à bancada, pegas num copo, enche-o de
água, e bebe-o …. Sentes-te melhor, hem? Agora vais à casa de banho, pela
primeira vez!, hoje, depois de te teres levantado da cama, cumprindo a rotina
diária com quatro horas de atraso. Há anos que te levantas por volta das oito,
não importa a inclinação do sol, para ti nunca muda a hora, por que é que mudam
a hora? Vais outra vez à janela da frente, e vê!, ele ainda não saiu de casa, vais à cozinha, a gata
atrás de ti, dás-lhe comida, geralmente o que te sobrou do jantar, bebes um
copo de água, fazes ah! e entras na casa de banho para o costume. Normalmente, por
volta das oito e meia, sentas-te à mesa, comes uma maçã ou o que houver, bebes
o café da manhã com uma torrada de pão escuro, levantas-te, os comprimidos na
gaveta, não te esqueças dos comprimidos, quinze por dia, cinco de manhã, cinco
ao meio dia, cinco ao jantar, hoje, já passa do meio-dia, deves tomar os da
manhã e os do almoço? Encolhes os ombros, e tomas dez. Vais outra vez à janela a
ver se ele ainda estará vivo, é bem capaz, ocorreu-te agora a ideia, de estar ele
por trás da janela a troçar de ti.
Sais todas as manhãs de
casa, atravessas a rua para lhe dar bons dias, e tentar meter conversa, se ele
está a distância conveniente, o que, de vez em quando, acontece. Aos teus bons
dias, faz o asno o favor de responder, quanto a conversa fiada muitas vezes não
consegues arrancar-lhe uma resposta de mais de dois ou três monossílabos, não,
sim, pois, pois é, pois foi, tirados a custo, sem levantar a cabeça nem
interromper o trabalho. Ainda assim, encostas-te ao muro, e ali te demoras a
dar as notícias da rádio ou ouvidas nas idas às compras, e que não chegam ao
Austero, que não sai dali, do meio jardim meio quintal, não ouve rádio, não lê
jornais, ele nem sabe que a televisão existe. Quando te acabam as notícias do
dia, e já acrescentaste algumas por tua conta, fazes um compasso de espera,
ficas a olhá-lo por mais algum tempo, e até logo! O Austero moita, encolhes os
ombros, suspiras fundo e vais às compras. Só tu tens pachorra para tentar
civilizar aquele penedo abandonado do mundo. Vá lá, suspira outra vez. Isso
mesmo.
O Austero, reconheça-se,
tem um jardim invejável, é a sua obsessão, o seu mundo. Há muito que deixou de
se interessar pelo que se passa para lá dos limites do seu território. Os
mantimentos encomenda-os ao carteiro, que por ali passa diariamente a fazer o
seu trabalho, tão antigo como a história, e se incumbe, quando lhe pede, de lhe
comprar os remédios na farmácia mais próxima, a dois quilómetros dali.
O espaço ocupado pelo
jardim e pela horta é relativamente pequeno, uns vinte de frente por
quinze de comprimento, mas preenche-lhe o tempo todo. Se alguém, geralmente as
mulheres, passa e pergunta, apontando que flores tão bonitas são aquelas ali, o
mais provável é que ouça resmungar uma pequena parte do que o Austero sabe
acerca daquelas e de muitas outras de entre os milhões que enfeitam o
planeta. São muito raros os momentos em que a concha se abre, mas não para ti,
em que ele dá conta, mesmo assim sempre regateada, de alguma satisfação de
viver. O que ouves, ouves por tabela, se estás junto ao muro e passa alguém a
meter conversa, que lindo jardim o seu, e a fazer perguntas. Raramente vai o
Austero além de uma resposta seca, mas, sabe-se lá por que encanto ou intenção,
de vez em quando anima-se a testar a atenção que os curiosos prestam às
respostas que ele dá. Lembras-te do nome daquelas ali? Pois não te lembras, é
normal, fomos por aí fora, andámos às voltas, e era de crer que te
esquecesses por onde começámos. Pois é … São azáleas, da família dos
rododendros. Até as flores têm famílias…, diz em tom amargo, cala-se, e assim
acaba a conversa, vai para dentro, e nem boa tarde.
Há uns tempos, num desses
raros momentos de conversa curta, admitiu, talvez em sequência de insistente
sugestão tua, que estava a precisar de quem o ajudasse a cuidar do jardim e do
quintal, o tempo não perdoa e as forças já não são o que tinham sido. De modo
que estava a pensar contratar alguém que lhe desse uma ajuda, não mais do que
um dia por semana, talvez até uma manhã chegasse, e até já tinha colocado um
anúncio com a ajuda do estafeta. Foi a notícia mais feliz que recebeste depois
de todos estes últimos anos de reencontro furtivo após longos anos em que
nenhum viu ou soube do outro. Sem preocupações com rosas, hortênsias, azáleas,
petúnias, frésias, entre um número sem conta de várias espécies que o mantinham
ensimesmado e alheado do mundo e afastado de ti, é agora a altura de se
aconchegarem um ao outro, por que não? Afinal de contas tinham nascido e
crescido em frente um do outro, quase da mesma idade, mas, com quinze anos, ele
era um fedelho mal acabado, que não te entusiasmava nem ele parecia mostrar
qualquer interesse por ti, apesar de algumas tentativas que fizeste para o
capturar para uns momentos de iniciação. Que idades tinham, então? Oito? Nove? Ficou-lhe
desses tempos uma cicatriz no cocuruto da cabeça, que o cabelo encobria,
resultado da queda de uma pedra do muro, que se desprendeu quando ele tentava trepá-lo
para vir ter contigo. Ele podia entrar pelo portão, sempre aberto, mas preferia
sempre trepar o muro e provocar a tua excitação a vê-lo saltar.
Inesperadamente, o Austero teve respostas
de dezenas de candidatos quando esperava enorme dificuldade que alguém aparecesse,
a última vez que precisara de alguém para lhe reparar um cano de água tinha
andado o carteiro Seca e Meca para descobrir quem soubesse do ofício. Agora,
passados poucos anos, recebeu respostas de empresas especializadas, de gente
que se confessava inexperiente mas cheia de vontade de acertar até mestres em
agronomia e doutores em história. Nenhum indicara o preço, salvo um, por sinal
o mais habilitado no assunto, trabalhara no município durante alguns anos a
cuidar dos jardins públicos. Um achado. O mais espantoso, contudo, é que,
quando lhe perguntara quanto lhe teria de pagar pela colaboração, o homem
estranhou que o Austero estivesse completamente alheio do que se passava pelo
mundo. Por onde é que tem andado? Não costuma ver televisão, não ouve rádio,
não lê jornais? Não fala com ninguém? Fala comigo a vizinha, mas tenho pouca
paciência para aturar conversas. Não tenho motivos nem curiosidade sequer para
saber o que vai pelo mundo. Vivo para o meu jardim e a minha horta, e só a
idade me obriga agora a recorrer a alguém para me ajudar. Quanto lhe terei de
pagar? A mim, nada. Antes, pelo contrário, terá de ser o senhor a dizer quanto
lhe tenho que pagar para trabalhar no seu jardim. Ora essa, um de nós, ou está
a ver o mundo às avessas ou ainda não acordou. E beliscou-se. Hum! Creio que
estou vivo e acordado. Senhor Austero, é natural que esteja confuso, a
alteração aconteceu recentemente, certamente o carteiro não passou, entretanto,
por cá. Há algum tempo que não me aparece, é verdade, estou quase sem fármacos
e sem soja, sou vegetariano, como da horta, estava a pensar até pedir-lhe a si
que fizesse o favor de me fazer essas compras. O mais provável é que o carteiro
não volte a passar, informou o candidato. Os correios estão a dispensar
pessoal, já ninguém envia correspondência pelos correios, a entrega de volumes
está a ser feita por drones, uns falcões artificiais, que entregam e levantam
encomendas, voando para onde lhes mandam as instruções que recebem. Acabaram-se
os selos, os envelopes… A lambidela na goma para fechar as cartas já tinha
acabado há muitos anos, acrescentou Austero para dar conta que não estava tão
fora das mudanças do mundo.
E foi assim que o Austero entregou o
trabalho e se enclausurou em casa. A princípio ainda dava umas voltas pelo
jardim e pelo quintal, certamente a verificar o trabalho realizado pelo oficial
contratado, mas desde há dois dias que não o vês.
A porta das traseiras está aberta. Austero! Nenhuma
resposta. Espreitas, a medo, para dentro da casa, o Austero está sentado num
banco de madeira, no meio da sala, voltado para a janela da frente, a que dá
para a rua, fechada, a janela voltada para o jardim está semiaberta, os
cotovelos nos joelhos a segurar a cabeça calva, a cabeça pendente para o chão
não se desvia com a tua presença. Austero! Austero! E
a voz sai-te trémula e enfraquecida pela dúvida do que lhe estará a provocar
aquela imobilidade que não reage à tua presença. Avança, vá, avança, coloca-lhe
a mão sobre o ombro, Austero, o que se passa? Há quantos anos não lhe pões a
mão no ombro? Cinquenta? Uns cinquenta, sim, não menos. Austero levanta
indolente a cabeça, fita por instantes a janela, com o olhar distante disse,
olá vizinha, e volta, indolente, a fixar o olhar no chão. Austero, que se passa
contigo, fala por amor de Deus! Sentes-te doente, Austero? Fiz um mau negócio, diz,
e começou pausadamente a explicar-se sem despregar os olhos do chão.
Fiz um mau negócio, e agora sinto-me a morrer,
porque entreguei os cuidados do quintal e do jardim, e o rapaz insistiu que
fosse assinado contrato, por mim e por ele, está visto, comprometendo-se ele a
cuidar das flores e da horta, por um prazo de três anos, recebendo eu, nota
bem, recebendo eu uma retribuição, paga por ele, pelo trabalho por ele
prestado. É inacreditável, disseste tu. Pois é, mas foi assim que fiz um mau
negócio. Não entendo, mau negócio, porquê? Não tens que te maçar a trabalhar e
ainda recebes algum em troca, concluíste tu, entusiasmada com as perspetivas
que descortinavas nesta oportunidade imprevista. É verdade, embora seja
estranho, mas parece que o mundo está a dar uma volta, inconcebível há pouco
tempo atrás. Como há, ao que me disse o rapaz, cada vez menos trabalho e mais
gente a querer trabalhar, ganha mais quem fica parado e menos quem vai
trabalhar. Ora eu precisava de alguém que me ajudasse mas agora estou impedido,
por contrato, de pegar sequer numa sachola.
E qual é o mal? Tens alternativas, … tens
mais em que pegar, disseste tu com entoação intencionada, que ele não percebeu
ou fez-se desentendido, e ficou calado. Podes renegociar o contrato, não? Pois
aí é que está o problema. Assinei um contrato por três anos, se quiser
terminá-lo tenho de indemnizar o rapaz, é muito dinheiro …
Mas por que tens tu que pegar na sachola?
Disse sachola como poderia ter dito outra ferramenta qualquer … num jardim
e uma horta usa-se muita ferramenta, faz-se muita coisa … semeia-se, planta-se,
rega-se, arrancam-se as ervas daninhas, colocam-se estacas, acariciamos as
flores, falamos com elas, sabias? Cuidar de um jardim, ou de uma horta, é um acto
de dedicação a um amor permanente, há muita gente que não sabe isso, mas é.
Agora …
Agora não podes sequer olhar para elas? Posso,
claro que posso, mas é diferente … Assim tanto? Tanto quanto possas imaginar
entre pensar em quem amas sem lhe poderes tocar, disse ele com amargura
evidente na voz. E ficaram ambos calados por longo tempo, a olhar os raios de
sol, coados pelo entardecer, a fugir da janela em frente.
É assim tanto dinheiro que tens de lhe
pagar para ele se ir embora? Uns largos milhares … não tenho alternativa. Não
me digas que vais pagar uma fortuna para voltar a trabalhar por amor ao
trabalho. Não posso acreditar. Dizes bem, por amor ao trabalho com as minhas
flores, com a minha horta. Tem juízo, Austero! Com a reforma que tens mais esta
remuneração que te paga quem trabalha para ti, podíamos fazer companhia um ao
outro e ter uma velhice regalada. Cozinhávamos para os dois, limpávamos a casa,
que bem precisa, disseste, mas logo te arrependeste. Podíamos viajar … Podíamos
ir até ao norte! Ao norte? Mas o que é que eu ia fazer ao norte?
Ficaste a olhar para ele, sem dar
resposta, porque o turbilhão de ideias engendradas pela tua ânsia de recuperar
o tempo percorrido por caminhos divergentes atropelava-se numa realidade
amarga: a lembrança da tua excitação juvenil de o ver saltar o muro era
irrepetível porque não havia nele agora o mínimo interesse sequer de atravessar
a rua.
Na altura, ninguém seria capaz de prever
o desvio que a queda da pedra solta do muro iria provocar nas trajetórias de um
e do outro. Dias depois do acidente da pedra, suturada e sarada a ferida, o
Austero espreitou e esperou que tu aparecesses do outro lado da rua para voltar
a saltar o muro. Voltou a espreitar nos dias seguintes, mas não apareceste,
tinhas ido de férias para a praia. Poucos anos depois, tinha ele crescido por
fora e tu muito mais por dentro, começara em ti a ebulição das hormonas, e as
esperanças das mães vizinhas, de verem os filhos casados com outro, foram
arrasadas quando te foi impossível esconder o teu envolvimento com um fulano,
dez anos mais velho, de fortuita passagem pela tua vida, de que te ficou um
filho, que há tanto tempo perdeste de vista. Por onde andará ele agora?
Não, não me interessa nem o norte nem o
sul, vou pagar a rescisão do contrato porque só assim voltarei a viver. Agora,
assim, não vivo porque vivo morto. Tenho uma alternativa, disseste tu com tanto
entusiasmo que até ele pareceu despertar do seu torpor: Eu contrato-o para me
fazer as compras, as limpezas, cozinhar, há já algum tempo que tinha intenção
de admitir alguém. Pagando, claro. Se tiver alguém que faça o que preciso e,
ainda por cima, me pague para o fazer, faz-se a transferência já amanhã, tu
ficas livre dele e eu fico com mais tempo para vir até aqui ver as flores
contigo … se me deres esse gosto …
Seria uma boa ideia, mas não é assim que
as coisas estão a funcionar agora, disse-te ele. Para esses trabalhos que
referes não há quem os queira executar sem retribuição, aliás, cada vez mais
elevada. São os trabalhos que dão a quem os realiza uma sensação de felicidade,
de realização pessoal, que têm maior procura e menor oferta. Já há poucos
jardins..., e pouco trabalho deste, um género de trabalho que as pessoas pagam
para os poder desfrutar, por assim dizer.
A ouvi-lo, mobilizaram-se-te os neurónios
com o máximo empenho para descortinar uma derradeira solução, que permitisse ao
Austero voltar a dedicar-se às flores e às hortaliças sem cair no
incompreensível disparate de espatifar tanto dinheiro para voltar a trabalhar
no seu jardim e na sua horta e, sobretudo, conquistá-lo para um final de vida a
dois, no mesmo lado da rua.
Espera!, disseste tu. Levantaste a mão
direita, olhaste-o fixamente nos olhos compondo um tempo de espera a sugerir
que uma ideia ganhava forma e ia saltar dali a pouco. Baixaste a mão, e
abeiraste-te dele para lhe dizer como quem conta um segredo: Talvez eu possa
mandar fazer um jardim, … tenho algum terreno, pequeno, é certo, mas dá para
instalar uns canteiros, plantar umas flores… E transferimos o teu jardineiro
para o meu jardim. Que te parece? Parece-me que ele não aceitará, respondeu,
serenamente, o Austero, nem desapontado nem determinado, e foi como se, no
salto que preparava para dar, reerguesse o muro que ela tentara derrubar. Sabes
bem que o meu jardim não é um jardim qualquer. Um jardim é uma construção de
amor duradouro, já te disse. E o amor, para ser duradouro, leva muito tempo a
construir, aliás, nunca está acabado porque está sempre em construção. Se sabes
quantos anos tem este jardim, podes avaliar a sensação que um amor tão antigo
pode suscitar em quem está nele envolvido. Está decidido, vou pagar a rescisão
do contrato. Afinal de contas para que quero eu as poupanças que juntei ao
longo da vida?
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