Sunday, December 25, 2016

O AVÔ

Sentou-se o homem, à espera do autocarro das quatro, num dos blocos de cimento que resguardavam a entrada de automóveis a menos de uma dúzia de metros da igreja, e a olhar o espaço à volta começaram a desbobinar-se-lhe as imagens desbotadas pelo tempo, quando na estrada tangente  ao largo acanhado passavam menos automóveis que carros de bois. Agora, atrás de um vinha logo outro lá acima. Sem praga automobilística que ameaçasse quem desse uma salto para a estrada atrás da bola, aquele era um espaço disponível onde, ao fim da tarde, se juntava a miudagem da primária para o jogo com bola de meia. Faziam as equipas, por escolha alternada de quem comparecia, os dois melhores em campo. Os últimos escolhidos, defendiam as balizas definidas com os sapatos, que todos descalçavam por uma questão de princípios democráticos e de poupança do material.  
No espaço agora reduzido a pouco mais de metade, entretinha-se naquela tarde com uma bola de borracha um puto, quatro, cinco anos, fintando adversários que só ele via e rematando contra o muro, mais em jeito do que em força, não fosse a bola ao fazer ricochete escapar-se para a estrada.
Quando a bola veio por capricho ter com ele,  o homem devolveu-a ao pequeno jogador com o pé mais pronto e deteve nele um olhar demorado na tentativa de reconhecer na cara do pequeno  rapaz sinais de alguém do tempo em que o largo era todo deles.
Como te chamas?,
perguntou o homem ao garoto para início de conversa, mas não obteve resposta. O puto continuou entretido com os seus dribles e remates suaves, que interesse tem o meu nome, repara na minha técnica.
E o teu pai, como se chama o teu pai?
Nada, o puto não abria  boca. Esteve tentado  a fazer  um palpite, procurando no rosto do rapaz vestígios dos rostos dos que poderiam ser os dos avós dele, mas conteve-se para não errar, acertando. Tirar alguém pela pinta é arriscado porque há sempre quem não seja filho ou neto de quem lhe disseram que era.
Onde moras?
Respondeu-lhe o jogador com cara de quem não percebeu a pergunta, mas já era, em todo o caso, uma resposta.
Onde é a tua casa?
O puto parou por uns instante a bola debaixo do pé direito, olhou para a casa em frente, do outro lado da estrada, é aquela, disse no atirar brusco da cabeça que já informava o homem de alguma coisa mais.
E a tua mãe, como se chama?
Mas que te interessa a ti, desconhecido, o nome dela ou dele?, repara mas é neste domínio do esférico, respondeu o pequeno jogador com mais dribles e atirar para um golo de levantar um estádio. O homem bateu palmas, em resposta o rapaz redobrou as fintas aos defesas e atirou para o canto inferior da baliza, se atirasse demasiado por cima poderia ficar sem bola, para lá do muro havia um cão a guardar a propriedade vizinha. 
Estava a conversa entre o velho e o jovem neste nem digo nem nego, quando da porta entreaberta da igreja saiu uma mulher, encostando-a atrás de si.
São horas de ir para casa,
avisou a mulher sem que o aviso parasse os dribles e os remates sem defesa possível.
É seu filho?
Filho??? Era bom, era!
Sorriu a mulher entroncada, rosto redondo rosado,  cabelo claro, talvez pintado, comprido, amarrado atrás num carrapito farto, pelos cálculos do homem deve ser mais velha do que aparenta.
Não é mãe, é avó do imparável driblador. É, por assim dizer, a dona da igreja, a igreja está por conta dela ou ela por conta da igreja, não sei se vai dar ao mesmo, o padre, é de São Tomé veja bem, vem, normalmente, para a missa de domingo, cerca das onze, e, depois do vão em paz e que o Senhor vos acompanhe, abala para outra freguesia porque párocos há cada vez menos e paróquias mais ou menos as mesmas. Agora mesmo tinha ela acabado de limpar, arrumar e colocar nos sítios certos os precisos e os paramentos para a missa do galo. Que estava marcada para as dez, a falta de sacerdotes dá nisto, de ter de cantar o galo duas horas antes da meia noite.
A senhora é de cá?
Não senhor, sou russa, mas já cá estou há vinte anos.
Russa ... vinte anos ... não se lhe nota sotaque. Como é que veio cá parar?
Andanças da vida ... que levariam mais que uma noite inteira a contar ... Andei por muito lado aos baldões, compreende?, antes de dar à costa aqui. Em Lisboa juntei-me com um português, que era destes lados, tinha mais vinte anos que eu, faleceu há dois, ... foram os melhores da minha vida ... Com dezassete já tinha uma filha, que é mãe deste maroto ...
E o pai do miúdo é de cá?, perguntou o homem baixando a voz, mas era escusado bichanar porque a concentração requerida nas fintas aos defesas e os remates imparáveis à parede não davam para o puto ouvir, mesmo em tom alto, o que diziam os velhos um ao outro.
O pai dele é de cá, e não é ... Como é que posso explicar isto ... A minha filha é enfermeira, fez agora este mês quarenta e dois, casou e descasou duas vezes antes de emigrar para Inglaterra com um colega, manda notícias de vez em quando e algum dinheiro, e eu cá estou com o neto ... A mim, nunca ela me disse quem era o pai da criança. Insisti vezes sem conta, mas ela amarrou-se a um segredo insondável que não devia ser permitido, as crianças têm o direito de conhecer de quem são filhos, não lhe parece? Dizem para aí que o pai é um fulano de cá, metido em negócios da droga, desaparecido do mapa antes do puto nascer. Quanto a mim, o pai é um médico que trabalhou com ela no hospital, é casado, com filhos, muito conhecido no meio. Aí tem a história a correr rápido da minha vida.
Por instantes, interrompeu-se a conversa entre os velhos, alarmados por ver o jogador correr atrás da bola que se desviara para a estrada em resposta a um remate menos suave contra o muro. E foi nesse relance de corrida que o homem reconheceu, não o do pai, mas o jeito característico de correr do avô do rapaz. Calou consigo a descoberta. Que direito tinha ele de confirmar o que dizia o povo se à avó confortava convencer-se que o neto era filho de médico e não de um traficante de droga?
E o senhor? ... O que é que o faz estar aqui sentado a estas horas a apanhar frio?
Estou à espera da camioneta das quatro ...
Bem pode esperar sentado, porque esta tarde a camioneta não volta a passar ...
Não???
Pois não. No inverno, em vésperas de feriados e fins-de-semana a camioneta das quatro deixou de passar há muito tempo. Não tinha clientela que justificasse o retorno. E hoje é noite de Natal, as pessoas querem estar em casa com a família.
Posso chamar um táxi, não?
Vai para longe?
Ainda vou hoje para Lisboa.
Ui! Conta passar a noite de Natal no comboio?
Se não encontrar hotel por aqui para esta noite.
Hotel, aqui, não encontra mas pode encontrar hospedaria ali em frente. Cama e jantar. Tenho um frango a assar no forno, com batatinhas e cebolinhas. Ah! Temos também uma canjinha do frango para começar a aquecer. Agrada-lhe?  Depois às dez temos a missa do galo. É católico?
Sou crente. Creio que sou ignorante.
Eu era ortodoxa mas ninguém me perguntou por contas quando me propus tomar conta da limpeza e arranjo da igreja. Mas venha daí, vamos para casa, que começa a arrefecer e os anos não perdoam. Edu, vamos para dentro!
Eduardo?
Não, não, é mesmo Edu, só Edu. Não sei onde foi a mãe dele desencantar tal nome.

Avançou a mulher com o neto pela mão para atravessar a estrada, a olhar à esquerda e à direita, o homem,  a olhar a casa de alto a baixo, enquanto atravessava a estrada, sorriu-lhe.
Habitamos no piso de cima, é o único senão da casa, subir e descer escadas sempre que temos de vir cá abaixo. Quando comprámos a casa, comprámos ruínas. Aproveitaram-se as paredes exteriores e pouco mais. Deve ter estado abandonada durante muitos anos, talvez mais de trinta, disse-me um dia a vizinha que vivia do outro lado da rua.
Disse vivia, já não vive?
Ah não... Se ainda fosse viva, pelas minhas contas teria hoje mais de cem anos ... Ora cá estamos nós em cima. É puxado, hem! O frango deve estar pronto, ... as batatinhas ... prove lá esta mas sopre-lhe para não queimar a língua ... está cozida, não está?, bem me parecia. Começamos pela canjinha ... frango da capoeira ... temos uma capoeira ali atrás ... amanhã mostro-lhe. Lá em baixo ...
Lá em baixo foi em tempos uma adega ...
Como é que sabe?
Com uma porta larga deve ter sido porta de adega ...
Ah! É uma suposição?
Neste caso, é uma certeza. Nasci aqui.
Oh céus! Já poderia ter dito há mais tempo ...
Não tive oportunidade. Mas não se perdeu nada com o atraso, ou perdeu?
Não, não, de modo algum. Quando diz que nasceu aqui  quer dizer que nasceu aqui na aldeia, é isso?
Nesta aldeia, nasci aqui ...
Aqui mesmo?
Ali naquele canto, ao lado de onde agora construíram uma casa de banho. Antes, a casa tinha menos profundidade, a casa de banho era lá atrás, no quintal ...
Onde agora tenho as capoeiras?
Presumo que sim. O quintal não era assim tão grande e agora, com o alongamento da casa, é certamente mais pequeno.
Estou, como se diz por aqui, completamente banzada!
Não esteja. A casa é sua, o meu pai vendeu-a tinha eu doze anos, emigrou para França em 64, a minha mãe foi ter com ele dois anos depois levando-nos com ela, a mim, ao meu irmão e à minha irmã. Com algumas economias que juntaram compraram um apartamento na cidade, com melhores condições, vínhamos a Portugal todos os anos em Agosto, e por aqui a visitar os amigos. Depois os anos foram passando, esta casa ficou abandonada às agruras do tempo, um dia destes ainda compramos isto, dizia o Pai, custa-me ver a casa a desfazer-se ... e que fazemos depois? vens para cá? perguntava a Mãe, e o Pai não tinha resposta. Ficámos todos satisfeitos quando um dia, já lá vão muitos anos ...
Vinte?
Talvez vinte, sim, talvez vinte, encontrámos a casa recuperada. Ao meu Pai vieram-lhe as lágrimas aos olhos ... não porque a casa fosse de outrem mas porque alguém lhe tinha dado vida à casa ... ... ...
E o que é que fez vir até cá agora no começo do inverno? Tem casa em França, deduzo ...
Tenho um pequeno apartamento nos arredores de Paris ... Fui motorista de longo curso toda a vida, ainda trabalhei durante uns anos na Citroën, mas do que eu gostava era andar na estrada. Resultado, tive cinco filhos, quase um de dois em dois anos, um dia cheguei a casa tinha a mulher desaparecido para parte incerta ... fartou-se de tantas ausências... percebi ... um homem não deve andar muito tempo fora de casa, não é?
E agora?
Reformei-me, vivo sozinho, reunimos-nos todos os anos pelo Natal. Este ano lembraram-se os filhos de passar o Natal na neve, convidaram-me, insistiram, mas para que iria eu apanhar frio se o Natal para mim só é Natal junto à lareira? A saudade ou o instinto trouxe-me aqui este ano no inverno. Cheguei às dez no comboio, um quarto de hora depois desembarquei aqui. Percorri todos os caminhos da aldeia e quer acreditar que não encontrei ninguém conhecido? Noutros tempos a aldeia era uma alegria, rua abaixo, rua acima, bom dia, boa tarde, para toda a gente. Agora há mais casas arruinadas que com sinais de gente lá dentro.
O que há mais por aqui são velhas ... velhos também há, mas muito menos ... Está bom ou não está bom o franguinho?
Está excelente!
E a pinga?
Uma maravilha... O Edu ... saiu?
Parece-me que se escapou há pouco, talvez tenha ido à casa de banho. Edu! Edu! Edu! Não, na casa de banho não está, onde é que se terá metido o maroto numa casa tão pequena? Edu!!!!!! Vou lá abaixo ao rés-do-chão ...
...
Uf! estava no rés-do-chão, adivinhe a fazer o quê? Pois, é difícil adivinhar. No rés-do-chão temos uma sala ampla com lareira, televisão, essas coisas que não cabiam cá em cima. E um quarto para hóspedes. O Edu ganhou com o avô o gosto de olhar para o lume, passavam horas seguidas à lareira à conversa um com o outro. Ouviu-nos falar, foi colocar madeira na lareira ... de vez em quando apanho cá cada susto com as aventuras dele ...
Mas hoje parece muito calado, não lhe parece?
Quando não conhece as pessoas, é tímido, depois que ganha confiança não se cala. Comigo leva o dia a fazer perguntas, umas em cima das outras, sabe como é?, e depois, e depois, e porquê, e porquê ... agora quer que lhe explique como consegue descer o Pai Natal pela chaminé ... por cá ainda se mantém esse costume.
Edu, diz-me lá o que pediste que te traga  o Pai Natal esta noite? perguntou o homem.
O meu avô de volta..., respondeu sem hesitar o garoto.
Já viu no que estou metida? Como é que  me posso sair desta?  Bom, são quase dez horas, isto fica assim tal como está, arrumamos quando voltarmos ... E passaremos a meia noite à lareira. Depois voltamos para cima porque mesmo com a lareira acesa o quarto de hóspedes não é recomendável no inverno. Faz lá um frio ...

Hombrechtikon, 24 de Dezembro de 2016

2 comments:

Pinho Cardão said...

Excelente, caro Rui. Bonita e bem escrita história de Natal!
Votos amigos de um Bom Ano Novo

Luciano Machado said...

Obrigado Rui. Belo presente de Natal!
Para ti e toda a família votos, meus e da M João, de um 17 pelo menos um pouquinho melhor que o que acaba.
E continua a mandar os teus Contos que são sempre benvindos. Com amizade. Luciano.