Thursday, October 29, 2015

UCRÂNIA, ANOS TRINTA DA COLECTIVIZAÇÃO


"Que recordação temos nós de Béria? Da Lubianka? A minha mãe ficou calada ... Uma vez recordou como num verão, depois das férias, ela e o meu pai regressavam da Crimeia. Atravessavam a Ucrânia. Isto foi nos anos trinta da colectivização ... Na Ucrânia havia uma grande fome, golodomor em ucraniano. Morreram milhões ...morriam aldeias inteiras ... Não havia quem enterrasse os mortos ... matavam os ucranianos porque eles não queriam entrar para os kolkhoses. Matavam-nos à fome. Agora sei isso. Em tempos tinha havido a fortaleza de Zaporojié, o povo lembrava-se da liberdade ... A terra ali é tal que espetamos uma estaca e cresce uma árvore. E morriam à fome ... como gado.Tiraram-lhe tudo, até à última migalha. Cercavam-nos de tropas, como num campo de concentração. Agora sei isso ...Tenho uma amiga ucraniana no trabalho que ouvia a avó contar ... Como na aldeia deles uma mãe matou o seu próprio filho com um machado para o cozer e dar de comer aos outros. O seu próprio filho ... Tudo isso aconteceu ...Receavam deixar as crianças saírem de casa. Apanhavam as crianças, como os gatos e os cães. Escavavam na horta, apanhavam minhocas e comiam-nas. Quem podia, arrastava-se até à cidade, até aos comboios. Esperavam que alguém lhes atirasse uma côdea de pão... Os soldados expulsavam-nos a pontapé, à coronhada ... os comboios passavam a toda a velocidade. Os condutores fechavam as janelas, cerravam as cortinas. E ninguém perguntava nada a ninguém. Chegavam a Moscovo: traziam vinho, fruta, orgulhavam-se do seu bronzeado e recordavam o mar. (Silêncio.) Eu gostava de Estaline ... Amei-o durante muito tempo. Amava-o mesmo quando começaram a escrever que ele era pequeno, ruivo, e tinha uma mão seca. Que havia morto a mulher. Mesmo quando o destronaram e retiraram do mausoléu. Eu amava-o na mesma."

Margarita Pogrebítskaia, médica, 57 anos
O FIM DO HOMEM SOVIÉTICO / Svetlana Aleksievitch/ Nobel da Literatura 2015

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