O corporativismo deveria ter desaparecido do nosso território há 32 anos mas, qual escalracho que deita raízes fundas e reverdece quando menos se espera, está ainda aí impante ao virar de cada esquina. Assume formas diversas, uma das quais é o tique do burocrata. Não é mentalidade, não. Mentalidade pressupõe algum discernimento ou alguma fé. O tique é automático e deverá estar gravado algures no ADN.
O burocrata em Portugal tinha um elemento distintivo externo: os manguitos. Obrigado, por dever de ofício, a vestir fato completo em cima de camisa branca e gravata, como não ganhava o suficiente para renovar a farpela coçada, usava manguitos.
O manguito e o tal tique caracterizavam o burocrata à nossa moda.
Entretanto o mundo mudou e, por tabela, hoje quem ganha melhor dispensa os manguitos, usa roupa de marca; quem ganha pior anda em mangas de camisa ou usa roupa de marca comprada nas feiras.
Há dias fomos a um notário numa cidade próxima de Lisboa.
Os notários foram privatizados. Não sei se todos. Aquele deve ter sido, a julgar pelo facto das instalações anteriores, no palácio de justiça local, terem sido abandonadas e os serviços de notariado transferidos para um local menos nobre, e mais encolhido, nas proximidades do outro.
Convocaram-nos para as 9,30, começámos a ser atendidos duas horas depois.
Tratava-se de uma escritura de compra e venda. Quando entrámos na sala de formalização de contratos deparámo-nos com um trio formado por uma dactilógrafa (ou seria assistente administrativa? ou seria técnica administrativa? ou seria técnica de notariado?), a senhora notária e o senhor representante da Caixa Geral de Depósitos, uma vez que a escritura de compra e venda se fazia, como é hábito, em simultâneo com a de hipoteca por empréstimo bancário, neste caso da CGD.
Nenhum pedido de desculpas foi apresentado pelo atraso com fomos recebidos. Primeiro sintoma do tique: apesar de privatizado, o notário mantém a postura de funcionário público que vê à sua frente um dependente paciente e não um cliente. De modo que, segundo o tique, não há lugar a pedido de desculpas.
A dactilógrafa, roliçazinha na casa dos vinte, vestia uma camisola e calças pretas, destacando-se-lhe bem em cima do peito entre as saliências dos mamilos, e em letras douradas cintilantes, o reclame “SEX IN BLACK”.
A senhora notária, mais esbelta, na casa dos trinta a chegar aos quarenta, vestia-se, igualmente totalmente de negro, da marca GUESS, com o G impresso de um lado da abertura da blusa e o resto do outro, a letras garrafais de ouro velho.
O senhor representante da CGD, na casa dos quarenta a virar para os cinquenta, vestia igualmente camisa preta, calça preta, relógio de pulso preto, com braçadeira metálica preta. Nele, só a gravata preta tinha um subtil apontamento a lilás.
Feitas as correcções e lidos os contratos, tarefas que exigiram quase uma hora, a senhora notária pede ao vendedor o original da licença de habitação.
Não trouxe. Não me disseram que seria necessário. Todos os documentos que foram solicitados foram entregues, incluindo uma fotocópia da licença de habitação, disse o vendedor.
Sendo assim, disse a notária, não posso fazer a escritura. Não posso deixar de ver o original do documento.
Seguiram-se propostas que pudessem ultrapassar o impasse, mas nada. A senhora notária, imperial, não arredava pé. A escritura teria de ser realizada em outro dia em que houvesse vaga nas agendas da senhora notária e do senhor representante da banca.
Pois bem, disse o vendedor, nesse caso faremos a escritura em outro local, em Lisboa ou mais próximo de Lisboa.
Foi só ao ouvir esta alternativa que a senhora notária, furiosa, percebeu que a concorrência existe e se dispôs a resolver o problema. Ainda que muito mais zangada quando foi alertada para o facto de ter pedido um documento, que tinha como imprescindível para a realização do acto, só duas horas depois da hora para a qual o havia marcado e só após a realização de todas as correcções e leituras da praxe. Tivesse ela começado por aí e teria havido tempo de sobra para o vendedor ir buscar o documento fatal.
O burocrata nunca reconhece o erro nem pede desculpas pelos atrasos.
Tiques que ficam mesmo quando se despem os manguitos e o trio se veste em sinfonia.
O burocrata em Portugal tinha um elemento distintivo externo: os manguitos. Obrigado, por dever de ofício, a vestir fato completo em cima de camisa branca e gravata, como não ganhava o suficiente para renovar a farpela coçada, usava manguitos.
O manguito e o tal tique caracterizavam o burocrata à nossa moda.
Entretanto o mundo mudou e, por tabela, hoje quem ganha melhor dispensa os manguitos, usa roupa de marca; quem ganha pior anda em mangas de camisa ou usa roupa de marca comprada nas feiras.
Há dias fomos a um notário numa cidade próxima de Lisboa.
Os notários foram privatizados. Não sei se todos. Aquele deve ter sido, a julgar pelo facto das instalações anteriores, no palácio de justiça local, terem sido abandonadas e os serviços de notariado transferidos para um local menos nobre, e mais encolhido, nas proximidades do outro.
Convocaram-nos para as 9,30, começámos a ser atendidos duas horas depois.
Tratava-se de uma escritura de compra e venda. Quando entrámos na sala de formalização de contratos deparámo-nos com um trio formado por uma dactilógrafa (ou seria assistente administrativa? ou seria técnica administrativa? ou seria técnica de notariado?), a senhora notária e o senhor representante da Caixa Geral de Depósitos, uma vez que a escritura de compra e venda se fazia, como é hábito, em simultâneo com a de hipoteca por empréstimo bancário, neste caso da CGD.
Nenhum pedido de desculpas foi apresentado pelo atraso com fomos recebidos. Primeiro sintoma do tique: apesar de privatizado, o notário mantém a postura de funcionário público que vê à sua frente um dependente paciente e não um cliente. De modo que, segundo o tique, não há lugar a pedido de desculpas.
A dactilógrafa, roliçazinha na casa dos vinte, vestia uma camisola e calças pretas, destacando-se-lhe bem em cima do peito entre as saliências dos mamilos, e em letras douradas cintilantes, o reclame “SEX IN BLACK”.
A senhora notária, mais esbelta, na casa dos trinta a chegar aos quarenta, vestia-se, igualmente totalmente de negro, da marca GUESS, com o G impresso de um lado da abertura da blusa e o resto do outro, a letras garrafais de ouro velho.
O senhor representante da CGD, na casa dos quarenta a virar para os cinquenta, vestia igualmente camisa preta, calça preta, relógio de pulso preto, com braçadeira metálica preta. Nele, só a gravata preta tinha um subtil apontamento a lilás.
Feitas as correcções e lidos os contratos, tarefas que exigiram quase uma hora, a senhora notária pede ao vendedor o original da licença de habitação.
Não trouxe. Não me disseram que seria necessário. Todos os documentos que foram solicitados foram entregues, incluindo uma fotocópia da licença de habitação, disse o vendedor.
Sendo assim, disse a notária, não posso fazer a escritura. Não posso deixar de ver o original do documento.
Seguiram-se propostas que pudessem ultrapassar o impasse, mas nada. A senhora notária, imperial, não arredava pé. A escritura teria de ser realizada em outro dia em que houvesse vaga nas agendas da senhora notária e do senhor representante da banca.
Pois bem, disse o vendedor, nesse caso faremos a escritura em outro local, em Lisboa ou mais próximo de Lisboa.
Foi só ao ouvir esta alternativa que a senhora notária, furiosa, percebeu que a concorrência existe e se dispôs a resolver o problema. Ainda que muito mais zangada quando foi alertada para o facto de ter pedido um documento, que tinha como imprescindível para a realização do acto, só duas horas depois da hora para a qual o havia marcado e só após a realização de todas as correcções e leituras da praxe. Tivesse ela começado por aí e teria havido tempo de sobra para o vendedor ir buscar o documento fatal.
O burocrata nunca reconhece o erro nem pede desculpas pelos atrasos.
Tiques que ficam mesmo quando se despem os manguitos e o trio se veste em sinfonia.