Sunday, July 16, 2006

O DESOVAR DAS BRONCAS


Por alguma razão de capricho estatístico, que a mim me escapa, as broncas desovam com uma regularidade impressionante: não há dia, por mais morno que seja, que não apareça uma. Nem todas têm o mesmo tamanho, o mesmo peso, a mesma peitaça, mas o desovar das broncas é tão estatisticamente provável como o nascer do sol. Não há sábado sem sol, nem domingo sem missa, nem segunda-feira sem preguiça, nem nenhum dia sem bronca mais ou menos gorda.

Uma explicação economicista, (estão na moda as explicações economicistas), desta impressionante regularidade da fertilidade das broncas, poderia encontrar-se na mão invisível dos chefes de redacção, que as fosse rateando, para nem enfartarem os leitores, num dia, nem os deixarem a ver navios no dia seguinte. Explicação pouco convincente, contudo, porque os jornalistas são, por natureza, incapazes de guardarem para amanhã as notícias que puderem publicar hoje.

Outra explicação, também economicista (provavelmente, não há outras), é a promoção da bronca, que consiste em vender, como bronca, aquilo que não passa de um acidente normalíssimo. Os jornalistas estariam, neste caso, a repescar a táctica dos ardinas, quando os havia, de apregoar “o desastre! olha o desastre!”, para vender, mais rapidamente, a carga que lhes derreava os ombros. Mas, também neste caso, a explicação não colhe, porque o que nos é oferecido diariamente é, pelo menos, um bom exemplar de bronca, que inequivocamente não é gato, mas lebre.

Com tanta regularidade, o desovar das broncas, tornou-se banal e há muito tempo que deixou de ser notícia. É, sobretudo, uma informação, do género da hora da maré-alta ou das farmácias de serviço, mas muito menos útil. Lê-se, comenta-se quando se comenta, e passa-se à frente.

O que é inevitável. Se alguém, por casmurrice, entendesse trinchar um desses bichos, ficaria ultrapassado pela dinâmica da desova: quem é que perde tempo com uma bronca passada quando surgem outras novinhas, em folha?

A título de exemplificação de todo este arrazoado cite-se um desses exemplares, recentemente desovado, notícia em quase toda a Imprensa, diária e não diária:


«A CÂMARA Municipal de Lisboa tem cerca de 1200 pessoas com contratos de prestação de serviços e avenças, dos quais 193 são assessores-executivos recrutados para gabinetes de vereadores com pelouros. Carmona Rodrigues é o recordista com 64 assessores, incluído um com a função de organizar os «Portos de Honra».

As notícias à volta deste exemplar adiantam mais pormenores, mas aquelas quatro linhas poderiam, apenas elas, desencadear uma salutar discussão acerca do sistema espúrio de governo municipal em Portugal.

Sendo executivos, os vereadores municipais coabitam em regime de adquiridos com os directores dos quadros das edilidades. Como o seu conhecimento técnico dos pelouros em que superintendem é geralmente reduzido, e muitas vezes nulo, não lhes resta alternativa se não acatar as propostas dos diferentes Sir Humphrey que lhes aparecem pela frente. Como estes Sir Humphrey são inamovíveis, os interesses que os engordam dão de sobejo para os vereadores que vão aparecendo. O sistema auto sustenta-se porque as diferentes facções políticas representadas na Câmara depressa reconhecem que os seus interesses pessoais (e partidários) passam pela conjugação dos votos. Assim se explica porque é que, sendo tão renhida a luta partidária para a conquista de lugares nos municípios, são raros os casos de conflitualidade partidária após a formação das Câmaras. Do mesmo modo se explica a longevidade dos “dinossauros municipais” e a inimputabilidade de todos os quadros superiores e vereadores das Câmaras.

Mas há mais quem queira comer do queijo. Os vereadores foram eleitos com a ajuda de partidários que não dispensam saborear algumas sobras, e fazem-nos assessores.

Esta tese é tão irrebatível quanto é certo que até o vereador Sá Fernandes, o tal que contestou as trocas e baldrocas acerca dos terrenos da Feira Popular e do Parque Meyer, e do Túnel das Amoreiras (por onde andam estes casos?) eleito com o apoio do Bloco de Esquerda, votou na votação unânime de nomeação de tantos assessores. Só à sua conta, Sá Fernandes terá dezasseis, todos em part-time, porque os ordenados aprovados não compensam a dedicação integral, ao que parece.

Temos assim que os senhores vereadores, que da poda sabem pouco, substituem os directores das Câmaras nas responsabilidades que a estes competiriam, e os assessores dos vereadores duplicam os técnicos que fazem parte dos quadros dos municípios.

Ninguém controla ninguém.

Mas amanhã já ninguém falará do assunto. Uma nova bronca desovará.
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