Friday, April 21, 2006

DEMOCRACIA & COMPANHIA



Como é da tradição, e as tradições são para se respeitarem, a Páscoa concedeu umas férias aos portugueses, para a maior parte dos quais a Páscoa significa comer amêndoas, apanhar sol, e boas festas aos amigos e conhecidos, e abalaram para o Sul ou para o Norte, atropelando-se nas estradas mais do que consentem as médias estatísticas.

Os deputados portugueses, ou a maioria deles, aproveitou dos costumes, esticou o período, antecipando a partida, e faltou ao plenário. Como não havia quorum não houve votação, os trabalhos foram adiados.

Para a maioria dos portugueses a ocorrência não escandalizou: a esmagadora maioria ia a caminho de uns dias de praia de primavera, alguns devem ter ouvido pela rádio a balda dos deputados, encolheram os ombros, baralhados , afinal o que é que os deputados tinham feito mal, tendo feito o que eles próprios estavam a fazer?

Ergueram-se em coro algumas vozes indignadas contra o laxismo relapso da classe política mas os campos quanto a culpas dividiram-se: para uns o comportamento dos deputados não é se não a emanação do comportamento dos que os elegeram e reflectem os valores que este prezam e os que desprezam; para outros, a responsabilidade cabe por inteiro aos deputados, ausentaram-se sem dar cavaco, prestaram um mau serviço à democracia.

Aliás, não foi a primeira vez, longe disso, que alguns dos nossos deputados, neste caso, ainda mais lamentavelmente, a maioria deles, deram uma imagem confrangedora dos princípios morais que os norteiam. O processo das viagens fictícias situa-se num plano ainda mais baixo, de desonestidade e abuso de confiança. Mas mesmo neste caso quantos portugueses se terão indignado, quantos terão sequer dado por isso?

O nível de corrupção numa sociedade depende do comportamento dos políticos e da imagem de honestidade, ou da falta dela, que transmitem aos eleitores, ou da atitude permissiva generalizada entre a população que encolhe os ombros e confessa-se, se eu pudesse fazia o mesmo?

De modo que parece estarmos perante o aparente paradoxo do ovo e da galinha aplicado à tradicional propensão portuguesa para sacudir a água do capote: os deputados são o que são porque são feito da mesma massa dos eleitores mas o eleitores encaminham-se por onde vêm caminhar os eleitos.

A questão da responsabilidade das elites no comportamento do povo foi objecto de estudo após a Segunda Guerra Mundial por psicólogos sociais intrigados com as causas que poderiam ter determinado que os alemães, culturalmente acima da média europeia do seu tempo, tivessem aderido tão entusiasticamente às propostas de um megalómano e os seus oficiais e soldados tivessem perpetrado o holocausto. E as suas conclusões parecem não suscitar dúvidas quanto à propensão humana para seguir o grupo (o rebanho) formado a partir de um grupo mais restrito dominado pelas elites, mesmo que o caminho seja indigno, propensão essa que, por outro lado, explica a tendência natural para esperar que as autoridades pensem por nós, deixar acriticamente que elas nos indiquem a verdade, nos definam a moral, nos tracem o caminho.

Há sempre, evidentemente, quem não siga o rebanho. Do número relativo daqueles que, em cada sociedade, não calcam as mesmos vias depende a capacidade dessa sociedade para arrepiar caminho.


A impunidade pressentida por alguns deputados decorre, segundo alguns analistas ou pseudo-analistas, do facto de eles serem designados pelos partidos, existindo, deste modo, uma cortina que desresponsabiliza os eleitos perante os eleitores na medida que impossibilita que estes de julgarem aqueles nominalmente. Em alternativa, e como meio de submeter a actuação dos eleitos directamente ao julgamento dos eleitores, propõem a eleição dos deputados por círculos uninominais ou através de um sistema misto que inclua a eleição de um certo número num círculo nacional.

A eleição por círculos uninominais certamente que reduziria a representatividade das diferentes opções políticas eliminando a presença dos partidos mais pequenos no Parlamento. Mas, pior do que essa perda de representatividade, seria a multiplicação do caciquismo que já conta com um grande número de representantes nas autarquias locais. E na Madeira.
Portugal tem uma tradição de caciquismo, que tendo perdido força no tempo da ditadura porque os ditadores não dependem dos votos, ressurgiu com o regresso da democracia.

O caciquismo alimenta-se da demagogia, irmã mais antiga e mais sabida da democracia. Alguns casos recentes ocorridos durante as últimas eleições locais confirmam que os caciques podem, mesmo em condições eticamente altamente reprováveis pela maioria da população a nível nacional, arrebanhar localmente a maioria dos votos.

Com a eleição dos deputados por círculos uninominais o Parlamento transformar-se-ia num curioso mercado de queijos e quejandos.

A intervenção política não passa apenas pelos partidos políticos mas a democracia não é possível sem eles. O enfraquecimento partidário, qualquer que seja a sua origem, determinará sempre um enfraquecimento da democracia.

Da democracia importa afastar as más companhias.

O caso dos deputados faltosos também teve um aspecto positivo: o de ter colocado à frente dos portugueses mais uma fotografia do seu sistema democrático. Nela, é nítido que a nossa democracia anda mal acompanhada. Contudo, qualquer alteração do sistema eleitoral deverá favorecer o desaparecimento das más companhias e não o reforço do caciquismo, que, aliás, poderia aumentar incontrolavelmente o número de faltas ao ponto.

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