.
"A 23 de Maio de 2003, numa conferência de homenagem a José Silva Lopes, Cavaco Silva lançou fortes avisos ao Governo de Durão Barroso, que tinha como ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite. O Negócios republica hoje o texto, que lido sete anos depois parece premonição do desequilíbrio para que Portugal caminhava..."
Aníbal Cavaco Silva"A 23 de Maio de 2003, numa conferência de homenagem a José Silva Lopes, Cavaco Silva lançou fortes avisos ao Governo de Durão Barroso, que tinha como ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite. O Negócios republica hoje o texto, que lido sete anos depois parece premonição do desequilíbrio para que Portugal caminhava..."
.
O Dr. Silva Lopes, na segunda metade dos anos 70, deve ter tido muitas dores de cabeça no âmbito das suas responsabilidades na condução da política macroeconómica. Será que esse tipo de dores ainda existe nos dias de hoje?... noutras cabeças, como é óbvio. Ou as dores de cabeça hoje são diferentes? E os remédios para essas dores, mudaram?
O Dr. Silva Lopes, na segunda metade dos anos 70, deve ter tido muitas dores de cabeça no âmbito das suas responsabilidades na condução da política macroeconómica. Será que esse tipo de dores ainda existe nos dias de hoje?... noutras cabeças, como é óbvio. Ou as dores de cabeça hoje são diferentes? E os remédios para essas dores, mudaram?
1. Uma das fontes de grandes dores de cabeça de Silva Lopes deve ter sido o desequilíbrio das contas externas e a escassez ou mesmo o esgotamento das reservas em divisas. Com a entrada de Portugal na zona euro houve quem pensasse que esta era uma dor que tinha desaparecido definitivamente. A nossa balança de pagamentos passou a ser apenas uma balança regional do espaço da zona euro e, consequentemente, pensaram muitos, o seu desequilíbrio corrente não constituía qualquer problema. Podia ser financiado na nossa própria moeda, sem risco cambial, recorrendo ao mercado financeiro europeu, um mercado integrado e de fácil acesso por parte do Tesouro e dos agentes económicos portugueses. A escassez de meios de pagamento internacionalmente aceites era um problema que também desaparecia. A detenção e gestão das reservas cambiais passou a ser uma competência do BCE. Parecia assim que o défice da balança corrente tinha deixado de constituir uma restrição à política económica. Era coisa que pertencia à história das relações entre Portugal e o FMI. Foram precisos cinco anos consecutivos de elevado desequilíbrio das contas externas, com um défice acumulado de mais de 30% do PIB no período 1997-2001, para que alguns percebessem que a restrição das contas externas não tinha desaparecido inteiramente. Tinha-se apenas alterado o tempo em que ela se manifestava. A unificação monetária não alterou de facto o significado básico do desequilíbrio externo: um excesso de despesa interna em relação à produção ou, dito de outro modo, uma insuficiência de poupança nacional em relação ao investimento. Traduz-se num aumento do endividamento para com o exterior e, consequentemente, num aumento dos juros a pagar no futuro ao estrangeiro.Ora um país, mesmo que seja uma região num espaço monetário unificado, não pode endividar-se sem limites. No médio ou longo prazo, um défice continuado das contas externas acaba por manifestar-se sob a forma de aumento do prémio de risco, racionamento do crédito ou transferência de activos das mãos nacionais para as mãos de estrangeiros, como aliás temos vindo a assistir em Portugal. O ajustamento torna-se assim inevitável, i.e., a despesa das famílias, das empresas e do Estado tem de ser contida. O ajustamento será tanto mais forte e penoso quanto mais o endividamento externo tenha sido encaminhado para a expansão do consumo ou para investimentos de baixa rentabilidade. Portugal é hoje o exemplo de como o défice continuado das contas externas é uma restrição ao crescimento económico sustentável de um País, mesmo que ele faça parte de uma união monetária. Por outro lado, o caso português ilustra um efeito perverso da união monetária sobre o comportamento dos agentes políticos. Como desaparece a ameaça das crises cambiais, os políticos tendem a tornar-se mais relutantes em corrigir as políticas erradas, principalmente se o défice externo estiver inicialmente associado a uma expansão económica, e só quando a situação se torna visivelmente insustentável se dispõem a actuar. Este é um argumento a favor da imposição de regras da disciplina orçamental aos Estados membros da zona euro. É hoje óbvio que o ajustamento das políticas erradas teria começado mais cedo caso Portugal não pertencesse à zona do euro, o que não significa, como é óbvio, que os benefícios da adesão não sejam claramente superiores aos custos.
2. No tempo de Silva Lopes o remédio para desequilíbrio externo era relativamente fácil e actuava rapidamente. A moeda era desvalorizada, os salários reais desciam, o País melhorava a competitividade, as exportações aumentavam e as importações caíam.Hoje as coisas são mais difíceis. O País não tem uma taxa de câmbio nominal própria que possa desvalorizar para melhorar a competitividade e promover uma política de “expenditure switching”. As autoridades portuguesas talvez tenham visto o desaparecimento do instrumento cambial como um certo alívio. Deixaram de se preocupar com as crises cambiais. Contudo, como sabemos, para efeitos de competitividade o que interessa é a taxa de câmbio real. E as nossas autoridades parece que, com a entrada na zona euro, esqueceram-se que não podiam deixar de prestar alguma atenção ao câmbio real. E foi só quando, durante vários anos consecutivos, se verificou uma perda de quota de mercado das exportações de mercadorias e uma forte deterioração da balança comercial que as autoridades tomaram consciência do problema que constituía um crescimento dos custos unitários do trabalho muito acima do que se verificava nos nossos parceiros comunitários. Agora o problema da competitividade é mais difícil de resolver do que no passado, não só porque desapareceu o instrumento cambial mas também porque as taxas de inflação são baixas, pelo que é mais difícil conseguir reduções significativas dos salários reais no curto prazo. A consequência inevitável é o aumento do desemprego, que pode manter-se durante um período largo. Logo, a dor de cabeça pode ser prolongada. A situação portuguesa serve para ilustrar como é decisivo para um país da união monetária que a política salarial se desenvolva em consonância com a evolução da produtividade. Quando não é assim, os custos em termos de emprego podem ser muito elevados, como, aliás, se tinha verificado na Alemanha do leste na sequência da unificação. Não surpreende por isso que a questão da moderação salarial tenha ganho entre nós acuidade especial, o que talvez não se vá limitar a 2003 e 2004. Mas se é hoje claro que a competitividade é uma grande dor de cabeça para as autoridades portuguesas, também é claro que não é fácil resolvê-la conjunturalmente pela descida dos salários reais. Agora a depreciação real que o País precisa tem de ser alcançada através das famosas reformas estruturais, que façam com que a produtividade cresça a ritmo superior ao dos nossos parceiros. São políticas que estão muito na alçada de outros ministros que não a das Finanças, os quais não sentem como ela as dores de cabeça e continuam mesmo a sorrir. Por outro lado, são políticas cujos efeitos levam tempo a fazer-se sentir. De facto, não é fácil desenhar políticas de depreciação de taxa de câmbio real para o curto prazo. Eu cheguei a sugerir uma redução da taxa das contribuições patronais para a Segurança Social – sugestão idêntica foi recentemente defendida para a Alemanha. É uma medida a que se costuma chama desvalorização interna da moeda.
A minha sugestão foi feita para o caso de existir margem de manobra para uma redução de impostos, sem pôr em causa a consolidação orçamental exigida pelo PEC, e como alternativa à redução substancial da taxa geral de tributação dos lucros que era anunciada. Devo acrescentar dois pontos em relação a uma medida deste tipo. Primeiro ela não substitui a política de reformas estruturais. É apenas um complemento temporário. Segundo, pressupõe que o poder político aceita inverter as medidas na fase ascendente do ciclo, isto é, aumentar as contribuições patronais para a segurança social ou fazer cortes estruturais da despesa pública. A conclusão a que se chega é, portanto, que no tempo de Silva Lopes, o desequilíbrio da balança corrente conduzia rapidamente a dores de cabeça, a dor era concentrada e violenta, mas tinha um remédio que actuava com uma certa rapidez. Agora a dor chega ao retardador, desfasada no tempo, não é concentrada e portanto é mais tolerável, mas é uma dor prolongada e incómoda porque não há remédio fácil para ela. Houve também uma mudança nas autoridades atingidas pela dor de cabeça. Agora é só o Governo a sofrer, e em particular o ministro das Finanças; o governador do Banco Central aconselha e dá palavras de conforto ao doente mas não sente uma dor forte que lhe impeça o sono. Até a venda de ouro pelo Banco Central, que no tempo de Silva Lopes era uma expressão da crise de pagamentos externos, e hoje é uma prática de boa gestão.
3. O desequilíbrio das contas públicas também deve ter causado dores de cabeça a Silva Lopes. Como Governador do Banco de Portugal a sua preocupação devia resultar do financiamento monetário do défice e da carga que assim era imposta à política monetária. Então, o défice público estava a níveis incomparavelmente mais altos do que aqueles que preocupam hoje a Ministra das Finanças e o grau de confusão reinante quanto à sua verdadeira grandeza e aos chamados défices ocultos quase transformam a contabilidade criativa dos anos recentes em práticas transparentes. Apesar disso, o ruído do desequilíbrio orçamental e as dores de cabeça que ele provoca à ministra das Finanças talvez sejam hoje muito maiores do que no tempo de Silva Lopes.Por duas razões. A primeira, porque no tempo do Dr. Silva Lopes era possível jogar mão da política monetária para reprimir financeiramente o sector privado e, por essa via, compensar o descontrolo orçamental, conter a despesa interna e assegurar o financiamento externo necessário. Hoje, os instrumentos monetários estão nas mãos do BCE e a sua política monetária não sofre de contágio das políticas orçamentais dos Estados Membros. A segunda razão chama-se PEC, algo politicamente mais restritivo do que os objectivos fixados para o défice público pelo FMI nos acordos assinados, objectivos que, aliás, não foram cumpridos sem que daí resultassem problemas de maior.Também no domínio do défice público Portugal é hoje um bom exemplo de que uma união monetária, ao contrário do que muitos pensavam, contém em si um elemento de incentivo aos comportamentos orçamentais insustentáveis e irresponsáveis. É outra razão para as regras supranacionais de disciplina orçamental na UE. O problema é que não é fácil definir regras que se apliquem igualmente a todos os Estados membros, independentemente das diferenças nos respectivos parâmetros estruturais, e quaisquer que sejam as condições económicas vigentes. Por isso não surpreende toda a controvérsia que se tem desenvolvido à volta das regras de disciplina orçamental da UE desde o início dos anos 90, e que recentemente foi exacerbada pelo clima de abrandamento económico que atingiu a Europa.Felizmente que a Comissão Europeia, recentemente, deu um passo interpretativo – que já devia ter dado há muito tempo – no sentido de colocar a ênfase mais no défice ajustado do ciclo económico e menos no défice efectivo.Mas felizmente também que não foram acolhidas as sugestões de alguns no sentido de pura e simplesmente mandar para o caixote do lixo as regras de disciplina orçamental. Não seria bom para um País como Portugal.Mas talvez a razão da maior dor de cabeça da ministra das Finanças não esteja só no PEC. Há hoje novas restrições que dificultam a sua acção para controlar o défice público quando comparamos com o tempo de Silva Lopes. É o caso do aumento da concorrência fiscal a nível internacional, a maior capacidade de organização e influência dos grupos de interesses a favor de mais despesas públicas, são as leis das finanças locais e regionais, que são vistas como leis quase constitucionais, é o aumento da esperança de vida das populações.
4. Termino voltando à grande diferença que se verifica ao nível dos actores políticos.Os problemas que Silva Lopes enfrentou foram muito problemas de estabilização e se o ministro das Finanças e o governador do Banco de Portugal se entendessem e tivessem a cobertura do primeiro-ministro podiam enfrentá-los com uma certa facilidade, porque tinham o controlo dos instrumentos monetários, cambiais e orçamentais.
Hoje, a ministra das Finanças está muito mais pobre em termos de instrumentos de intervenção – perdeu os instrumentos monetários e cambiais, e no domínio orçamental está rodeada de múltiplas restrições. Como a competitividade não é fácil de resolver pela descida dos salários reais e a depreciação real da moeda requer respostas estruturais, isto é políticas voltadas para a eficiência, a produtividade, a inovação, então os ministros sectoriais tornaram-se actores importantes em matéria de política económica. São os ministros responsáveis pelas áreas da Ciência e Tecnologia, dos Recursos Humanos, do Trabalho e Segurança Social, da Concorrência e Regulação, da Justiça, das Infra-estruturas Físicas e Tecnológicas. Como são ministros que não têm experiência em matéria de política económica global, podem ser maus actores e não estarem dispostos a suportar os custos da impopularidade das medidas que lhes compete propor. Isto é, a eficiência económica e a competitividade são hoje fonte de dor de cabeça do ministro das Finanças mas, contrariamente ao que acontecia no passado, não estão nas suas mãos os remédios para enfrentá-la. Estão nas mãos dos seus colegas. Para ultrapassar esta dificuldade é preciso uma intervenção de nível superior, que pressione os ministros sectoriais a actuar e que assegure a coordenação e coerência entre as diversas políticas. O aumento do número de actores complica a formulação da política económica. A coordenação ministerial ganha assim uma importância acrescida. Ou é o primeiro-ministro a exercê-la ou então o ministro das Finanças tem de ocupar na hierarquia do Governo o lugar de vice-primeiro-ministro, com um poder muito claro para orientar e coordenar os outros ministros em matéria económica.
Fico-me por aqui, até porque a avaliação das dores de cabeça é matéria subjectiva. As do Dr. Silva Lopes já lá vão e se foram elas que o estimularam a agir para evitar que o País caísse em crises financeiras mais graves, então eu até digo “benditas dores”. E o mesmo espero dizer não daqui a muitos anos à actual ministra das Finanças.
Aníbal Cavaco Silva
Texto originalmente lido a 23 de Maio de 2003, numa conferência de homenagem a José Silva Lopes
No comments:
Post a Comment