Em 1975, Portugal não andava longe de parecer um hospício em autogestão. Acontecia, quase diariamente, qualquer coisa que espantava quem tinha no ano anterior acabado de atravessar um túnel de quatro décadas onde quase nada, que se visse, acontecia.
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Numa tarde de Agosto do Verão Quente, o chefe chamou-me para me incumbir de uma tarefa urgente. Tinha telefonado um tal senhor Gaba, patrão de uma empresa do sector da construção civil, que se confrontava com problemas de organização interna que queria resolver com a nossa ajuda. Lá fui.
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O senhor Gaba era, na altura. um homem ainda na casa dos trinta, bem constituído sem ser obeso, recebeu-me muito cordialmente no seu gabinete de trabalho, espaçoso, mobilado com gosto e muito dinheiro. Para lá da secretária e de uma mesa de reuniões percebi que tinha do lado oposto à secretária um armário garrafeira para obsequiar clientes, fornecedores, amigos e visitas e, por detrás dele, um outro armário com uma aparelhagem hi-fi e dezenas de discos long playing, de música clássica, elucidou-me ele. Nas paredes disponíveis, três ou quatro reproduções de quadros de artistas contemporâneos.
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Após dez minutos de conversa, percebi que o Gaba estava encalacrado com dívidas, uma situação vulgaríssima naqueles tempos caóticos. Eram ainda frequentes as operações de financiamento suportadas por letras de favor e, durante algum tempo, a banca nacionalizada aceitava facilmente amortizações simbólicas. O problema do Gaba, se também era de natureza organizativa, era, imediatamente, o sufoco em que se encontrava a tesouraria, os salários atrasados, os fornecedores a suspenderem fornecimentos, os impostos por pagar, os bancos a exigirem a reforma das operações em curso, ainda que simbólicas, mas a negarem-lhe mais fundos. Atalhando: O Gaba tinha conseguido a promessa de um financiamento junto de um banco, qualquer coisa como dez mil contos, mas precisava de apresentar o Balanço e a Conta de Ganhos e Perdas do ano anterior e um balancete do mês de Junho desse ano, além de um plano de amortização da dívida suportado por acções especificadas a realizar nesse sentido.
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A contabilidade da empresa do Gaba era paralela e estava com mais de um ano de atraso, o contabilista tinha ido à procura de patrão mais fiável. Disse-lhe o que era óbvio, que sem contabilidade não havia balanço nem balancete, e ele, sem pestanejar ripostou que isso também ele sabia mas que era, precisamente por isso, que nos tinha chamado. E gastou mais de uma hora a explicar as complicações em que se tinha metido e as angústias que não o deixavam dormir nem trabalhar. Portanto, por favor, invente-me um balanço, um balancete e um plano, sem isso estou perdido. Fiquei de os entregar dentro de três dias, rematou.
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Reflecti por uns momentos e depois respondi-lhe: Senhor Gaba, o mais que posso fazer é um exercício de invenção consigo. Mas para isso não preciso de três dias, uma hora chega. Eram sete da tarde. Às oito e picos o Gaba estava deslumbrado com o resultado, perguntou-me quanto devia e convidou-me para jantar num restaurante de luxo. Disse-lhe que não devia nada, apenas o ajudara a compor um exemplo teórico de um balanço, de um balancete, e de um plano de estabilidade e crescimento. Mas qualquer uso dessas peças, que ele tinha por preciosas, seria de sua inteira e exclusiva responsabilidade. E declinei o jantar.
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Uns quinze dias depois telefonou-me o Gaba, satisfeitíssimo, a informar-me da aprovação da operação pelo banco. Respondi-lhe que agora faltava-lhe cumprir o plano. Pois claro, concordou ele.
Soube, alguns anos depois, que encerrara a empresa perseguido pelos bancos atrás das garantias pessoais que prestara.
Os planos apressados nunca dão bons resultados. Mas quem é que cuida disso na hora do aperto?
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Esta mensagem é a terceira milésima em mil quinhentos e cinquenta e cinco dias do Aliás.
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