Tuesday, December 23, 2008

CONTO DE NATAL

Conheço o Andrade há muitos anos, tantos que nem digo quantos para não pensarem que ele deve estar velho. Não está, ainda que há bem pouco tempo o tenha chamado à realidade uma jovem a quem ele lançara um casual piropo.
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Telefonou-me há pouco, eufórico, porque lhe tinham aumentado a esperança de vida. Fiquei perplexo, mas ele explicou.
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Sempre se soube que o Andrade, quando jovem, era um sovina. Amealhava o mais que podia, contava todos os tostões, a mulher tinha de lhe dar contas e recibos de todas as despesas feitas. Pegava nos papéis e contabilizava tudo. Em casa dele trabalhava-se subordinado a um orçamento rigoroso que prevenia sempre um superávite dimensionado à partida: gastava-se o que sobrasse da poupança, não se poupava o que sobrasse dos gastos, porque, dizia ele, quem parte dos gastos para a a poupança nunca poupará nada. Fez uma pequena fortuna, ou, como diria o outro, não era rico mas vivia bem. No poupar é que está o ganho mas o Andrade também sempre ganhara bem e cuidara melhor das economias.
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Estivemos sem nos ver durante muito tempo até que um dia voltámos a encontrar-nos. O Andrade tinha-se reformado, tinha-se divorciado, tinha um filho mas não tinha netos, tinha alterado completamente a sua política financeira: Se até certo momento vivia em função do superávite, de repente aconteceu-lhe um click no hemisfério direito e passou a viver em função da esperança de vida: Recorreu às tábuas actuariais e dividiu os activos consolidados e os rendimentos seguros pelo número de meses de esperança de vida que as tábuas lhe prognosticavam. O quociente dava-lhe o rendimento disponível mensal e decidiu-se consumi-lo inteirinho sem olhar para trás. Não parou mais.
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Quando nos encontrámos já tinha estado em toda a parte do mundo, geralmente acompanhado por quem não lhe chamasse velho cara a cara, agora andava a repetir a volta com outros vagares e mais sabores. Tinha engordado bastante mas sentia-se bem dentro da pele esticada pela felicidade.
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Tempos mais tarde telefonou-me para cancelar o almoço porque tinha entrado nos cálculos com as notícias que davam redução na esperança de vida por excesso de colesterol e hipertensão arterial, tornando o quociente do rendimento mensal mais elevado e, em consequência disso, via-se obrigado a cancelar todos os compromissos em terra porque tinha marcado viagem para mais uma volta ao mundo, desta vez em camarote de luxo. Lá foi.
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Telefonou-me, como disse, há pouco. Tão eufórico que pensei que lhe tivessem encurtado drasticamente a esperança de vida e ele estaria para embarcar para a lua. Depois de tanto correr e ver, da última vez andava a pensar numa viagem orbital à terra.
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Qual quê, menino, qual quê, aumentaram, aumentaram e de que maneira!

Fiquei confuso. Mas assim, oh Andrade, o teu rendimento baixa e terás que te contentar agora com umas voltas ao quarteirão, não?

Exactamente, meu velho. E sabes com quem? Com o meu neto que vai nascer amanhã. Soube agora. Mesmo agora. Já cancelei a viagem à lua. Tinha-te falado nisso não tinha? Pois cancelei. Mas não perco a massa. Já vendi a viagem a outro com lucro. Tenho de poupar, menino, agora tenho de poupar!

2 comments:

A Chata said...

Os netos fazem destas sim senhor.

Um bom Natal.

António said...

Feliz Natal.