Wednesday, May 14, 2008

ACIMA DA LEI

Há palavras que entram em desuso e saem de circulação, há outras que as substituem, por vezes não há substituição porque o objecto ou o sentimento que elas traduziam passaram à história. Outras ainda, estão em vias de desaparecimento do mesmo modo que algumas espécies vivas estão em vias de extinção. Quanto a estas, existe ainda alguma preocupação e algumas vão sendo recuperadas; as palavras, não: quando chega a sua hora, porque o sujeito passou ao esquecimento, o designativo sucumbe de vez.
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Vergonha, por exemplo, é uma palavra antiga. Segundo o Houaiss, deve ter entrado para o nosso reportório linguístico era Portugal ainda uma criança. E aí está outra palavra, criança, que mais dia menos dia só a utilizam os croas, sendo esta última uma palavra nova para sujeitos velhos.
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Voltando à vergonha, "sentimento penoso causado pela inferioridade, indecência ou indignidade" ou "sentimento ou consciência da própria honra, indignidade, honestidade", era coisa que existia desde o tempo dos afonsinos mas que, provavelmente por estarem extintos ou em vias disso os sentimentos que ela traduzia, a palavra, coitada, passou à condição de asilada à espera de extinção definitiva.
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No tempo em que alguma vergonha ainda andava por aí, uma censura podia exprimir-se numa pergunta: "Não tens vergonha?" Ou, de forma mais afirmativa, "És um desavergonhado!"
De um tipo sem escrúpulos (outra palavra que está a desaparecer por falta de objecto) dizia-se que "não tinha vergonha na cara".
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A vergonha, enquanto sentimento e a palavra que o designa, são hoje coisas quase esquecidas. Literal e conscientemente, já não há vergonha, ou se há é espécie cada vez mais rara.
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O Primeiro Ministro, segundo notícias recentes, fumou no avião da TAP fretado para o transportar e à sua comitiva a terras de Hugo Chávez. Mas não só ele. O Ministro da Economia, que ainda recentemente foi apanhado a circular a 200 km/hora, porque "estava com pressa", também puxou do cigarrinho (ou terá sido do charuto?). A fumar no Casino Estoril, já tinha sido apanhado o presidente da ASAE, a entidade que fiscaliza as proibições na matéria. Aconteceu o mesmo com parte da comitiva, em viagens aéreas, do Presidente da República, que não fuma. Em excesso excessivo de velocidade foi também apanhado, há já algum tempo atrás o Director Geral de Viação. A lista é longa, os exemplos que a nossa memória, sempre propensa a esquecer, ainda retem são suficientes, contudo, para confirmar que "para quem não tem vergonha todo o mundo é seu."
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E também de que acima da lei está a falta de vergonha.

2 comments:

aix said...

Caro Rui,é interessante o relacionamento entre a lei promulgada, o seu (in)cumprimento e a ética. Apesar de a lei ser uma superestrutura (Marx dixit) é suposto estar ao seviço (bem) da comunidade, que são todos os que, voluntária ou involuntàriamente, a aceitam. O seu cumprimento é, porém, mais da esfera do cívico do que do ético (discordo da obrigatoriedade do uso do cinto no automóvel mas uso-o para fugir à multa).Já o maior legislador grego, Sólon, falava em leis iníquas. A prova do carácter cívico da lei é a penalização pelo incumprimento. Assim, tão cívico será cumprir a lei como pagar pelo seu incumprimento.É o carácter cívico da lei que lhe confere o atributo da
generalização. Teoricamente "nenhuma regra tem excepção". Quando Ministros ultrapassam a velocidade permitida por lei ou fumam em locais proibidos estão ne mesma situação que qualquer outro cidadão. Não é a posição social que torna a infracção à lei mais ou menos condenável, porque não é a posição social que confere mais ou menos obrigatoriedade de cumprimento. O carácter da lei é ser geral. Discordo, em absoluto, da maior ou menor gravidade do incumprimento de acordo com a posição social. Assim, os Ministros - primeiros ou segundos - não são mais nem menos criticáveis pelo incumprimento. Do ponto de vista político considero uma enorme desproporção o relevo que a comunicação social dá a essas prevaricações (já nem falo do aproveitamento político dos partidos).É meu hábito ler-te com atenção e, como no geral concordo, não respondo mas, no caso, não só não concordo como me admiro da tua posição, comparada com o teu posicionamento em geral. Argumentar que os políticos têm de dar o exemplo - como me diz a minha filha - é falácia, porque o exemplo todos temos que dar (aos subordinados, colegas, alunos, filhos...). Um abç até breve.

Rui Fonseca said...

Obrigado, Aix, pelos comentários.

Aprecio particularmente que discordem de mim. Como não tenho a certeza de nada, o contraditório obriga-me a reflectir e aprender. É para isso que escrevo este blog: para aprender.

Para mim,um comentário de discordância é muito mais estimulante que um de aprovação ou o não comentário.

Posto isto, gostaria de referir que não me pronunciei acerca da bondade da legislação anti-tabagística. Fumei durante vários anos, deixei de fumar no dia em que a minha filha nasceu, já lá vão uns bons anos, porque pensei e penso que não tinha o direito de obrigar a minha filha a fumar quando eu fumasse. Critérios.

O que eu critico na conduta dos políticos, neste caso concreto, é o facto de eles terem aprovado leis que eles próprios não respeitam. Está mal. Acho eu.

Porque se uma lei é iníqua, e concordo que há muitas que o são, o que devemos, do meu ponto de vista, é promover a sua alteração ou saída se circulação. Isso não é fácil muitas vezes para o cidadão comum mas é mais fácil para os políticos. Não concorda?

Concluo, portanto, que se os políticos se situam muitas vezes acima da lei (e há notícia de muitos que são apanhados mas não multados)há uma clara falta de respeito pela sociedade em geral.

Há falta de vergonha, dito por outras palavras, que a pouco e pouco vão deixando de existir por falta de objecto.

Salvo melhor opinião.