Thursday, March 03, 2022

PORQUE É QUE PUTIN JÁ PERDEU ESTA GUERRA

Porque é que Vladimir Putin já perdeu esta guerra - aqui

Os russos podem ainda conquistar a Ucrânia. Mas os ucranianos têm mostrado nos últimos dias que não os deixarão ficar com ela.

Yuval Noah Harari- 2 de Março de 2022, 13:07

Com menos de uma semana de guerra, parece cada vez mais provável que Vladimir Putin caminhe para uma derrota histórica. Pode ganhar todas as batalhas, mas mesmo assim perder a guerra. O sonho de Putin de reconstruir o império russo sempre se baseou na mentira de que a Ucrânia não é uma nação real, que os ucranianos não são um povo real e que os habitantes de Kiev, Kharkiv e Lviv anseiam pelo domínio de Moscovo. Isso é uma mentira completa — a Ucrânia é uma nação com mais de mil anos de história e Kiev já era uma grande metrópole quando Moscovo não era sequer uma aldeia. Mas o déspota russo já contou a sua mentira tantas vezes que aparentemente ele próprio acredita nisso.

Ao planear a sua invasão da Ucrânia, Putin pôde contar com muitos factos conhecidos. Ele sabia que militarmente a Rússia faz da Ucrânia uma anã. Ele sabia que a NATO não enviaria tropas para ajudar a Ucrânia. Ele sabia que a dependência europeia do petróleo e gás russos levaria a que países como a Alemanha hesitassem em impor sanções duras. Com base nestes factos conhecidos, o seu plano era atingir a Ucrânia com força e rapidez, decapitar o seu Governo, estabelecer um regime fantoche em Kiev e enfrentar as sanções ocidentais.

Mas havia um grande facto desconhecido sobre este plano. Como os americanos aprenderam no Iraque e os soviéticos aprenderam no Afeganistão, é muito mais fácil conquistar um país do que mantê-lo. Putin sabia que tinha o poder de conquistar a Ucrânia. Mas será que o povo ucraniano aceitaria simplesmente o regime fantoche de Moscovo? Putin apostou que sim. Afinal, como ele explicou repetidamente a qualquer pessoa disposta a ouvir, a Ucrânia não é uma nação real, e os ucranianos não são um povo real. Em 2014, o povo da Crimeia dificilmente resistiu aos invasores russos. Por que razão deveria 2022 ser diferente?

A cada dia que passa, torna-se mais claro que o jogo de Putin está a falhar. O povo ucraniano está a resistir com toda a força, ganhando a admiração de todo o mundo — e ganhando a guerra. Muitos dias sombrios estão pela frente. Os russos ainda podem conquistar toda a Ucrânia. Mas, para vencer a guerra, os russos teriam de segurar a Ucrânia e só o podem fazer se o povo ucraniano o permitir. Parece cada vez mais improvável que isso aconteça.

Cada tanque russo destruído e cada soldado russo morto aumentam a coragem dos ucranianos para resistir. E cada ucraniano morto aprofunda o ódio dos ucranianos contra os invasores. O ódio é a mais feia das emoções. Mas, para as nações oprimidas, o ódio é um tesouro escondido. Enterrado no fundo do coração, pode alimentar a resistência durante gerações. Para restabelecer o império russo, Putin precisa de uma vitória relativamente sem derramamento de sangue que conduza a uma ocupação relativamente sem ódio. Ao derramar cada vez mais sangue ucraniano, Putin está a garantir que o seu sonho nunca será realizado. Não será o nome de Mikhail Gorbatchov que ficará escrito na certidão de óbito do império russo: será o de Putin. Gorbatchov deixou russos e ucranianos a sentirem-se como irmãos; Putin transformou-os em inimigos e assegurou que a nação ucraniana se definirá doravante em oposição à Rússia.

As nações são, em última análise, construídas sobre histórias. Cada dia que passa acrescenta mais histórias às que os ucranianos irão contar não só nos dias sombrios que se avizinham, mas também nas décadas e gerações vindouras. O Presidente que se recusou a fugir da capital, dizendo aos EUA que precisa de munições, não de boleia; os soldados da ilha de Zmiinii que disseram a um navio de guerra russo para “se ir foder”; os civis que tentaram parar os tanques russos, sentando-se no seu caminho. É deste material que as nações são construídas. A longo prazo, estas histórias contam mais do que tanques.

O déspota russo deveria saber isto tão bem como qualquer pessoa. Nos tempos de criança, cresceu com uma dieta de histórias sobre atrocidades alemãs e a coragem russa no cerco de Leninegrado. Está agora a produzir histórias semelhantes, mas escolhendo fazer o papel de Hitler.

As histórias da bravura ucraniana dão determinação não só aos ucranianos, mas a todo o mundo. Elas dão coragem aos governos das nações europeias, à Administração dos EUA e mesmo aos cidadãos oprimidos da Rússia. Se os ucranianos ousam parar um tanque com as suas próprias mãos, o Governo alemão pode ousar fornecer-lhes alguns mísseis antitanque, o Governo americano pode ousar banir a Rússia do SWIFT e os cidadãos russos podem ousar manifestar a sua rejeição a esta guerra sem sentido.

Todos podemos ser inspirados a ousar fazer algo, seja fazer uma doação, acolher refugiados ou ajudar com a luta online. A guerra na Ucrânia vai moldar o futuro do mundo inteiro. Se a tirania e a agressão forem autorizadas a vencer, todos sofreremos as consequências. Não há razão para continuarmos a ser apenas observadores. É tempo de nos erguermos e sermos tidos em conta.

Infelizmente, é provável que esta guerra seja duradoura. Assumindo formas diferentes, pode muito bem durar anos. Mas a questão mais importante já foi decidida. Os últimos dias provaram ao mundo inteiro que a Ucrânia é uma nação muito real, que os ucranianos são um povo muito real e que definitivamente não querem viver sob um novo império russo. A questão principal deixada em aberto é quanto tempo levará para que esta mensagem penetre nas paredes espessas do Kremlin.


Copyright Yuval Noah Harari 2022

Vd. também artigo do mesmo autor publicado em 22/02 no Economist - Humanity’s greatest political achievement has been the decline of war. That is now in jeopardy

Transcrevo a seguir tradução livre dos dois últimos períodos desse artigo publicado antes do início da invasão russa.

Não sei o que irá acontecer na Ucrânia. Mas como historiador acredito na possibilidade da mudança. Não penso que isto seja ingenuidade - é realismo. A única constante na história humana é a mudança. E isto é talvez o que podemos aprender com os Ucranianos. Durante muitas gerações, os Ucranianos pouco mais tiveram do que a tirania e a violência. Suportaram dois séculos de autocracia czarista (que finalmente colapsou no meio do cataclismo da primeira guerra mundial). Uma breve tentativa de independência foi rapidamente quebrada pelo restabelecimento do domínio russo. Milhões de Ucranianos foram vítimas do Holodomor, a matança imposta pelo terror Estalinista, foram vítimas da ocupação nazi e de décadas de ditadura comunista esmagadora. Quando a União Soviética colapsou a história parecia prometer aos Ucranianos apenas a continuidade da tirania.

Mas eles escolheram um caminho diferente. Apesar da história, apesar da pobreza e apesar de obstáculos aparentemente intransponíveis, os Ucranianos escolheram a democracia. Na Ucrânia, contrariamente à Rússia e à Bielorrússia, os candidatos substituíram repetidamente os governantes no poder. Quando enfrentaram a ameaça de governos autocráticos em 2004 e 2013, os Ucranianos revoltaram-se duas vezes para defender a liberdade. A sua democracia é uma novidade. Assim como  a "nova paz". Ambas são frágeis e podem não não resistir durante muito tempo. Mas ambas são possíveis e podem criar raízes profundas. Cada coisa nova já foi velha. Tudo se resume em escolhas humanas.

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correl. - aqui

Rússia: entre os tecnocratas e os siloviki, quem é a elite que rodeia Putin?

A guerra na Ucrânia vai aprofundar as divisões dentro do círculo de poder do Presidente russo, acreditam vários analistas. Os homens do aparelho militar e de segurança estão mais fortes, mas a “neutralidade” que foi muito conveniente para a restante elite pode começar a vacilar.

Alexandra Prado Coelho

26 de Fevereiro de 2022, 22:00

 “Esqueçam os oligarcas. Sei de uma melhor forma de atingir Putin”. Num texto com este título, publicado no jornal britânico The Guardian, Angus Roxburgh, antigo correspondente da BBC em Moscovo, ex-consultor do Kremlin, e autor do livro The Strongman: Vladimir Putin and the Struggle for Russia [O Homem Forte: Vladimir Putin e a Luta pela Rússia], defende que não vale a pena dirigir as sanções económicas contra os oligarcas russos, com pouca ou nenhuma influência, e que o mais eficaz é visar a “elite política” que rodeia Putin.

Mas quem é exactamente esta elite? Roxburgh descreve-a como “os membros da Duma, o Senado, o conselho presidencial, os altos escalões dos serviços de segurança e defesa, os altos funcionários da televisão estatal”. São, diz, “alguns milhares” de pessoas que “ao contrário dos oligarcas”, executam as decisões de Putin e “aconselham-no de facto”. O descontentamento pode espalhar-se entre eles se perderem os muitos privilégios que têm e o estilo de vida que lhes permite viajar e beneficiar dos “iates, pistas de ski e bons hotéis do Ocidente”.

As sanções anunciadas pela União Europeia já atingem algumas destas figuras ligadas ao círculo mais próximo de Putin, banqueiros, chefias militares e figuras dos media, entre os quais o apresentador da televisão estatal Vladimir Soloviev, a porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros Maria Zakharova, ou o vice-presidente do banco estatal VTB, Denis Bortnikov.

Uma tese semelhante à de Roxburgh é defendida pela The Economist, cujos jornalistas ouviram recentemente “empresários, diplomatas, economistas e membros do governo em Moscovo” que manifestaram enorme preocupação com “as ruinosas consequências que uma guerra traria à Rússia”, não só em termos económicos, mas também de respeitabilidade.

Segundo a revista, esta elite acreditava até há pouco que Putin, calculista e pragmático, nunca avançaria para a guerra. São indivíduos que, depois de anos a aceitar “compromissos políticos e morais”, estão numa posição em que “nunca falariam publicamente contra a guerra”, mas “cujas opiniões importam”.

Dentro do círculo do poder há, no entanto, um grupo que tem vindo a ganhar terreno: os chamados siloviki, os “homens fortes” ligados ao aparelho de segurança, militares e serviços secretos, que viram a sua posição reforçada sobretudo depois da anexação da Crimeia, em 2014. E tudo indica que estes serão imunes a quaisquer pressões ou sanções ocidentais.

É a ligação entre Putin (ele próprio um antigo responsável do KGB) e os siloviki que ajuda a compreender aquilo a que, em Novembro, a Economist chamou a “nova era de repressão” que se instalou na Rússia e que tem como base a cada vez mais evidente hostilização do Ocidente e do seu estilo de vida – nos seus discursos, Putin exalta os “valores espirituais e tradições históricas” da Rússia enquanto critica a “decadência do liberalismo ocidental”, uma leitura partilhada pelos “falcões” do regime.

O correspondente em Moscovo do The Guardian, Andrew Roth, explica que o crescente isolamento da Rússia reforçou a posição dos homens do aparelho de segurança, que “alimentam as ansiedades” de Putin. Muitos deles ligados ao antigo KGB, estes siloviki “mantêm visões políticas conservadoras e muitas vezes conspiracionistas”.

Roth cita a analista política Tatiana Stanovaya, fundadora do centro de análise R.Politik, segundo a qual a elite russa divide-se entre os tecnocratas, que dominam o Governo mas não interferem nas questões de segurança, e os siloviki, que incluem figuras como o chefe do conselho de segurança, o ideólogo e “falcão” Nikolai Patrushev, antigo companheiro de Putin no KGB. Tal como, aliás, Serguei Naryshkin, chefe dos serviços secretos externos, recentemente alvo de uma reprimenda pública de Putin, num vídeo que se tornou viral, por não ter sido mais claro no apoio àquilo que o líder russo designa como “o reconhecimento da independência” dos territórios ucranianos de Donetsk e Lugansk, apesar de no passado ter comparado o Governo da Ucrânia à “ocupação de Hitler”.

A mesma Tatiana Stanovaya, num texto no site do Centro Carnegie de Moscovo, vai mais fundo na sua análise, identificando cinco grupos, cujo equilíbrio relativo vai determinar “a fonte a partir da qual sairá a futura liderança”: a entourage pessoal do Presidente, que garante a sua segurança hoje e, provavelmente, no futuro; os seus amigos mais antigos e associados, muitos dos quais se transformaram em oligarcas estatais, enriquecendo e distanciando-se do Governo; os tecnocratas, que ocuparam espaço deixado livre pelos amigos e associados e que incluem, por exemplo, os ministros dos Negócios Estrangeiros, Serguei Lavrov e da Defesa, Serguei Shoigu; os “protectores” do regime, também, em muitos casos, os seus ideólogos, que incluem os siloviki mas vão além deles; e os implementadores, candidatos a ascender ao grupo dos tecnocratas mas que ainda não chegaram lá.

Existe já uma segunda geração desta elite, à qual os analistas Agnieszka Legucka e Bartosz Bieliszczuk, do Instituto Polaco de Assuntos Internacionais, chamam os “Kremlin Kids” e que, seguindo as pisadas dos pais, ocupam, através de empresas estatais, posições dominantes em sectores chave como o financeiro ou o energético, sendo que alguns estão baseados no Ocidente (geralmente estudaram nas melhores escolas e universidades europeias), onde “ajudam a promover a política russa”, influenciando políticos europeus. São eles – entre os quais as misteriosas filhas de Putin, Katerina e Maria, e os respectivos maridos, Kirill Shamalov e Jorrit Faasen, o primo do Presidente, Igor Putin e o seu filho Roman, os filhos do chefe do conselho de segurança, Nikolai Patrushev, Dmitri e Andrei, e muitos outros – “a elite do poder da Federação Russa no futuro”.

Mas esta complexa elite russa, diz Tatiana Stanovaya, “está a tornar-se cada vez mais fragmentada e dividida” por conflitos de poder mas também por divergências ideológicas, o que “representa um sério desafio para Putin”. Assiste-se a uma escalada das divisões: “conservadorismo versus progresso, repressão versus liberalização, pressão versus diálogo, e agressão versus reconciliação”. A analista admite a “formação de uma elite alternativa” em torno dos tecnocratas modernizadores “que, por um lado têm experiência, e por outro se sentem desiludidos pelo serviço prestado ao regime de Putin.”

Tudo isto num país no qual, segundo a Economist, “a ascensão do smartphone” veio abalar o domínio da televisão que durante muito tempo garantiu que a única visão do mundo que chegava aos russos era a do Kremlin e que “o que não passava na televisão não existia” ao mesmo tempo que “aquilo que não existia podia, se necessário, passar na televisão”. À crescente popularidade do smartphone correspondeu a uma queda na popularidade do Presidente.

A possibilidade de reforçar as divisões na elite russa é, portanto, um caminho a explorar. Porque, conclui a revista, “os riscos de ser responsabilizado pelas acções de Putin […] ultrapassam agora os benefícios de servir o sistema”, pelo que, mesmo com a pressão causada pelo crescente poder dos siloviki, “a ‘neutralidade’ da elite torna-se mais difícil de sustentar.”

 

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