Thursday, March 28, 2019

VENEZUELA




O homem caminhava pela berma direita da estrada, estacou a passada cambaleante em frente da habitação isolada na distância de meia dúzia de centenas de metros entre as duas povoações vizinhas, endireitou as costas com a mão esquerda encaixada nos quadris, puxou o chapéu para trás com a mão direita e, com ela em pala a cortar o sol que faiscava a poente naquela meia tarde de verão assador, mirou atentamente a frente  da casa, atravessou para o outro lado, ladrou-lhe um cão de trás do portão do quintal, encostou-se à parede, à sombra da parreira  que era a referência da casa, à espera que aparecesse alguém. O cão continuou a ladrar e a rosnar para se acomodar por instantes, e voltar a ladrar cumprindo o que  esperavam dele, sem da casa aparecer alguém. Os que passavam na estrada fixavam na passada aquele estranho, boa tarde! o homem respondia boa tarde ..., quem passava perguntava-se, sem resposta, quem era aquele estranho ali.
Como tardasse a chegar alguém a casa, começaram as pernas a pedir-lhe descanso, o homem olhou à volta a espreitar onde pudesse sentar-se, encontrou-o no rebato da porta da frente, demasiado curto para o seu volume, mas melhor que nada. Ali, virado a nascente, podia passar a tarde à espera sem se derreter ao sol, a relembrar-se da última vez que por ali passara, estava aquela casa em começo de construção.
Deram-lhe as recordações ou o cansaço sono, semi acordava por instantes com o boa tarde de quem passava na estrada, agora mais próximo dele, tão perto que havia quem retardasse o passo, quem será, quem não será, e seguia. 
Até que chegou o rapaz, apeou-se da bicicleta, encostou-a à parede da parreira, foi ter com o homem meio adormecido, tocou-lhe no ombro, levantou-se o homem com a ajuda do rapaz, que logo percebeu que as articulações do velho estavam em mau estado.

"Obrigado! Muchas gracias! Obrigado ... Están a oxidarme las piernas, sabes ... La edad no perdona, entendes? No me conoces, pues no, tendrías unos dos anitos cuando aqui me  vine despedir de tus padres, ... somos viejos amigos, compadres, ... Entiendes?
Sou o Mário Rodrigues, … e tu és Rodrigo, no? Es muy parecido a tu padre, ... Vi tan pronto que sólo podias ser el Rodrigo.
Desculpa hablar desta forma que no es ni portugués ni castellano, mas , entiendes? casi veinte anos de ausencia tenían que tener malas consecuencias ... Y no hablar bien el idioma de nuestra patria es una desgracia, si, ... todavia no es la maior ..."

O homem deixou o discurso suspenso, talvez a aguardar uma ou outra pergunta do rapaz, mas este aproveitou a pausa para o convidar a entrar em casa.
Toma alguma coisa?
Água, só água, por favor.
Bebeu um copo cheio, de uma golada, o rapaz voltou a encher o copo, sorvido pelo homem à medida que falou, falou, falou, como se tivesse a cabeça cheia de histórias e uma vontade premente de a aliviar. Acontece frequentemente confessar-se um desconhecido a outro, descarregar peso da consciência num cesto sem fundo, o que nunca contaria a gente próxima. O rapaz não sabia quem era aquele desconhecido, que convidara a entrar em casa porque a senha batia certa: Rodrigo, parecido com o pai, teria dois anos quando a casa ficou construída e os pais se tinham mudado para lá.

"Es muy buena esta agua de fonte nova, fresca, límpia, sin sabor a cloro...ni nada, solamente água....No hay agua comparable con esta agua de fonte nova ...no, no, no hay ..."
Estava maravilhado com aquela água, ignorando que a água que agora se bebia lá em casa não era da fonte nova, que no pino do verão quase secava, mas canalizada e tratada com cloro a uns quilómetros dali. O rapaz não o desiludiu, percebia-se que a ausência baralhara as contas do velho, talvez as saudades lhe embotassem o paladar, para quê lançar o raio da verdade sobre uma ilusão que o encantava. Cada revelação ao rapaz, rematava-a o homem com um gole de água, e um ah, boa água!, e continuava a confissão.
Em 1936, tinha ele 34 anos, já era maquinista na companhia de caminhos-de-ferro, para onde tinha entrado com 18 anos como serralheiro aprendiz nas oficinas. Sabias que naquele tempo construíamos nas nossas oficinas as carruagens de primeira, segunda e terceira classes? Pois é verdade ... Nas nossas oficinas, nota bem! Ao estrangeiro só comprávamos os chassis e as rodas e, claro está, as locomotivas. Mas tudo o mais era feito por nós, e montado, evidentemente. Bons tempos... aqueles é que foram bons tempos! Nas oficinas chegou a oficial de terceira, tinha 22 anos, quando o convidaram para fogueiro. Era um trabalho danado, aquele de alimentar a fornalha a pazadas de carvão trazidas no atrelado à locomotiva, tanto no Verão como no Inverno o fogueiro viajava no inferno. Mas compensava, no todo, salário e horas extras, que os comboios raramente andavam à tabela, via única, entendes? complicava, um fogueiro levava para casa vez e meia o que levava como operário nas oficinas.
Foi fogueiro durante três anos  até  que um dia saiu aviso que estava aberto concurso para maquinistas, concorreu, e de fogueiro mudou-se para o posto ao lado, mais bem pago e muito menos pesado. O gozo que aquilo lhe dava, santo deus!, manobrar uma bisarma daquelas a resfolegar até à fronteira espanhola era, para quem nunca tinha saído dali, qualquer coisa assim como uma ida e volta à lua três vezes por semana. Juntou dinheiro, construiu uma casa e tinha já quatro filhos quando em 36 rebentou a guerra em Espanha. Quem primeiro lhe deu a notícia, meio sussurrada, porque estava com os republicanos, foi Esteban Sánchez, maquinista dos ferrocarriles, dos arredores de Salamanca, que costumava parar por um bar em Vilar Formoso. Constava que tinha ligações a um grupo que contrabandeava, mas comigo, acerca de contrabando, nunca se descoseu. Em Outubro de 36, nas comemorações do "Dia de la Raza", o reitor da Universidade de Salamanca rejeitou os discursos de ódio dos franquistas, a coisa ficou complicada, não mataram o Unamuno, que era basco, mas vontade não lhes faltava. Um deles, estava o reitor  terminar o discurso, berrou "morra a intelectualidade traidora! ". Salamanca tinha sido tomada pelos militares franquistas em Junho, tornou-se um dos alvos de bombardeamentos aéreos republicanos durante 36 e 37, um deles atingiu a estação de comboios, só terminaram no fim de Janeiro de 38, as ligações ferroviárias entre Portugal e Espanha estiveram frequentemente interrompidas, começaram a ouvir-se rumores que a companhia estava com contas negativas, que o corte de comboios veio agravar, que a companhia iria ser absorvida por outra maior, que talvez houvesse despedimentos, … enfim…
(outro gole de água)
... para compor o quadro negro, poucos meses depois de ter acabado a guerra civil espanhola, os alemães invadiram a Polónia e rebentou a segunda grande guerra mundial. Se as coisas estavam más, ficaram ruins; antes, os bombardeamentos forçavam a supressão das viagens, depois, não havia hulha para os comboios andarem. Nem hulha, nem tantas outras coisas que o país importava e, de um dia para o outro, os fornecimentos às famílias foram racionados, embora Portugal tivesse ficado de fora do conflito.
(outro gole)
No Verão de 41, volto a encontrar o Sánchez no bar de Vilar Formoso. Tinha-lhe perdido  o rasto desde 37, segundo me disse esteve refugiado, ele e a família, tinha mulher e três filhos menores, em casa dos sogros, que eram agricultores nas Astúrias, despedira-se ou fora despedido dos ferrocarriles por ter batido palmas ao discurso do reitor no dia da raça e estar a ser perseguido pelos franquistas. Verdade ou não, o certo é que, quando o reencontro em 41, o Sánchez estava em Vilar Formoso para apanhar o comboio que o levasse a Lisboa e emigrar para a América. 

Conversa puxa conversa, vais  só ou levas a família, ia sozinho a ver onde paravam as modas, se as coisas corressem de feição, mais tarde chamaria a mulher e os filhos...
(outro gole de água, o copo já fora, entretanto, reabastecido duas vezes)
Na década de 40, a Espanha ainda sangrava feridas por todo o corpo, os ódios entre irmãos continuavam a deitar pus nacionalista, os que venceram não convenceram, para os falangistas os bascos e os catalães viviam à custa dos outros povos de Espanha. Da penúria nos dois lados da fronteira tiravam vantagem os contrabandistas e os candongueiros. Esteban Sánchez estava habituado a salário certo e ao vento nas ventas, as costas aguentaram-se-lhe durante dois anos a cultivar as terras dos sogros mas cansaram-se. Quando lhe disseram que o futuro estava na América deixou as alfaias, tratou de convencer a mulher, e ala que se faz tarde, para o outro lado do Atlântico.
Não queres vir?, depois de ter convencido a mulher quis convencer-me a mim. Disse-lhe logo que não, nem pensar, tinha um emprego certo, sabia bem com o que podia contar, a companhia talvez já tivesse conhecido melhores dias, comprávamos a mercearia com as senhas de racionamento, mas, pelas informações que tinha, os americanos iam entrar na guerra e os nazis ficariam esmagados entre os russos e os aliados …
(outro gole de água da fonte nova)
Resumindo e concluindo, o Sánchez embarcou para a América e eu regressei a casa, naquela tarde, mas a ruminar com os sucessos dos americanos... 
(outro gole da melhor água do mundo)
À noite, já os filhos estavam deitados, contei à minha mulher a conversa que tinha tido com o Sánchez, que ela nunca tinha visto nem mais gordo nem mais magro. Que torna e que deixa, lembra-te que temos quatro filhos para criar, a mais nova fez há dias três anos, se não ganhas como me governo, quando a conversa acabou, ela tinha arrumado a ideia que o Sánchez seria um doido e mais doido que o Sánchez seria quem lhe desse ouvidos. Pareceu-me razoável, deitei a tentação do Sánchez para trás das costas e dormi como uma pedra...
(outro gole) ...
Até que um ano mais tarde, recebo uma carta do Sánchez. Estava na América, feliz da vida, a família com ele, era maquinista de um cargueiro de cabotagem, não ia a casa todos os dias mas na ferrocarriles também não, ele e a família já estavam habituados aquela vida de se verem consoante o serviço mandasse. Diferente mesmo só o clima, quase sempre quente e húmido, chuvadas a sério, fora isso era como se estivesse em Salamanca, Santander ou Sevilha. ...
(outro gole) ...
Mas, afinal, por onde é que andava o Sánchez? Respondeu-me que, normalmente, entre La Guaira, perto de Caracas, e a ilha de Curaçau, que ficava em frente. Oh rapaz!, até que eu percebesse
por onde andava o Sánchez, ele que me tinha dito que ia embarcar para América, e não mentira, levei quase tanto tempo como o Colombo a chegar onde não contara chegar. Aparte o clima, tudo o resto eram maravilhas, jorrava mais petróleo que água de um milhão de fontes como a fonte nova, embora ele não trocasse a água da fonte nova por nada, havia pobres, claro que havia, e muitos, mas onde é que não há pobreza, sabes dizer-me?, pois não, mas quem tivesse dois dedos de testa, em terra de cegos ficava podre de rico num abrir e fechar de olhos. ...
(outro gole)
Em conclusão: o Sánchez estava na Venezuela.
O homem disse Venezuela, e perguntou ao rapaz: que se passa contigo, Rodrigo?
Nada, não passa nada ...
Perguntei porque pareceu-me que, por instantes, estavas noutro lado qualquer.

E estivera.
Tinha ele, três anos? talvez quatro, repartia as tardes em casa da avó materna ou da avó paterna, todas as casas são das avós, e quando o sol começava a pôr-se diziam-lhe as avós que eram horas de ir para casa, e que fosse sempre pela bordinha, nunca te esqueças, vais sempre pela bordinha.
A vizinha da avó materna era uma senhora mais alta que a média das mulheres daquele lugar, cabelo louro-acastanhado, indiciando sangue com muitos pingos celtas, ondulado, apanhado enrolado no cocuruto, rosto rosado, sorridente, teria pouco mais de quarenta anos, quando o rapazinho lhe entrou no quintal como costumava fazer quando calhava ficar em casa da avó materna.
Observou o rapazinho o estado de evidente degradação em que se encontravam os anexos à casa onde a vizinha da avó tinha a capoeira, no rés-do-chão, a coelheira por cima; observar os coelhinhos e os pintainhos eram o maior encanto do rapazinho.
Maria Loira, porque estão tão mal os teus telheiros?
Maria Loira riu-se, porque desaprendera chorar-se, com a inesperada pergunta do catraio, e depois disse
Olha, estão assim porque não tenho dinheiro para os arranjar.
E porquê?
Maria Loira, riu-se novamente com misto gosto e desgosto, e depois disse
Ora, porquê? Perguntas bem ... Não tenho dinheiro porque o Mário Russo deixou de o mandar.
Onde está o Mário Russo?
Na Venezuela.
O rapazinho rodou para a esquerda e direita o pé direito três ou quatro vezes, a olhar o chão rodado, e depois disse
Eu vou à Venezuela!
Maria Loira, desta vez, deu uma saudável gargalhada,
E que vais tu fazer à Venezuela?
Dizer ao Mário Russo que mande dinheiro que é preciso para consertar os telheiros.
E como vais tu à Venezuela?
Vou sempre pela bordinha.

Maria Loira, riu a bom rir, agarrou o miúdo nos braços, e deu-lhe um beijo em cada face, e a criança, porque talvez tenha tomado consciência da impotência da sua vontade, a partir daquele abraço, nunca mais perguntou pelo Mário Russo, acabando por varre-lo da  memória.
O rapazinho não tinha ido à Venezuela mandar o Russo enviar o dinheiro que a Loira precisava, mas o Russo, quinze anos depois, tinha rolado vezes sem conta a roleta da sorte do mundo, estava ali perante o rapazinho a confessar-lhe porquê.

Mário Russo bebeu mais um gole daquela água sem par e continuou a despejar o saco que, a julgar pelo que dissera até ali, adivinhava-se ser pesado. 
O Sánchez estava na Venezuela, era maquinista num cargueiro, uma ocupação apenas aparentada com o maquinista que ele tinha sido na ferrocarriles, mas o Sánchez aprendera depressa a reconversão, não era ele quem comandava o barco mas quem garantia o seu andamento. Tinha saído de um país arrasado por uma guerra civil e de um continente velho, a matar-se há séculos, e tinha encontrado o el dorado. E ele, Mário Rodrigues, mais conhecido por Mário Russo, não porque fosse comunista como muitos julgariam que fosse, mas porque o pai, o avô, o bisavô, e por aí atrás, eram os russos sem saberem porquê, por que estava à espera num país retrógrado e não dava o salto para um mundo melhor, para ele e a sua família? Continuaram a trocar correspondência e a última carta do Sánchez recarregara-lhe a tentação de ver para crer, se o Sánchez estivesse a dourar a pílula, quem vai também volta, tinha os seus riscos mas nada que não pudessem ser controlados, pior que o que estava não podia vir a estar, era um profissional de competência reconhecida, de um modo ou outro haveria de voltar e aguentar-se. 
Voltou a ruminar uma abordagem junto da mulher e, uma noite, a coitada, cansada e confundida, não disse que sim mas também não disse não. Daí a três meses, tendo o Mário Russo garantido, que se voltasse,  teria aceitação num concurso para recrutamento de maquinistas que a companhia viesse a realizar nos dois anos seguintes, estava ele a embarcar para a Venezuela com a promessa de alojamento em casa do Sánchez enquanto não garantisse alojamento próprio.
(chegado a este ponto, o Russo bebeu a água que restava no copo, o rapaz voltou a encher, obrigado, Rodrigo, obrigado, inclinou a coluna e a cabeça para trás, os olhos fechados voltados para o tecto durante uns instantes, passou as mãos em jeito de secar as lágrimas que não tinham escorrido, e continuou o discurso).

O navio tinha saído de Roterdão, passara em Bilbau antes de chegar a Lisboa. De Lisboa navegou para a Madeira, na Ilha entraram dezenas de imigrantes com contratos de trabalho na agricultura, um ou outro com a mira fisgada de se estabelecer como comerciante, padeiro ou outra ocupação rentável e menos dura que os trabalhos da terra, mas nenhum com experiência nem o fito de se tornar mecânico em terra ou no mar. Foi uma viagem dura, mesmo para quem, como ele, tinha cruzado o país do mar à fronteira durante quase vinte anos no comando desabrigado do sol, das chuvas, dos ventos, na fornalha do pino do verão ao lado da fornalha da locomotiva. 
Um dia, conseguiu descer à casa das máquinas e começou a dizer mal da vida dele, se o paraíso de que lhe dera conta o Sánchez era daquele tipo, adeus minhas encomendas, chegava a La Guaira, passa bem por cá amigo Esteban mas este que me trouxe também me levará de volta. Aquilo era outro bicho, nem comia hulha nem apanhava vento pela frente, se aquilo não era o inferno o inferno não devia andar longe daquilo. E, se dormia mal as noites e vomitava os dias, a partir da descida aquele inferno navegante nunca mais pregou olho a pensar no que diriam dele quando voltasse a casa depois de queimar as poupanças numa viagem de ida e volta com o estômago a querer sair-lhe pela boca ...
(outro gole, outra desempenagem dos ombros, torcidos pela tortura do relato das recordações, e continuou, sempre pausadamente, como se cada uma coubesse toda no tempo tomado)
Quando, finalmente, o navio aportou em La Guaira, Mário Russo estava mais morto que vivo e a sensação que tinha ido parar ao fim do mundo. Desembarcou sem pressa nenhuma, talvez até nem valesse a pena desembarcar, pensou informar o capitão do navio que perdera os documentos, talvez, quem sabe?, o levassem recambiado para a origem. Estava nesta de saio, não saio, já a tripulação o empurrava para a ponte de desembarque, quando ouviu o Sánchez chamá-lo detrás da vedação que isolava o cais e os serviços de controlo de entrada e saída de passageiros. Maldito Sánchez, pensou, e amarrou a máscara do imenso desespero que o assaltara naquela tarde em que descera à casa das máquinas só para ver como era...
(mais uma pausa para outro gole de água da fonte nova, estava tão encantado com a água que deixara de beber há vinte anos que ainda nem reparava que o rapaz enchia o copo na torneira)
Por momentos, quando estava a mostrar a documentação na fronteira, julgou que a sorte caminhava para o lado dele quando o funcionário embirrou com a discrepância na data de nascimento, em 1902 no passaporte, e 1982 na autorização de imigração, manifestamente errada porque se estava em 1945. Se por aquilo não o deixassem passar nem um abraço daria ao Esteban; mas deixaram, na condição de no prazo de cinco dias obter documento com a data correcta recorrendo ao consulado de Portugal em Caracas. ...
(mais uma pausa, mais um gole)
O Esteban, mal o viu a passar a porta de saída, quase o ia matando com um abraço demasiado apertado para o seu físico combalido. Como te correu a viagem Mário, pareces pálido, vamos já para minha casa, com um bom bife e uns copos ficas como nunca.
Esteban Sánchez tinha uma furgoneta, Chevrolet, se bem me recordo, já muito usada, de modo que, atirada a mala para dentro da viatura, ala que se faz tarde para casa do espanhol, a viagem levou  uns vinte minutos, se tanto, com a pileca norte-americana a trote controlado.  
A casa de Esteban ficava a meio caminho entre Caracas e La Guaira, o Mário dormiria naquela noite no sofá da sala. Depois dos bifes e dos copos prometidos, a família Sánchez, ele e a mulher, o filho de 13 anos e duas gémeas de 8, deitou-se cedo, e o Russo, de tão cansado que estava, caiu no sofá como uma pedra. No outro dia, cerca das sete da manhã, depois de um café e um pão com chouriço, disse o Esteban ao Russo: vou mostrar-te uma coisa que vais gostar de ver. 
Havia três bicicletas arrumadas à noite nas traseiras da casa, que era térrea, tinha cozinha e três quartos, sanitários, além da sala onde o Russo dormira, cada um pegou na sua bicicleta e, Mário, vem atrás de mim, rumaram os dois no sentido do porto. A meio caminho, o Sánchez desmonta da bicicleta, encosta aí, Mário, o Russo encostou, o Sánchez bate a uma porta, espera, daí a um minuto, percebe-se que alguém espreita pelo ralo, abre-se a porta e sai de lá um indígena, bom dia sr. Sánchez. Tudo tranquilo, Pepe? Tudo tranquilo sr. Sánchez. Até logo.
Entraram, o Sánchez abre as duas janelas da frente, uma de cada lado da porta de entrada, protegidas por gradeamento de ferro grosso. A porta da entrada abre para um balcão, e, atrás do balcão, prolonga-se um corredor que termina numa janela, gradeada como as da frente, e o Russo fica confuso com o que vê. O que é isto? Que te parece? Um armazém? Uma loja? Acertaste.
Comprei isto há um ano e não estou arrependido. Sim, trabalhei durante algum tempo num barco que fazia ligação a Curaçau, mas depressa aprendi que nesta terra não é a trabalhar para os outros que se levanta cabeça. Não era mal pago, mas, pelo que me pagavam, mais valia não ter saído das Astúrias. Se sais da tua terra é para viver melhor do que lá. Comprei isto a um fulano que já tinha idade e ganho o suficiente para se reformar, mantive alguns fornecedores, agenciei outros, a clientela é quase toda gente que trabalha no porto e compra aqui tudo o que precisa em casa. Se não tenho em stock, trato de ter daí a dois dias ou três, no máximo, não há vendas a crédito, é tudo toma lá dá cá. Só não vendo carne, nem peixe, nem pão. De resto, vendo de tudo o que consigo comprar, se mais comprasse mais vendia. Este país fervilha em dinheiro à custa do petróleo, chegaste na melhor altura. Não há outro igual na América Latina, nem a Argentina, nem o Brasil, nem o Chile, nenhum! De modo que, se queres ser operador maquinista naval, é só dizeres e começas amanhã já. Mas vais ficar desiludido porque aquilo não trabalha a vapor mas a diesel, não a apanhar vento nas ventas mas a derreteres-te com calor lá em baixo, já estás com quantos anos? Quarenta e três, mais dois que eu, de modo que tenho uma proposta a fazer-te: ficas a trabalhar aqui comigo, isto de vender ao balcão aprende-se em três tempos, eu ando nas compras, e, das duas uma: ou recebes um salário idêntico ao que te pagariam no porto, ou oitenta por cento durante o ano e no fim do ano um terço dos lucros. Quem tem estado aqui ao balcão é a minha mulher na parte da tarde, enquanto eu ando nas compras, mas precisamos de gente que nos ajude aqui porque temos três filhos, e ela tem muito trabalho a fazer em casa. À noite dorme cá aquele moço que saiu quando entrámos, fica no quarto que já te vou mostrar, lá ao fundo à direita, à esquerda ficam os sanitários, temos lá uma caçadeira e outra aqui debaixo do balcão, depois falaremos com mais demora sobre isso, nesta terra é tudo bom menos a segurança, há pobre a mais e, já se sabe, ninguém dorme bem com fome. Neste momento temos um bom presidente, esperamos que ele amanse a corrupção que engorda demais uns tipos insaciáveis e dão maus exemplos aos burocratas. Pensa nisto. Vai dar uma volta pelas redondezas para conheceres o sítio, aparece por volta da uma, a Pilar chega por volta dessa hora e vai trazer qualquer coisa que se coma. De tarde acompanhas-me nas compras e continuaremos a falar sobre isto. Valeu?
(outro gole de água, outro inclinar a cabeça e o tronco para trás a desempenar os ombros)
Andei por ali a vaguear, tendas de vendas como a do Sánchez havia várias, por momentos dei comigo a pensar que naquela terra se vivia a vender e a comprar uns aos outros, mas se o Sánchez dizia que circulava dinheiro naquela terra como em nenhuma outra daquele continente depois que começara a jorrar petróleo como nunca se vira noutro lugar do planeta, tanto comprar e vender faria parte da festa. Numa esquina havia um posto de correios, e, ao lado, uma papelaria que também vendia tabaco, lotaria, jornais, comprei papel e envelope, e, ali mesmo, escrevi à minha mulher, tinha chegado, a viagem podia ter sido melhor mas estava de boa saúde em casa do Sánchez até encontrar casa própria. Ia começar a trabalhar, tinha muitas saudades dela e dos filhos, e esperava tê-los  ali até ao fim do ano. Comprei um selo com dinheiro que tinha cambiado a bordo, e como tinha quatro notas de conto na carteira, puxei de uma nota e meti-a no envelope. Era um gesto precipitado, enviar uma nota que tinha trazido apenas dois dias depois de ter chegado, mas tinha-o deixado satisfeito consigo mesmo. Estivera até hesitante entre enviar uma nota ou as quatro logo no mesmo envelope.
Depois do petisco que a Pilar lhes trouxera, montaram na pileca a diesel e foram às compras. Mal se sentaram disse o Russo para o Sánchez, já mandei carta para casa. Fizeste bem, fizeste muito bem. E meti lá dentro uma nota de conto… Meteste o quê? Uma nota de conto. Comprometi-me a não lhes faltar com o dinheiro que precisam para os gastos da casa … Tu meteste uma nota de conto num envelope dos correios???...
Meti. Por que não? Porque assim nem chega a nota nem chega a carta! Os tipos dos correios têm olfacto apuradíssimo, como cães, percebes? Não. Oh, santa ingenuidade! cartas que lhes passem pelas unhas com notas dentro, extraviam-se para destino incerto. Disseste que tens mais três no bolso?
Tenho. Não deves andar com tanta massa por aí. Se alguém adivinha, ficas sem ela enquanto o diabo esfrega um olho. Temos de ir ao banco, abres conta, e depositas o que quiseres. Até lá, cuida-te, anda muito malandro à solta, já te disse que o maior problema deste país é falta de segurança ... e corrupção a mais. De um modo ou de outro roubam-te se não andas com os olhos bem abertos …
(mais um gole, mais uma desempenagem dos ombros)
Fomos às compras, a Pilar tinha feito uma lista das faltas observadas na tarde do dia anterior a que ele acrescentara as daquela manhã. No mercado comprou batata, cebola, alho, tomate, massas, óleo, tudo para cozinhar, menos carne, peixe e pão; num grossista aviou-se de tachos, panelas, fogareiros, sabão azul e amarelo, lixívia, petróleo, coisas assim. Noutro, já nem me lembro. Chegámos à loja já os bancos tinham fechado. Fica para amanhã, disse o Sánchez, antes das compras vamos ao banco. Logo à noite, depois da ceia, vamos dar uma volta e falamos do que te propus, se estiveres de acordo.
Ele tinha pensado na proposta do Sánchez o no que ele lhe tinha dito: antes, se vens para aqui para trabalhares por conta de outro melhor seria não teres saído de onde vieste, e depois, vem trabalhar comigo, pago-te o que te pagariam no porto e ainda te dou trinta por cento dos lucros do ano.
Saíram para a passeata e o Russo não esteve com rodeios, colocou o Sánchez perante a contradição visível, mas este não se engasgou e avançou com um reforço: posso oferecer-te a possibilidade de seres meu sócio, realizando a tua quota com o terço dos lucros anuais, entendes? Mais ou menos ... deixa-me pensar no assunto. Já agora, acrescentou Sánchez, caso queiras poupar nas despesas de alojamento, podes dormir no quarto da loja, compro cama, roupa e armários novos, pintam-se e lavam-se os sanitários, dispenso o Pepe, ficas com duas caçadeiras para te defenderes se for preciso.
(outro gole, outra desempenagem)
No outro dia, o Russo ajudou Sánchez no balcão, quanto possível. De tarde, foram ao banco antes de rumar às compras. Miquel, apresento-te o meu amigo Mário Rodriguez, português, chegado anteontem, quer abrir conta. Muito bem, trouxe os documentos, passaporte, autorização de imigração? Miquel, mal olhou para a autorização notou logo que faltava corrigir a data absurda. O Russo esquecera-se da determinação feita na alfândega, deixo-te no consulado, quando tiver as compras passo por lá. Se houvesse tempo, mas não havia, o consulado ficava em Caracas, para lá chegar gastava-se uma hora, pelo menos. Ficava para o dia seguinte, pedia-se à Pilar que estivesse de manhã na loja, eles sairiam bem cedo para Caracas e logo se veria quando estariam de volta. No outro dia, estavam à porta do consulado ainda o consulado não abrira, só abriria duas horas depois. Olhou o funcionário, demoradamente, o documento da data impossível, depois pediu só um momento e desapareceu pela porta por onde entrara, voltou longos minutos depois com a decisão obtida lá dentro: a disparidade das datas só poderia ser remediada com uma certidão de nascimento. Com quê?, perguntou o Sánchez verdadeiramente incrédulo.
Pode uma certidão de nascimento certificar que o senhor Mário Rodriguez nasceu em 1982 quando estamos no ano de 1945? Se não, para quê uma certidão que só poderia confirmar a idade indicada no passaporte? O funcionário olhou, piedosamente, para o Russo, e murmurou que não podia fazer outra coisa senão transmitir as indicações recebidas. E como podemos obter a certidão? Só na conservatória do registo civil onde foi registado. Havia conservatória do registo civil em 1902? Sei lá. Vamos tratar de saber. Pode o consulado declarar que o sr. Mário Rodriguez se apresentou aqui para corrigir o documento, correcção que fica a aguardar a chegada de certidão de nascimento?
O funcionário ouviu e disse que ia saber. Na volta disse que não podia.
Vamos embora, Mário, temos as compras por fazer. 
(outro gole de água, agora descontraído)
Três dias depois, pensou o Russo já a carroça ia a caminho da rota das compras, serei um imigrante ilegal sujeito a ser repatriado, apresento-me na polícia declarando-me incapaz de remediar o erro, e, a pensar no repatriamento, ficou esperançado que daí a um mês ou dois estivesse de volta a casa. E, agora, que faço?, perguntou o Russo ao Sánchez, que ficara embuchado com a informação do consulado. 
Agora não fazes nada, imigrante ilegal neste país é bicho que não falta. Se não quiseres trabalho no porto, onde não passas sem autorização de imigração corrigida, podes trabalhar comigo, como te propus. Entretanto escreve à tua mulher e pede-lhe que te obtenha a mal fadada certidão.
Quanto à abertura de conta no banco, deixa isso comigo, sou bom cliente, tenho a certeza que o Miquel aceita como suficiente o passaporte, e a autorização de imigração, se a abertura da conta for feita com data de hoje, é válida e aguarda a chegada da certidão.  
O Russo escreveu à mulher nesse mesmo dia, perguntando o habitual, dele dizendo apenas que trabalhava em La Guaira, se tinha sido recebida a carta com uma nota, e se lhe obtinha a certidão de nascimento no registo civil.  
(outro gole)
Passado um mês, veio a resposta que, além do mais habitual, confirmava o que afirmara Sánchez: a carta e a nota tinham ido parar a parte incerta.
Respondeu o Russo lamentando ter errado ao enviar o dinheiro por carta mas, nesse mesmo dia, iria enviar outra nota, mas desta vez através do banco.
(pausa para pedir mais água, reparando o rapaz que agora o Russo bebia e transpirava tanto ou mais do que bebia)
Tinha acabado por aceitar a proposta do Sánchez, ordenado e lucros no fim do ano, ser ou não sócio ficaria para ser acertado mais tarde. Passou a dormir na loja, a caçadeira ao lado dele, e, no balcão, já ia no terceiro mês sem problemas maiores. Escrevia para casa duas vezes por mês, e fazia remessa mensal de dinheiro. O Sánchez tinha-lhe contratado quem lhe lavasse a roupa, comia em tascas nas proximidades, e a certidão já vinha a caminho. Apesar da magreza do salário, o facto de não pagar renda por alojamento e comer barato, enviava o prometido à família e juntava o mais que podia para pagar a viagem de volta a casa. O Sánchez sabia daquela fixação e tinha desistido de o aconselhar a mandar vir a família para ali.
(outro gole, e outra vez o copo vazio, e o copo cheio)
Durante a noite, longa e quente demais para tanta solidão, Mário Russo sentia-se o exemplar mais desafortunado da espécie humana. Dormia e acordava sem dormir nem acordar de todo, sonhava com assaltantes, bandidos e polícias a correr atrás dele, um imigrante ilegal, com o tipo da alfândega e o do consulado a gargalhar tanto e tão agudo que acordava com dores de ouvidos, com a fila de clientes impacientes porque que vinham sempre com pressa e saiam sem pagar as contas, com a família a passar fome porque nos correios lhe furtavam as cartas. 
(novo gole)
Até que, numa dessas noites de calor e humidade irrespiráveis dentro de uma loja sem entrada de ar fresco, ouvindo lá fora quem passeava o prazer da liberdade das ruas aquelas horas, ouviu, ou não ouviu? baterem à porta. Talvez estivesse a sonhar, não eram horas para abrir a porta. O Sánchez, que horas seriam? ainda só dez da noite, o Sánchez nunca vinha ali aquelas horas, e mal continuou a pensar que sonhara com o Sánchez, ouviu, não podia deixar de ouvir, alguém a meter pé ou bota à porta. Ergueu-se em pelota, com tanto calor e humidade, só em pelota, pegou da caçadeira e espreitou o movimento no corredor, e, de relance, viu dois vultos. Escondeu-se atrás da parede que dava para o corredor, o coração a galope, a caçadeira a tremer-lhe nas mãos.
Quem vinha, vinha devagar, levou uma eternidade a dar sinal de ter chegado, depois alguém disparou, para matar ou intimidar, vá lá saber-se onde mora a verdade dos factos nestas circunstâncias. O certo é que, quem disparou, saltou para o interior do quarto, e a caçadeira, a tremer, disparou, e quem tinha saltado caiu morto. O outro visitante, ouvindo a resposta ao tiro do parceiro, retrocedeu e saiu porta fora.
(mais água, por favor!, mais um gole, e um longo, longo, compasso de espera)
E era uma vez um polícia; um rapaz novo, que fora mandado inspeccionar as instalações comerciais de Sebastian Sánchez, um imigrante espanhol há alguns anos estabelecido nos arredores de La Guaira, sem casos de qualquer espécie no cadastro, que, segundo constava, recorria aos préstimos de um tal Pepe para guarda da loja, dormindo nela durante a noite. Do Pepe também não constava mancha no registo criminal mas, naquela noite, quando o Russo sonhava com polícias e ladrões, tinha-se envolvido numa rixa num bar, estariam todos bêbados quando a polícia recolheu três mortos, outros tantos feridos, meia dúzia de ilesos, e contou, segundo as testemunhas ou denunciantes, três homens em fuga, um dos quais, José Bordera, o Pepe.
O Russo, apanhado pela polícia, em pelota, no quarto em que dormia sozinho, foi julgado e condenado por homicídio voluntário! de um agente da autoridade a vinte anos de prisão. Cumpriu quinze.
(outro gole, curto)
Repatriaram-me, finalmente fui repatriado.
No banco, não consegui levantar as míseras poupanças desgastadas pela inflação porque não podiam entregar dinheiro, muito ou pouco que fosse, a alguém que só iria nascer daí a vinte anos…
Não dá para acreditar, pois não?  
(outro gole)
Na prisão sofri muito, sofri sevícias o que tenho vergonha de contar, mas sobretudo sofri consciente do que fazia sofrer aqui, onde não sabiam sequer se estava vivo se morto.


Porquê?

2 comments:

Francisco Carvalho said...

parabéns, Rui...capítulo de um romance...abç

Rui Fonseca said...

Abraço, Francisco