Wednesday, January 25, 2006

TURNOIL

TURNOIL



TURMOIL IN IRAQ IS PART OF PROGRESS, BUSH SAYS
Washington Post /January 11 (dia em que as forças militares no Iraque já contavam 2209 mortos)

The American people know the difference between responsible and irresponsible debate when they see it,” he said. “They know the difference between honest critics who question the way the war is being prosecuted and partisan critics who claim that we acted in Iraq because of oil, or because of Israel or because we misled the American people”, said President Bush speaking to a gathering of Veterans of Foreign Wars.


Se George W. Bush não tivesse ganho as eleições em 2000,
se o imbróglio da Florida não tivesse existido,
se o irmão de Bush não fosse Governador da Florida,
se os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça tivessem sido mais juízes e menos partidários,
se o Al Gore tivesse sucedido a Bill Clinton,

teria havido o 9/11?

O Afganistão continuaria a ser dominado pelos talibãs?
Sadam Hussein continuava a ditar em Bagdad?
Osama Bin-Laden continuava nas montanhas afegãs (onde provavelmente ainda se encontra, aliás)?

Não se pode rebobinar a história mas podem pensar-se os cenários alternativos prováveis se o curso dos acontecimentos fosse alterado á partida. Por exemplo, colocar as questões ao contrário:

Se Al Gore tivesse sido eleito (obteve a maioria dos votos) a Al-Qaeda teria destruído as Twin-Towers e milhares de pessoas?
Tudo leva a crer que sim. Já tinha perpetrado antes um atentado muito antes no World Trade Center, e sabe-se hoje que a operação de ataque às Twin tinha começado a ser preparada muito antes de George W. Bush ser presidente.

Nesse caso, o que teria feito Al Gore?
O ataque às Twin não poderia deixar de obrigar o Presidente dos EUA, qualquer que ele fosse, a tentar abater o Terrorista atacando o seu refúgio.

Os EUA são um Império e assumiram-se inequivocamente como tal em muitas situações no passado, independentemente das posições políticas das suas Administrações. Após o desmoronamento do muro de Berlim, os EUA não só absorvem todas as características imperiais como o assumem, por enquanto, a exclusividade dessa condição. Negar isto é desconhecer a História dos últimos cento e cinquenta anos e, sobretudo, a história dos últimos cinquenta. Em todas as situações em que as forças americanas intervieram em combate depois da Guerra Civil Americana, fizeram-no fora do seu território e, frequentemente, extrapolando a doutrina anunciada pelo Presidente James Monroe em 1823, retomada no “Manifest Design”, que em meados do Sec XIX estabelecia que “the United States had special rights all over the hemisphere, including the right to invade any nation in Central or South América that refused to back US policies”.

Quando, às três da manhã de 4 de Novembro de 1979, o Presidente Carter foi informado que cinquenta e cinco americanos se encontravam prisioneiros de jovens iranianos na embaixada dos EUA em Teerão, tinha começado uma afronta ao Império que só terminaria 444 dias depois e, entretanto, tinha colocado Carter fora da Casa Branca. Nos meses que precederam as eleições presidenciais o candidato Reagan terá promovido o prolongamento do sequestro para derrotar o incumbente Carter.

Carter, dois dias depois do início do sequestro, mostrava a sua impotência através de um desabafo tão sucinto quanto expressivo “ They have us by the balls”.

Passadas poucas semanas, em Dezembro, os russos invadiram o Afeganistão, sendo esta a primeira vez que os soviéticos faziam uma invasão em larga escala, fora do bloco comunista, desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Em Janeiro de 1980, Carter anunciou o que, desde então, passou a ser chamada Carter Doctrine mas que reafirmava uma clara e consensual política antiga: “ Let our position be absolutely clear. An attempt by any outside force to gain control of the Persian Golf region will be regarded as an assault on the vital interests of the United States of America, and such an assault will be repelled by any means necessary, including military, including military force.” (in The Prize – The Epic Quest for Oil, Money & Power /Daniel Yergin/1992)

Os americanos, no entanto, não invadiram o Afeganistão, na altura, e percebe-se porquê. Se o fizessem teriam que enfrentar o Outro Império com todas as consequências de que a Crise da Baía dos Porcos protagonizada por Kennedy e Krutshev, quase vinte anos antes, tinha dado uma amostra de uma imagem sinistra. O cumprimento da Doutrina Carter pela Administração Reagan passou então pelo apoio claro dos americanos e dos seus aliados árabes aos talibãs e à Al-Qaeda de Osama Bin Laden. Com essa ajuda, os soviéticos foram derrotados, os talibãs tornaram-se donos do País, cometeram as atrocidades conhecidas que espantaram os países civilizados, e Osama Bin Laden tentou tomar o poder no seu país, a Arábia Saudita, foi expulso para o Sudão e conspirava a partir dali quando, por pressão dos americanos teve de se refugiar novamente no Afeganistão e, a partir dali, preparou o ataque de 11 de Setembro.

A História mostra repetidamente que os Impérios construíram-se e sustentaram-se frequentemente pelo uso de agentes guerrilheiros, em alguns casos, para a execução de golpes fortuitos, que podem incluir a eliminação física de adversários à custa de subornos. Os EUA não fugiram nem fogem á regra:

“However – and this is a very large caveat –if we fail, an even more sinister breed steps in, ones we… refer to as the jackals, men who trace their heritage directly to those earlier empires. The jackals are always there, lurking in the shadows. When they emerge, heads of state overthrown or die in violent “accidents”. And if by chance the jackals fail, as they failed in Afghanistan and Iran, then the old models resurface. When the jackals fail, young Americans are sent in to kill and to die. (in Confessions of an Economic Hit Man – John Perkins)

O ataque às Twin foi o primeiro grande ataque aos EUA no seu próprio território. É de algum modo concebível que, após o ataque às Twin, com todos os efeitos que deflagrou, o Presidente dos EUA não reagiria de forma equiparada se fosse Al Gore e não Bush? Ou que Al Gore pediria a intervenção da ONU? Certamente que não.

O ataque ao Iraque, veio praticamente logo a seguir e, sabe-se hoje, que apesar dos argumentos continuamente reafirmados, mas também ajustados à evolução do conhecimento dos acontecimentos, teve subjacente a estratégia americana revelada pela Doutrina Carter. Ainda recentemente, como se refere na abertura destas considerações, George W. Bush, voltou a insistir na sua tentativa de fazer acreditar o povo americano numa intenção abnegada e materialmente desinteressada.

E, Al Gore, teria invadido o Iraque? Com que argumentos?

A invasão do Iraque pelas tropas americanas ficou a dever-se a um imperativo de salvaguarda das reservas petrolíferas no Médio Oriente, para além da importância que a zona geograficamente representa no contexto estratégico para o domínio para o domínio do mundo. Os EUA não podem prescindir de dominar a zona para proveito próprio, das suas corporações (petrolíferas, grandes construtoras, consultores em tudo e mais alguma coisa) e outros interesses privados e, por tabela, dos interesses do resto do mundo petróleo-dependente. Tal não significa que o Presidente dos EUA esteja a conduzir uma guerra justa (mas haverá disso?) ou que o povo norte-americano aprove maioritariamente a intervenção no Iraque; o número daqueles que continuam a apoiar Bush, a maior parte deles convencida que apoia uma missão generosa de implantação da democracia numa região que bem precisa dela, tem-se reduzido significativamente à medida que aumenta a violência e o número de baixas e das notícias diárias que denunciam as dificuldades dos Marines em inverter a escalada de sangue. Bush nunca disse, nem dirá, aos norte-americanos que a presença das suas tropas se justifica para lhes assegurar o petróleo nosso de cada dia e, consequentemente, a garantia da sua estabilidade económica e social; seria altamente politicamente incorrecto, evidentemente; bem pelo contrário, a reafirmação de Bush atrás parcialmente transcrita, numa reunião de Veteranos das guerras em que intervieram tropas americanas, insiste que esse não é o objectivo e só interesses particulares (partisan critics) podem sugerir isso .

Contudo, é sobejamente reconhecido que na véspera do assalto americano os inspectores da ONU se prestavam a fazer novas declarações que, como veio a saber-se pouco mais tarde, concluiriam que não existia a ameaça das armas de destruição maciça no Iraque. Tivessem essas declarações sido prestadas e Bush teria, contrariado, adiado naquela altura a invasão. A proclamada intenção de plantar no difícil solo iraquiano a melindrosa árvore da democracia veio depois.

A invasão do Iraque não ocorreu apenas porque a Halliburton (presidida por Dick Cheney, de onde saiu para o ticket de Bush) e outras corporações americanas compram este mundo e outro por poder e por contratos; a presença americana no Médio Oriente, onde sustenta tribos medievais, inscreve-se numa estratégia que é consensual, desde há várias décadas, entre republicanos e democratas. Mesmo a discussão entre a solução das armas e o diálogo não tem sido fracturante entre os dois partidos que desde sempre alternaram no poder e sempre percorreram as etapas do aliciamento de caciques locais, eliminação de resistências muitas vezes de forma violenta, em última instância pela intervenção militar: a via clássica da construção dos impérios e do seu declínio.

Provavelmente, Al Gore não teria invadido o Iraque e teria optado por pressionar a ONU no sentido de uma resolução de intervenção multinacional. Mas se essa intervenção continuasse a não ocorrer? Se depois do Iraque, também o Irão ameaçasse, como o faz agora, continuar o seu projecto de armamento nuclear, ainda que disfarçado de propósitos pacíficos, e reduzisse os fornecimentos de petróleo? Como sempre tem acontecido, salvo durante um relativamente curto período de tempo em 1973, a Arábia Saudita, que tem colmatado as falhas de abastecimento por perturbações políticas ou outras, continuará a desempenhar o seu papel regulador do mercado mas haverá um momento em que poderá deixar de o fazer de forma suficiente.

As posições actuais da Alemanha, da França e, em certa medida, da China e da Rússia perante o problema da intranquilidade dos mercados quanto aos fornecimentos de petróleo a partir do Médio Oriente, ainda que a Rússia beneficie da instabilidade de fornecimentos da OPEP, demonstram que a ameaça de terrorismo com origem naquela parte do globo está intimamente correlacionada com a conquista pelo controlo dos poços de petróleo e dos oleodutos. Se essa preocupação não existisse ser-lhes-ia mais fácil vender a alma ao diabo e permanecerem espectadores divertidos da queda americana.

É o politicamente correcto que alimenta a hipocrisia global: se fosse reconhecido pela comunidade mundial a inquestionável importância do petróleo no funcionamento da economia global e, portanto, a necessidade de gerir globalmente as disponibilidades conhecidas e as que virão a ser, o Médio Oriente não seria palco das tensões a que, deste modo, está condenado.

E não só o Médio Oriente:

Because of EHM (Economic Hit Men) projects, Ecuador is awash in foreign debt and must devote an inordinate share of its national budget to paying this off, instead of using its capital to help the millions of its citizens officially classified as dangerously impoverished. The only way Ecuador can buy down its foreign obligations is by selling its rain forests to the oil companies. Indeed, one of the reasons the EHMs set their sights on Ecuador in the first place was because the sea of oil beneath its Amazon region is believed to rival de oil fields of the Middle East. The global empire demands its pound of flesh in the form of oil concessions.
These demands became especially urgent after September 11, 2001, when Washington feared that Middle East supplies might cease. On top of that, Venezuela, our third largest oil supplier, had recently elected a populist president…he threatened to cut off oil sales to the United States. The EHMs had failed in Iraq and Venezuela, but we have succeed in Ecuador; now we would milk it for all it is worth.
CONFESSIONS OF AN ECONOMIC HIT MAN – John Perkins – www.JohnPerkins.org


A explicação da invasão do Iraque pelo petróleo como causa dominante tem sido geralmente considerada redutora, não por apoio a Bush mas por contestação da sua política imperialista. O ataque ordenado por Bush foi fortemente contestado pelo eixo franco-alemão, tendo Chirac expressado de forma muito contundente o desconforto da França, onde reside uma comunidade árabe que representa 10% da população residente.

É curioso, se não mesmo surpreendente, que tendo entretanto Gerhard Schröder sido substituído por Angela Merkel como Chanceler da Alemanha, numa altura em que o Presidente do Irão nega que o Holocausto tenha ocorrido e ameaça recomeçar a produção de urânio enriquecido, Jacques Chirac tenha no dia 19 de Janeiro de 2006, de visita a uma base de submarinos em Ille Longue afirmado que “os dirigentes de Estados que usem meios terroristas contra a França e que pretendem utilizar armas de destruição maciça expõem-se a uma resposta firme que pode ser convencional mas que pode ser também de outra natureza”
(in Público – 2005/01/20)

Que mosca terá mordido na orelha do Jacques?
George W. Bush deve ter gostado de ouvir isto. Ainda que ele, George, não se tenha atrevido a dize-lo.

Tuesday, January 24, 2006

UMA QUESTÃO DE CHÁ

Há dias dizia um fulano a outro no Metro, de modo que à volta os ouvissem: O Cavaco não tem cultura! E continuaram a conversa no mesmo tom à volta do mote. A dado momento, um dos ouvintes forçados não se conteve e perguntou: O senhor desculpe, o senhor é culto? O interrogado virou-lhe as costas, não respondeu, e a sessão ficou por ali.
Recordei-me desta cena quando li o post do Prof Vital Moreira no blog causa-nossa, que transcrevo em baixo e não resisti a imitar o interpelante do Metro :
Professor:

Escreve-lhe quem, de vez em quando, lê a sua coluna no “Público” e tem alguma informação da sua carreira política e académica.

Não é meu hábito enviar “cartas ao Director” ou despejar animosidades em blogues de forma anónima. Não tenho opções político-clubísticas, votei em Sócrates, votei em Cavaco. Quando Soares se candidatou e eu votei, votei sempre em Mário Soares, excepto desta vez.

Ao ler as suas considerações sobre a despromoção cultural e aristocrática em Belém com a saída do Presidente Sampaio e a entrada do Presidente Eleito Cavaco Silva, atrevo-me a perguntar-lhe, Professor, como é que mede a cultura de cada um dos personagens em causa? E a aristocracia “no verdadeiro sentido da noção”?

Mário Soares fez do slogan um argumento de campanha: Sou um homem de cultura, Cavaco Silva não é um homem de cultura.

Diga-me, Professor, acha que um homem de cultura faz reclame da sua própria?

O Professor Vital Moreira será um homem de cultura, mas de qual? A cultura, Professor, é uma circunferência de raio variável?

Com os meus melhores cumprimentos

Despromoção
O problema com Cavaco Silva não é só ele ser o primeiro presidente oriundo da direita política, nem o inigma sobre a sua prática presidencial. É ele suceder a quem sucede: 10 anos de um presidente maior do que o País (Mário Soares); 10 anos de um dos presidentes mais cultos e "aristocratas"(no verdadeiro sentido da noção) que já tivemos (Jorge Sampaio). Ter agora um presidente que não ultrapassa os limites de uma cultura economista e tecnocrática é uma enorme sensação de despromoção...
[Publicado por vital moreira]
23.1.06

Monday, January 23, 2006

O BAILINHO DO "SENHOR SILVA"

in "Público" de 23 de Janeiro de 2006

"Nas regiões autónomas, Cavaco ganhou facilmente - teve 55,6% dos votos nos Açores, 58,4% na Madeira. Na Madeira, o resultado de Cavaco foi muito superior à soma dos votos no PSD e no CDS nas legislativas do ano passado - na altura am que o chefe do Governo regional madeirense, Alberto João Jardim, chegou a sugerir a expulsão do "senhor Silva" do PPD - PSD "

Friday, January 13, 2006

O SENHOR SILVA

Uma das formas que alguns escrevedores encontraram para depreciar a imagem de alguém é tratarem-no nas suas verrinas por senhor. Quem não gosta do Silva, chama-lhe O Senhor Silva.

Senhor, passou a ser no dialecto desta gente, uma forma de tratamento desprezível. O designativo perdeu prestigio, aliás há muito tempo, nos meios urbanos, pelo pendor provinciano que aqui habita e foi denunciado por Pessoa, e a mesma sorte teve a consorte, a Senhora Silva.

Dona, por outro lado, só mesmo para o pessoal menor ou para a bisavó.

Quando nos meios rurais o Tio Silva ascendeu a Senhor Silva, o Silva da capital etc. e tal, tinha que ser outra coisa: ou doutor ou trate-me por Silva por favor. Elas fizeram uma inversão curiosa: De Dona e Senhora Dona passaram a Tias. Os pais que se tratavam entre si e aos filhos por tu, e os filhos aos pais por você, passaram a tratar-se entre si e aos filhos por você e os filhos aos pais por tu. De modo que já contamos com onze pronomes pessoais: eu, tu, você, ele, nós, a gente, vós, vocês e eles, e o senhor ou os senhores em circunstâncias geralmente conflituosas; a gramática continua no entanto a registar seis, dos quais um está moribundo e outro em vias disso. Tanto pronome só se concebe na ânsia da diferença.

O Senhor foi tão depreciado que, quando há tempos, José Saramago foi entrevistado na televisão, a entrevistadora viu-se e desejou-se para encontrar modo conveniente para se dirigir ao escritor. E vá lá, vá lá, não o tratou por doutor, ele que tem já uma boa dose de distinções honoríficas.

A preocupação da distinção foi magistralmente gozada por Jorge Amado na figura de Seu Aragãozinho, que viu curados os seus complexos de inferioridade por obra e graça dos compinchas que o fizeram capitão-de-longo curso, em terra seca.

Os equivalentes a Senhor nas outras línguas europeias mantêm-se, com toda a naturalidade, irredutíveis; os espanhóis vulgarizaram o tu, coloquialmente, mantêm o Dom para gente de peso. Por cá a diferença está no título, se as classes baixas se apropriam de um, as altas adoptam outro.

O fenómeno de deslocação das castas observa-se também com os nomes: se
as empregadas copiam para as filhas os nomes das patroas (Maria Albertina porque foste nessa de chamar Vanessa à tua menina) estas passam para outro ficheiro, podendo a idade das pessoas ser calculada cruzando o nome com a classe social. Mas este é um registo de evolução social que também se observa em outras sociedades (vd. Freakonomics /Steven D. Levitt ) . Típicamente portuguesa é a diferenciação das castas pelos títulos. Como no antigo regime, onde, em certo sentido, a sociedade portuguesa ainda se mantém.

Curiosamente, uma forma de tratamento que perdura imperturbável em Portugal é aquela que se utiliza, geralmente, nos endereços epistolares onde quase ninguém arreda pé do Exmº. Senhor e dentro, na missiva, andam V.Exªs. para aqui e para ali numa roda viva intrigante. E deslocada, porque, mesmo que o texto sirva para recordar ao credor pela enésima vez que deve pagar o que deve, nunca se passa sem o V.Exª. faça favor de.

Se o destinatário é dignatário e a missiva exposição, abaixo-assinado ou requerimento, então temos Excelência por extenso.

Nas relações do dia a dia nas empresas ou nas repartições do Estado, na rádio e na televisão, atropelam-se os doutores: doutor para cá, doutor para lá, a banalidade é tanta que até as apresentadoras de televisão e da rádio são doutoradas, e não reagem, lá pensarão que não são menos que os seus doutores convidados. Em noventa e muitos por cento dos casos os títulos são falsos, a senhora ou o senhor em causa quanto muito obtiveram uma licenciatura.

O título é um assunto tão sensível na nossa sociedade que um conhecido intelectual da nossa praça, doutorado, fazia graça há tempos com o tratamento impessoal de um call center que, imprevidentemente, o tratara por Senhor Coelho depois de ele ter repetido duas vezes o nome próprio e dois apelidos.

“Esta expansão do indivíduo (no século XVI) através de um nome duplo tem implicações pessoais interessantes. Aproxima o homem comum do senhor nobre, detentor de um nome muito completo e distinguido por uma pedra-de- armas. Hoje a tendência é regressar à simplicidade tribal ... as figuras públicas têm vergonha dos seus nomes duplos. Para serem populares, chefes de estado e outros políticos devem ser Jimmy e Betsy e Bill.”. From Dawn to Decadence: 500 Years of Cultural Triumph and Defeat. 1500 to the Present / Jacques Barzun / Ed. em português, da Gradiva

A brincar, a brincar, o Senhor Coelho achava o tratamento um deslustre e fez disso uma das suas colunas diárias.

Assim vai Portugal: Com uma grande falta de Senhores, com S grande, sobretudo.

Monday, January 09, 2006

E SE, DE REPENTE, ACABASSE A DROGA

Se a morte morresse já sabemos a confusão que seria: o Bem Amado teve uma ameaça dessas quando, há já uns bons anos, quis inaugurar o cemitério e não apareciam fregueses; há dias Saramago, sarcástico como sempre, voltou ao assunto enredando muitas situações trágicas ou cómicas ou uma coisa e outra. As tentativas que têm sido feitas, desde que o mundo é mundo, para matar a morte apenas a têm feito esperar, e nem sempre com os melhores resultados.

E se, de repente, acabasse a droga?

O esforço para acabar com o tráfico da droga parece ser, ao mesmo tempo, tão sério quanto inglório como aquele que é feito para nos garantir a vida.
Um prognóstico sociológico acerca do tema daria igualmente para encher um saco avantajado de dramas e comédias. Mas não se vá por aí, ainda que o assunto seja demasiado sério, não é essa a intenção da pergunta.

Frequentemente recebemos notícias de apreensões de droga, e tão frequentes são os recordes de quantidades ou os valores de mercado apreendidos, que facilmente se deduz que ou as polícias estão cada vez mais eficientes ou o negócio está em crescimento exponencial. Lamentavelmente, tudo leva a crer que os traficantes, apesar da porventura cada vez mais apertada vigilância policial, estão cada vez mais activos e as apreensões, por mais recordistas que sejam, representarão uma parte pequena da montanha, em expansão, traficada. Se assim não fosse, a crescente eficácia da polícia interceptaria mais cargas mas estas seriam cada vez mais reduzidas. Aliás, os relatórios dos observatórios da droga são inequívocos acerca do crescimento dos consumos de drogas em quase todas as partes do mundo, ocorrendo embora transferências de uns tipos para outros.

O negócio da droga inscreve-se no quadro estatístico da economia suja que regista outros abomináveis comparsas: o tráfico de armas, o tráfico de órgãos humanos, o tráfico de crianças, o tráfico sexual, além do mais, por que a lista está aberta à imaginação humana perversa, que é, por natureza, insondável. Designemo-lo por Quadro 1.

Os caminhos dos dinheiros destes tráficos cruzam-se com os de outros crimes, não tão execráveis mas igualmente condenáveis: a corrupção e o roubo a altos níveis, o contrabando de tabaco e a fuga aos impostos, além de outros delitos de natureza geralmente fiscal. Designemos este outro quadro por Quadro 2.
Os montantes envolvidos nos negócios abrangidos pelo Quadro nº.1 não são, evidentemente, facilmente computáveis, mas já o Relatório Anual do PNUD de 2001, o ano do fatídico 11/9, admitia que só o tráfico de droga a nível mundial envolvesse montantes financeiros equiparáveis aos da energia.

Desde a produção ao consumo a cadeia de traficantes de droga estrutura-se de forma altamente hierarquizada de modo que o passador na rua, embora lidando com o valor unitário mais elevado encaixa margens mínimas quando comparadas com os valores abocanhados pelos tubarões, e mesmo os proveitos desses distribuidores são frequentemente regurgitados para pagamento do auto consumo já que a maior parte deles são drogados. As receitas da droga não se distribuem portanto, ao contrário do que poderia fazer pressupor uma cadeia de distribuição muito ramificada, por um grande número de agentes, e concentra-se nas mãos de um número muito restrito e, consequentemente, muito próspero de patrões do negócio.

As fortunas acumuladas deste modo têm absoluta necessidade de se infiltrarem nos fluxos financeiros limpos e têm, portanto, que ser sujeitas a lavagens. Os lavadores de dinheiro sujo procuram, naturalmente, os instrumentos legais de processamento de entradas de fluxos financeiros supostamente limpos. É nesta fase de entrada no sistema financeiro regular que o dinheiro sujo proveniente dos negócios do Quadro 1 se encontram com os oriundos dos negócios abrangidos pelo Quadro 2.

E porquê?

Muito simplesmente porque as portas de entrada de parte do dinheiro do Quadro 2 são cegas e não distinguem, ou não querem distinguir, o que está sujo do que é limpo. Situam-se, normalmente, naquilo que passou a designar-se por “paraísos fiscais”. O paraíso fiscal é uma invenção suíça que, ao contrário do relógio de cuco, foi adoptado, e muito adaptado à ocorrência de novas circunstâncias, com grande sucesso em várias partes do mundo.

No rescaldo da Primeira Guerra Mundial, os suíços aperceberam-se que as grandes convulsões sociais espantam tanto as fortunas como os movimentos bruscos a passarada, e concluíram que era negócio dar-lhes abrigo. Zurique tornou-se, então, uma praça financeira capaz de rivalizar com Londres, especializando-se no ramo das contas numeradas, altamente confidenciais, demonstrando que, indiscutivelmente, o segredo é a alma deste negócio. Não tardou que essas contas numeradas fossem utilizadas para acolher dinheiro das mais diversas origens e ilegalidades.

Hoje, os paraísos fiscais, divergindo em muitos aspectos do figurino suíço, são um regalo para quem tem dinheiro e vícios, e os atractivos oferecidos constituem uma panóplia mais diversificada e apetecível que qualquer menu de um restaurante de luxo. Num ponto, contudo, todos coincidem e não abdicam da receita: o segredo bancário, sustentáculo de quaisquer engenharias que a imaginação conceba.

A partir do momento em que o paraíso fiscal existe com o objectivo inegável de permitir a evasão fiscal, se não teria outro nome, abre-se o canal com entrada franca para todas as habilidades sujas: corrupção e roubo de primeira grandeza e suas variantes, que constam do Quadro 2. Com efeito, nunca passaria pela cabeça de um paraíso fiscal indagar se o pretendente a cliente roubou o dinheiro ou só quer minimizar impostos. Mas ainda que fosse tão escrupuloso, há várias maneiras, aliás de construção simples, que permitem dar brancura aparente ao dinheiro sujo. Tão simples que não vale a pena ensinar a missa ao vigário; nunca os grandes ladrões e corruptos deste mundo tiveram dificuldade em por a salvo os encaixes das suas acções criminosas. Muitos destes personagens são conhecidos do grande público, a nível mundial, e os montantes dos valores extorquidos só são conhecidos quando eles caem. Mobutu e Pinochet são apenas dois exemplos de uma longa lista.

E como por onde passam os ladrões passam todos, os crápulas do Quadro 1 não têm que inventar nada para lavarem as fortunas que os negócios espúrios lhes proporcionam.

Claro que a lavagem de dinheiro sujo nem sempre pressupõe a passagem por um paraíso fiscal nem a evasão fiscal tem de passar obrigatoriamente por ali. O sistema financeiro mundial tornou-se, geralmente, suficientemente permissivo para competir com as vantagens oferecidas pelos paraísos fiscais; por outro lado, muitas vezes o próprio sistema financeiro não intervém directa ou indirectamente no branqueamento de capitais, sobretudo quando os montantes em causa, por serem relativamente pequenos, se infiltram no sistema da forma mais óbvia: todos nós já ouvimos falar, por exemplo, de vivendas ou apartamentos de luxo, transaccionados realmente acima de 1 milhão de euros serem pagos na totalidade em notas, e escriturados por muito menos.

O dinheiro sujo sujeito a lavagem assume valores astronómicos e dirige-se, naturalmente, para abrigos seguros, nomeadamente nos Estados Unidos e na Europa. Rondará 3 triliões a montanha de dólares que todos os anos é transferida de países do terceiro mundo para os países desenvolvidos e, sobretudo, os europeus e Estados Unidos da América.

É muito dinheiro e a influência desta transferência colossal nas economias europeias e norte-americana tem sido tão decisiva para o seu crescimento como a sua fuga tem deprimido constantemente os países subdesenvolvidos donde ele provem. É por demais evidente que, para além desta corrente de dinheiro branqueado, afluem às economias ocidentais, à procura de aplicações rentáveis, montantes também elevadíssimos provenientes de transacções inteiramente legais, destacando-se entre eles os provenientes dos países produtores de petróleo e, nos últimos anos, os excedentes de liquidez chineses, mas o saldo líquido das transferências para o ocidente desenvolvido oriundo de operações lícitas ficam flagrantemente aquém dos valores nascidos de operações condenáveis.

São estes fluxos enormes que ajudam a economia americana crescer e criar empregos sem que o duplo déficit (do orçamento e de transacções correntes) restrinja esse crescimento e, o que é ainda mais saliente, sem que o dólar entre em perda descontrolada como muitos auguraram. As operações financeiras, por outro lado, garantem aos seus agentes rendimentos que se situam geralmente bem acima dos proporcionados pelas outras actividades económicas em geral e dão um contributo decisivo para o crescimento económico, pelo menos nos termos em que este é geralmente medido.
Um exemplo muito nítido desta maior apropriação é o da economia luxemburguesa que consegue situar-se no primeiro lugar do ranking da produtividade mundial sem que tenha sido alguma vez notada a etiqueta “made in Luxembourg”. Até os emigrantes portugueses que trabalham naquele simpático membro da União Europeia gozam do prestígio inerente a quem participa na confecção de tão saboroso bolo.
Muito bem se canta na Sé mas é para quem é e para quem lá está ao pé!
Na realidade a produtividade dos luxemburgueses deve tanto ao seu dinamismo e criatividade como o recheio do Museu Britânico à cultura anglo-saxónica.

Estes fluxos financeiros, uns de proveniências lícitas, outros branqueados, com destaque nestes últimos para os provenientes da droga, canalizam-se para o financiamento de actividades especulativas, por serem estas as que acenam com rendimentos mais elevados e de realização mais imediata. De entre essas actividades, uma das mais tentadoras e que confere uma aparência sólida porque assenta em bens reais, é a especulação imobiliária.

Segundo a Bond Market Association, que consultou economistas de 29 empresas suas associadas, a maioria das quais grandes companhias de investimentos, a economia norte-americana deve crescer 3,4% em 2006. No entanto, a possibilidade de uma retracção do mercado imobiliário constitui, este ano, o maior risco para a economia norte-americana, tendo em conta a possibilidade de aumento das taxas de juro e o excesso de oferta
sobre a procura de casas.

Economistas da Wells Fargo & Cº. analisaram o crescimento do emprego nos Estados Unidos desde 2001 e concluíram que metade desse crescimento ficou a dever-se a empregos criados em actividades directamente no sector da construção civil. Se, para além dos empregos directos criados por este sector, forem também considerados os empregos por ele criados indirectamente, a dependência do crescimento norte-americano do sector imobiliário, nestes últimos anos, tem sido muito elevada e a probabilidade de uma recessão, em 2006, causada pela eventualidade de uma contracção da procura imobiliária é cerca de 10%, segundo a Economy.com (Washington Post, January, 1)

Um exercício de transposição para a economia portuguesa das consequências que poderiam decorrer de uma contracção da procura de casas para habitação não parece admitir qualquer paralelismo com aquilo que ficou atrás referido para a economia norte americana. E, talvez, ainda bem que não admite.

As últimas estimativas do Banco de Portugal para o crescimento económico em Portugal para 2006 não vão além de 0,8% com tendência para revisão em baixa se atendermos às estimativas anteriores feitas pelo BP. A economia portuguesa é excessivamente dependente do sector de construção e obras públicas e essa dependência estende-se também ao desporto, a partidos políticos, a câmaras municipais, a autarcas, que convivem, muitas vezes de forma promíscua com construtores civis e companhia.

Por mais que digam o contrário, nem o governo central nem os autarcas prescindem de um bom programa de cimento armado. Podem jurar a pés juntos que doravante vão apostar na formação, na técnica, na ciência, na cultura, etc., mas não tiram o olho do cimento armado. O cimento paga muita coisa e dá direito a destapar tabuleta para a posteridade.

E depois temos o problema da habitação por resolver. Um problema crónico de famílias a viver em condições infra-humanas ao mesmo tempo que temos um stock de casas que dá para albergar mais do dobro da população actual: para cada família portuguesa já temos, em média, 2,3 alojamentos, há centenas de milhar de apartamentos e vivendas para venda e continuamos alegremente a construir!

E Deus nos livre de parar! Se a construção civil parar ou abrandar a sério o carrossel sai das calhas desconjuntado.

De onde vem o dinheiro para financiar todo este stock enorme? Como é que pode uma indústria continuar indefinidamente produzir para stock?

Na Casa Branca, pelos vistos, mora a Dona Branca. E cá, quem mora?

Friday, January 06, 2006

FOR WHOM THE BELL TOLLS

Paul E. Schroeder, na madrugada do dia 3 de Agosto, soube que 14 Marines tinham morrido em Haditha, Iraque. O seu filho Augie encontrava-se naquela região.

Às 10, 45 dessa mesma manhã bateu-lhes à porta um tenente-coronel que, depois de respirar fundo, declarou: “O seu filho é um verdadeiro herói americano”.

Paul, desde então, tem recebido muitas condolências repetindo as mesmas frases: “morreu um herói”, “morreu um patriota”, “morreu pela pátria”. Mas tanta consternação patriótica tornou-se fastidiosa para Paul e para a sua família. Paul pensa que algumas destas pessoas julgam que, dizendo aquilo, a morte de Augie fica justificada, mas a morte na guerra é sempre trágica quaisquer que sejam as razões que a motivam.

“O seu filho é um verdadeiro herói americano”, talvez seja, concede Paul, mas ele não vislumbra na morte do filho nem glória nem honra. Ainda que seja doloroso reconhece-lo, as vidas sacrificadas no Iraque são vidas desperdiçadas porque é um erro completo supor que a democracia pode vivificar pela simples remoção de um ditador.

Não matem mais heróis!, pede Paul E. Schroeder.

Let´s stop this war before more heroes are killed – Washington Post 2005/12/03

O pedido de Paul Schroeder é um grito arrancado pela perda suprema mas o que é saliente nesse grito é a sua convicção de que a vida do filho foi desperdiçada em consequência de um erro de avaliação quase ingénuo: as forças armadas americanas estão no Iraque porque a Administração Bush supõe que pode lá instalar um regime democrático depois de ter aprisionado Sadam Hussein esquecendo que a democracia pressupõe condições vegetativas diferentes.

Paul Schroeder deve saber que, ao contrário da Fé, não há registo histórico que testemunhe a inoculação da Democracia através da ponta das espadas.

O que é estranho é que ele não saiba, ou não desconfie, que George W. Bush e a sua Administração não estejam perfeitamente conscientes desse facto. Mais estranho ainda é que toda a discussão entre o dever estar e o dever sair das tropas americanas do Iraque se esteja a dirimir à volta daquela pretensa ingenuidade. A Bush, por razões politicamente óbvias, depois que se evaporaram os argumentos das armas de destruição maciça, interessa uma razão abnegada por um objectivo heróico, quiçá romântico. Paradoxalmente, uma razão tão desinteressada não é bem aceite pela generalidade da opinião pública mundial, merece grande repúdio na Europa e divide a meio, com tendência para a rejeição, a opinião americana.

Ontem, 5/12, George W. Bush decidiu, num acto quase original e sem precedentes durante os seus mandatos , convocar para uma reunião na Casa Branca treze antigos Secretários de Estado e Secretários da Defesa, um grupo que inclui nomes como Robert McNamara, Frank Carlucci e Madeleine Albright. A reunião terá decorrido de forma civil e aprofundada e o ex-Secretário da Defesa da Administração Carter, Harold Brown, admitiu que a reunião teria como objectivo beneficiar a imagem da actual Administração aos olhos da opinião pública, e, segundo H. Brown teria havido um amplo consenso no sentido de levar as actuais operações de guerra a bom termo.

Com as eleições, a meio do mandato presidencial, para o Congresso e Câmara de Deputados em mira, Bush quer evitar que a guerra no Iraque proporcione vantagens eleitorais aos Democratas e a perda pelos Republicanos da dupla maioria que detêm no Senado e na Câmara dos Representantes. Bush conseguiu esse objectivo na disputa com John Kerry para o mandato em curso e está convencido que os Democratas estão prisioneiros, quanto a este ponto, da inexequibilidade de uma retirada.

É que não estando as tropas americanas a sofrer baixas, quase diárias, no Iraque pela democracia no Médio Oriente, do mesmo modo que não estão, por esse motivo, há largos anos na Arábia Saudita e no Koweit, e onde a preocupação da implantação da democracia alguma vez foi sequer sussurrada, as tropas americanas só podem estar lá por um motivo diferente.

Por não ser politicamente correcto, Bush não dirá nunca que as tropas americanas combatem no Iraque porque aí defendem os interesses vitais dos Estados Unidos, interesses esses que, sobretudo, correspondem à garantia do abastecimento de recursos energéticos indispensáveis. Por tabela, o resto do mundo petróleo-dependente desfruta desta abnegação americana. Hipocritamente, contudo, critica quem abana a árvore e vai enchendo o saco com a fruta que vai caindo ao chão.

Pobre Paul, como é que nunca ninguém te explicou isto?

Wednesday, January 04, 2006

O MUNDO EMBUCHADO

Um dos aspectos mais contrastantes entre Washington DC e a nossa cidade de Lisboa ( todas as nossas cidades, afinal) é, nesta época de Natal e fim-de-ano, a exuberância das iluminações das nossas principais ruas e avenidas e a discreta, quase apagada, iluminação natalícia das cidades americanas e, particularmente, da sua capital. Na principal avenida de Washington DC, a Constitution Av., não foi dependurada uma única gambiarra, a árvore de Natal em frente da Casa Branca é uma parente muito pobre daquela que levou milhares e milhares de admiradores à Baixa de Lisboa. Mesmo Nova Yorque ou San Francisco, tradicionalmente mais garridas que a institucional capital dos EUA, não se comparam, em termos relativos, com a inundação de luz nas nossas cidades. As cidades europeias mais cosmopolitas ficam a anos-luz das nossas luzes de fim de ano.

Talvez tenhamos necessidade de todas estas luzes para nos aquecer o ego tão arrefecido por tantos indicadores deprimentes, talvez os autarcas conservem, deste modo, o caloroso aplauso dos seus eleitores até às próximas eleições, talvez a economia derrapasse ainda mais sem esta baforada quente, talvez se perdessem uns empregos mais, afinal de contas entre armar e desarmar os enfeites gozamos desta atmosfera de festa por uns largos meses.

Quantos portugueses se interrogarão acerca da pertinência de tanta luminosidade? Seguramente, muito poucos. Não me recordo de ter alguma vez lido ou ouvido comentários de espanto mesmo nos media tidos geralmente como mais exigentes ou conservadores.

Alguém pagará a factura, quem vier depois que feche a luz!, é a posição corrente.

E, no entanto, a economia portuguesa vai, previsivelmente, crescer no próximo ano a um ritmo que será o mais baixo de todos os países da OCDE e da EU alargada. A nossa dependência energética é, por outro lado, das mais elevadas das nações que integram aqueles conjuntos, os custos da energia em Portugal são dos mais elevados provocando rombos significativos na competitividade das nossas empresas, a produtividade dos nossos consumos energéticos é baixíssima, os nossos desperdícios energéticos são alarmantes. Mas ninguém se alarma, quantos portugueses saberão isto?

Quantos terão alguma percepção do que é que está em jogo na guerra no Médio Oriente, quantos é que já se interrogaram acerca das consequências de uma retirada americana do Iraque? Para a maior parte os americanos deveriam sair já e a passo acelerado.

E, no entanto, para além de tudo o que se queira acrescentar, há uma realidade que é incontornável e da qual os portugueses, fortemente dependentes da importação de energia e de produtos energéticos deveríamos estar conscientes: cerca dois terços das reservas petrolíferas disponíveis conhecidas em todo o mundo, situam-se naquela parte do globo. Enquanto não forem descobertas fontes alternativas economicamente viáveis, o petróleo é insubstituível e qualquer redução significativa e perdurável dos níveis de abastecimento actuais provocaria uma devastação global dificilmente calculável mas seguramente arrasadora.

Os mais descontraídos deveriam pensar no lago de combustível que abastece as suas viaturas e em quem está a tomar conta dele. O petróleo, enquanto for insubstituível, é tão crítico como o ar e a água nas sociedades altamente complexas em que vivemos. Dispensam-no facilmente as sociedades primitivas ou auto suficientes, não podem viver sem eles os que habitam as cidades dos países desenvolvidos mas, por isso mesmo, petróleo-dependentes. Felizmente para todos, enquanto não o espatifarmos mais, o ar está ainda globalmente disponível e os recursos hídricos, apesar das enormes carências em muitos pontos do planeta, não apresentam a concentração geográfica que caracterizam as reservas de petróleo.

Os EUA não fogem à regra: também eles, apesar dos seus recursos próprios, são inevitavelmente dependentes das reservas petrolíferas do Médio Oriente, os seus poços não lhe garantem já sequer cinquenta por cento das suas necessidades. Há quem pense nos americanos desbaratando energia desalmadamente nas suas banheiras rolantes, mas esse é um filme que foi rodado há muitos anos atrás.

A presença dos americanos no Médio Oriente não foi determinada por George W. Bush, Dick Cheney, Rumsfeld & Cª., por muito antipáticos que estes senhores se apresentam aos olhos do mundo. Pelo menos desde Jimmy Carter, que os EUA definiram as situações de intervenção naquela zona do globo, conhecidas por Doutrina Carter. E não creio que retirem de lá, qualquer que seja a Administração do Executivo, enquanto o petróleo não for substituído.

Se retirassem do Iraque o resto da Região cairia como peças de dominó nas mãos de quem há muito tenta pôr a mão na torneira e, incendiar-se-ia em chamas provavelmente incontroláveis. Ignorar que a Al-Qaeda é, de longe, mais popular entre a população local do que os americanos, é ignorar as linhas por onde se entretecem os interesses vitais das economias mais desenvolvidas.

Que se repudiem muitas atitudes da actual Administração Americana é muito compreensível. Mas se os militares americanos retirarem do Iraque poderemos continuar a iluminar-nos tanto e coalhar de carros a Baixa para ver a tal árvore monumental?