Esta tarde saí de casa cerca das sete para comprar alguns legumes na loja da rua 7. A Margarida está a assar borrego no forno mas esqueceu-se dos legumes, e ela não passa sem os seus legumezinhos a acompanhar o borrego. Moramos agora na rua oito, num pequeno apartamento, num primeiro andar, que adquirimos no centro da cidade, só um quarto, sala-cozinha e a casa-de-banho, perto de tudo. Mesmo por baixo de nós temos a farmácia, na rua 9 o talho e a peixaria ao lado, jornais e tabaco duas portas a seguir à nossa, e, na esquina em frente, um pequeno bar-restaurante, muito conveniente quando a Margarida está com as suas enxaquecas e a mim não me apetece cozinhar. O bairro é sossegado, o apartamento ficou-nos muito em conta, o único senão é a proximidade do Ministério da Instrução Pública, na rua Justiniano Araújo nos dias em que há protestos dos sindicatos. Nesses dias, cada vez mais frequentes, diga-se em abono da verdade ainda que a verdade nos desvalorize o apartamento, é verdadeiramente impossível sair de casa, salvo a ida à farmácia que tem uma porta para a escada do prédio. Pois, como dizia, às sete, sete e pouco da tarde, saí de casa para ir comprar legumes, grelos de couve, ou de nabo, de preferência, se não houver grelos haverá feijão verde, na loja da rua 7 nunca faltaram as verduras. A Margarida não sabe que saí, ela não me deixa sair sozinho, chegou ao ponto de me esconder a chave da porta. Mas quem procura, encontra, e eu não demoro muito, vou à loja num salto.
Hoje é o último dia do ano, a esta hora as ruas já devem estar desertas, quem trabalhou foi para casa mais cedo, ir e vir não demoro mais que meia hora, por volta das sete e meia estou em casa, o borrego não está assado antes das oito, as batatas por volta do mesmo tempo, há tempo suficiente para cozer as verduras e jantar cerca das oito e meia. Às dez, o mais tardar, estaremos a adormecer em frente da televisão e às onze, cama, já lá vai o tempo em que passávamos o ano a saltar até estafar. Agora não, passam os anos e só demos pela sua passagem pelas dores no corpo, sobretudo nesta altura do ano, fria e húmida.
Surpreendentemente, mal saí a porta vejo um ajuntamento a menos de cem metros de casa, na rua 7, no lado oposto onde vou comprar os legumes. Estive vai não vai para dar meia volta e desistir das verduras mas senti-me arrastar pela curiosidade de saber o que se passava lá adiante, em dia impróprio para manifestações sindicais.
Margarida, tu não acreditas mas asseguro-te que estavam lá para cima de mil pessoas. Não as contei, claro que não, mas comparando aquilo com as manifestações dos sindicatos, se não eram mil não andaria longe. O pior é que quando me aproximei maior me pareceu a barreira que teria de atravessar para chegar à loja e comprar os grelos, se houvesse grelos. Tentei furar a barreira, mas qualquê, ninguém cedia. Perguntei a um matulão, que se punha em bicos de pés para espreitar em frente, o que se passava ali, abriu a boca para um sorriso alarve, encolheu os ombros e continuou a fazer-se ainda maior do que era. Dirigi-me então a um fulano, que por via da pouca altura não estava sequer a tentar ver alguma coisa mas estava atento às conversas ao lado, e diz-me ele, há ali um maduro sentado na berma da rua desde o meio dia à espera do ano novo. É chuchadeira ou anedota, não? Deve ser, concordou ele, mas depois que veio aí a televisão o ajuntamento não tem parado de engrossar, o pagode pensa que a televisão volta e toda a malta quer garantir um lugar de onde possa ser visto a acenar. Fiquei furioso com tanta palermice junta e tentei forçar a passagem. Levei um empurrão, por pouco não me desequilibrei e caí. Mal me recompuz, vejo o latagão engalfinhado com o labrego que me empurrara. Em três tempos, Margarida, andava meio mundo ao soco e eu no meio da confusão, safei-me da pancada mas não me safei dos polícias que, à sorte, encheram a carrinha, e lá fui eu também para a esquadra. Quando lá chegámos, eram horas de já termos os grelos ao lume, tentei convencer o comissário que estava ali por engano. Engano de quem?, perguntou ele. Ia dizer que era engano da polícia? Não podia. Comecei a contar-lhe que só ia comprar grelos na loja da rua 7 e que tu, Margarida, devias estar aflitíssima aquelas horas, mas desandou mal eu tinha aberto a boca. Posso telefonar à minha mulher?, perguntei desesperado a um guarda que passou por perto. Pode, se tiver telefone. Tinha deixado o telemóvel em casa.
Que horas são? Já passa da meia noite, pois, é muito tarde, nem vi chegar o ano novo, acreditas que só agora me me libertaram?, e vá lá vá lá, vieram trazer-me a casa. Não acreditas Margarida, eu sei que não acreditas.
Por que é as pessoas deixaram todas de acreditar em mim?