Anteontem, à vista do Capitólio, passámos por um pelúcio embrulhado numas mantas roçadas, deitado num banco, um gorro enfiado numa cabeça roxa de frio, os olhos nem abertos nem fechados, trinta? quarenta anos?, latas vazias de sprite e coca-cola no chão sujo.
Não sei que idade tinha o Pelúcio. Talvez quarenta, quanto muito cinquenta, porque, se a aparência lhe dava muitos mais, um cálculo ajustado teria que levar em conta a desafinação da caixa de velocidades dos sentidos provocada pelo excesso de um gosto, ou de um desgosto?, antigo. Se bebia desalmadamente aguardente, mas aquele andar cambado e olhar turvo, aquela língua enrolada, também pagavam por um desarranjo que nunca levara conserto, não sei. Aparentemente, andava sempre bêbado.
Aparecia na Junta ao lusco-fusco, entrava como se empurrasse com o ombro a porta aberta, dava três passos em frente, e aguardava ordens no meio da sala. Se havia fregueses esperava pela sua vez, que era a última. Era o coveiro e o canteiro, consoante as marcações da ceifeira. Antes de receber instruções para o dia seguinte, recebia a jornada e assinava o recibo com um P desmesurado porque via mal.
- Amanhã, vais para o Casal dos Cágados limpar valetas.
- Han?!
Reagia sempre com um han?! a ganhar tempo para registar as ordens, dava meia volta e saía sem dizer boa noite.
No fim do ano, pelas cinco da tarde, como sempre empurrou a porta aberta e ocupou o centro da sala.
- Que fizeste hoje?
Não respondia. Mas não havia notícia que alguma vez não tivesse cumprido.
Feitas as contas, e rabiscado o P, ficou à espera de instruções.
- Amanhã não trabalhas.
- Porquê? perguntou ao retardador.
Se não trabalhava não ganhava, se o Senhor mandava chuva ou proclamava dia santo ou feriado, fazia cruzes na boca.
- Depois de amanhã vais para Santo Amaro reparar a estrada. Amanhã é feriado, dia de Ano Novo. Bom Ano!
Ouviu, rodou e ia a sair. Subitamente, contorceu-se em jeito de meia volta, e perguntou:
- Para quê?
4 comments:
Soberbo. Apreciei imenso e consegui "ver" o Pelúcio em toda a extensão física e mental. Vale a pena ler e registar, sobretudo nesta época, em que andamos a desejar Bom Ano uns aos outros. Atendendo à situação, quase que me sinto um Pelúcio, "Pará quê?"
Efectivamente, Soberbo.
Quantos de nós, mais ou menos Pelúcios, nos perguntamos, «para quê?», sabendo que a resposta à pergunta, só se encontra, se erguermos os olhos e percebermos o movimento perpétuo dos astros?!
Bom Ano, Caro Rui Fonseca, mesmo sem termos a certeza de nada, tão pouco de existirmos.
Prof. Massano Cardoso,
Agradeço, sensibilizado, e renovo os meus votos de Bom Ano!
Caro Bartolomeu,
Obrigado.
Desejo-lhe um óptimo Ano Novo!
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