Já alguma vez te mostraram o Palácio Sotto Mayor? Pois não. Temos de ir lá vê-lo um dia destes. É uma obra linda, digo-te eu, bem, o Mosteiro da Batalha é outra coisa, não se compara, até na idade. A Batalha tem para aí mais de cinco séculos, o palácio é mais novo que eu, mais novo vinte e tal anos. Trabalhei lá, sabes? Tinha dezasseis anos quando comecei o ofício de canteiro, aos dezanove já era mestre cinzelador. A partir dos desenhos transformava uma pedra bruta numa obra de arte. À entrada do palácio, abaixo do balcão maior, há um friso ornamentado coroado ao centro. É, por assim dizer, o emblema do palácio. Pois fica sabendo que fui eu que o fiz. Passados dois anos, casei e deixei o cinzel, mas é na pedra esculpida que ainda hoje revejo o que fiz na vida com mais paixão. A pedra sobrevive a tudo porque tudo o mais é tão passageiro... Chegava sempre cedo, depois de mais de hora e meio de caminho a pé, precisava de algum tempo para me descontrair e concentrar. Ah! Tu ainda és novo demais para perceber esta conversa. Vamos falar doutras coisas, vamos?
O avô ficou viúvo, tinha eu oito anos, e, por ser o neto que vivia mais próximo, fui destacado para lhe fazer companhia à noite. No Inverno, quando lhe batia à porta, já ia a noite adiantada, estava a lareira a arder em labaredas fascinantes, o avô encostava-se à parede que ficava à esquerda, eu sentava-me num banquito junto do perro, e jogávamos o burro ao mesmo tempo que ele desbobinava a vida: Conheci muita gente, sabes, mas nunca conheci ninguém que fosse mais esperto que o Anacleto. Esperto, esperto, não sei, não sei bem se ele era esperto, o que ele era, era de outro mundo. Trabalhou no palácio como apontador. Um apontador é um tipo que nas obras é encarregado de tomar conta da ferramenta, dos dias de trabalho de cada um, dos materiais, das peças concluídas ou em vias disso. O curioso é que o Anacleto era analfabeto e não sabia contar. Incrível, não é?
Anacleto, quntos homens faltaram hoje? Faltou o Ruben e o Eugénio só veio da parte da tarde. Anacleto, quantos cinzeis?, quantos ponteiros?, quantas macetas?, quantos escopros?, quantas bujardas? Temos um cinzel, outro cinzel, outro cinzel, outro cinzel, outro cinzel, .... mais um ponteiro, outro ponteiro, outro ponteiro, outro ponteiro, outro ponteiro ... mais uma maceta, outra maceta, outra maceta, outra maceta, outra maceta, ... mais um escopro, mais um escopro, mais um escopro, mais um escopro, mais um escopro, ... mais uma bujarda, outra bujarda, outra bujarda, outra bujarda, outra bujarda .... O Anacleto dava conta de tudo o que havia como se estivesse a olhar para o que relatava. Aliás, o encarregado só de quando em vez testava a fiabilidade da capacidade de memorização do Anacleto. Geralmente ficava-se pela pergunta: Tudo em ordem? Qualquer que fosse o grupo que tinha debaixo de olho, pessoas, ferramentas ou materiais, bastava-lhe olhar por um par de minutos para reter na cachimónia a imagem do conjunto como se tirasse uma fotografia.
Outra faceta do Anacleto era uma surdez completa, mas ouvia como ninguém. Antes de ser colocado na obra como apontador, o Anacleto trabalhava nas pedreiras, onde já dava nas vistas os seus dotes de fotografar sem máquina. Um dia, atraiçoado pela aselhice do tipo que colocara a carga para rebentar um bloco, foi apanhado por uma explosão antes de tempo que liquidou três companheiros e pôs o Anacleto entre cá e lá. Safou-se, mas ficou surdo como uma pedra. Mas em pouco tempo aprendeu a perceber pelo movimento dos lábios, ouvindo a distâncias que ninguém conseguia ouvir.
Um dia, era domingo de manhã, cruzou-se o Anacleto com o padre ali no largo da Igreja, meteu-se com ele o prior: Oh Anacleto, consta-me que tens uma memória infinita. Sabes quantas estrelas há no céu, Anacleto?
Depende, senhor prior, ontem à noite não se via nenhuma porque estava o céu todo nublado. Esta noite, posso contá-las se estiver descoberto. Pois conta-as e vem-me dizer. Foi o prior dar a missa e o Anacleto atrás dele.
No domingo seguinte, volta o Anacleto a encontrar o padre a caminho da missa: Então Anacleto, quantas estrelas temos? O Anacleto fechou os olhos, trabalhava em câmara escura, está visto, e começou a lenga lenga: Uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela ... Está a contar senhor prior? Riu-se o padre, ou porque já tinha perdido a conta ou porque não estava a contar, e perguntou-lhe? E que mais viste no cèu, Anacleto?
A lua, senhor prior, estava lua cheia, é uma pena que o tipo que mora lá mexa a boca.
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Anteontem assistimos a uma comunhão de coros de Natal na Catedral de Washington. O templo foi vítima do tremor de terra que abalou a área em Agosto deste ano e espera pelo restauro. No espaço fronteiro colocaram dois pináculos derrubados para motivação de doações para as obras.
À espera dos canteiros e dos mestres cinzeladores.
Anacleto, quntos homens faltaram hoje? Faltou o Ruben e o Eugénio só veio da parte da tarde. Anacleto, quantos cinzeis?, quantos ponteiros?, quantas macetas?, quantos escopros?, quantas bujardas? Temos um cinzel, outro cinzel, outro cinzel, outro cinzel, outro cinzel, .... mais um ponteiro, outro ponteiro, outro ponteiro, outro ponteiro, outro ponteiro ... mais uma maceta, outra maceta, outra maceta, outra maceta, outra maceta, ... mais um escopro, mais um escopro, mais um escopro, mais um escopro, mais um escopro, ... mais uma bujarda, outra bujarda, outra bujarda, outra bujarda, outra bujarda .... O Anacleto dava conta de tudo o que havia como se estivesse a olhar para o que relatava. Aliás, o encarregado só de quando em vez testava a fiabilidade da capacidade de memorização do Anacleto. Geralmente ficava-se pela pergunta: Tudo em ordem? Qualquer que fosse o grupo que tinha debaixo de olho, pessoas, ferramentas ou materiais, bastava-lhe olhar por um par de minutos para reter na cachimónia a imagem do conjunto como se tirasse uma fotografia.
Outra faceta do Anacleto era uma surdez completa, mas ouvia como ninguém. Antes de ser colocado na obra como apontador, o Anacleto trabalhava nas pedreiras, onde já dava nas vistas os seus dotes de fotografar sem máquina. Um dia, atraiçoado pela aselhice do tipo que colocara a carga para rebentar um bloco, foi apanhado por uma explosão antes de tempo que liquidou três companheiros e pôs o Anacleto entre cá e lá. Safou-se, mas ficou surdo como uma pedra. Mas em pouco tempo aprendeu a perceber pelo movimento dos lábios, ouvindo a distâncias que ninguém conseguia ouvir.
Um dia, era domingo de manhã, cruzou-se o Anacleto com o padre ali no largo da Igreja, meteu-se com ele o prior: Oh Anacleto, consta-me que tens uma memória infinita. Sabes quantas estrelas há no céu, Anacleto?
Depende, senhor prior, ontem à noite não se via nenhuma porque estava o céu todo nublado. Esta noite, posso contá-las se estiver descoberto. Pois conta-as e vem-me dizer. Foi o prior dar a missa e o Anacleto atrás dele.
No domingo seguinte, volta o Anacleto a encontrar o padre a caminho da missa: Então Anacleto, quantas estrelas temos? O Anacleto fechou os olhos, trabalhava em câmara escura, está visto, e começou a lenga lenga: Uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela, mais uma estrela ... Está a contar senhor prior? Riu-se o padre, ou porque já tinha perdido a conta ou porque não estava a contar, e perguntou-lhe? E que mais viste no cèu, Anacleto?
A lua, senhor prior, estava lua cheia, é uma pena que o tipo que mora lá mexa a boca.
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Anteontem assistimos a uma comunhão de coros de Natal na Catedral de Washington. O templo foi vítima do tremor de terra que abalou a área em Agosto deste ano e espera pelo restauro. No espaço fronteiro colocaram dois pináculos derrubados para motivação de doações para as obras.
À espera dos canteiros e dos mestres cinzeladores.
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