Saturday, December 24, 2011

MENINO JESUS

Naquele tempo, São Nicolau, o Pai Natal, ainda não tinha chegado nem era conhecido nas redondezas, quem descia pela cheminé era o Menino Jesus, as árvores mais airosas do pinhal, a meio crescimento, continuavam a crescer sem receio de corte prematuro, cumprido o trabalho nocturno, antes de nascer o Sol, o Menino Jesus voltava ao presépio, no dia de Natal nasciam as Natálias, nunca nasciam Natálios. 

Um dia, ia Janeiro adiantado, entraram no posto local do Registo Civil, já era noite, estava a porta a fechar, um homem e uma mulher, com um recém nascido a berrar-lhe ao colo, para registarem a criança. Como era o último dia permitido para o registo sem multa, resignou-se o funcionário a cumprir a tarefa fora de horas.

- São precisas duas testemunhas.
Ele olhou para ela, estava ela em passo à frente passo atrás, gingando as passadas, a tentar calar o filho.
- Duas testemunhas?
- Sim senhor, duas testemunhas. Os registos de nascimento exigem a presença de duas testemunhas. 
O homem coçou a cabeça, e ficou espantado a olhar o funcionário.
- Então? Há testemunhas ou não? Sem testemunhas não posso fazer o registo. É o que manda a lei. 
O homem voltou a coçar a cabeça e esboçou um sorriso, talvez ingénuo, para soltar uma pergunta insólita:
Testemunhas, de quê?
Não era a primeira vez que os declarantes se apresentavam sem testemunhas. Os mais esclarecidos ou já iniciados no assunto, traziam testemunhas, chamavam-lhes os  padrinhos. Daqueles a quem acontecia apresentarem-se para cumprir o dever de registo de um filho pela primeira vez, muitos recorriam, por sugestão do funcionário, à dona da loja do lado e do marido, para satisfação das exigências da lei.
Sempre disponível para suprir o embaraço da inesperada exigência de testemunhas, o casal do lado testemunhava frequentemente inconscientemente em falso por inteiro desconhecimento dos declarantes. 

Não respondeu o funcionário à dúvida do homem, mas daí a um par de minutos entrava a dona da loja e o parceiro atrás, duas testemunhas sem cuidarem de quê.  

Aos (em que dia foi o nascimento?) vinte e cinco dias do mês de Dezembro de mil novecentos e cinquenta e sete, nasceu (onde é que nasceu?) no lugar..., freguesia ..., concelho ..., um indivíduo do sexo (masculino ou feminino?, menino ou menina?) masculino, filho (os pais são casados?, não senhor) ilegítimo de (nome do pai?) José Maria de Jesus e de (nome da mãe?) Maria do Rosário (só Maria do Rosário? Só Maria do Rosário) a quem é dado o nome (que nome dão à criança?, Menino de Jesus) ...

- Menino, a lei não permite. 
Olhou o homem para a mulher, que continuava passo atrás passo à frente, ausente, a embalar o filho  adormecido, e, sem reacção da companheira, voltou a coçar a cabeça, e a olhar o funcionário sem resposta.
- Há uma lista de nomes aprovada por lei, e só esses nomes podem ser registados, explicou o funcionário, mas a indecisão ou incompreensão do homem não parecia ceder perante as restrições legais  - Tem de escolher outro nome.
- Não sei de outro nome, respondeu, por fim, o homem, continuando a coçar a cabeça. Pensámos neste, não pensámos noutro.
- Percebo. Mas este, tenho muita pena, mas não posso aceitar.  Terão de escolher outro.
Voltou o homem a coçar a cabeça, a olhar a mulher que continuava a andar sem passar do sítio.
- Nicolau, decidiu-se o homem, subitamente inspirado, sem olhar a mulher que, desta vez o olhou, espantada. Nicolau?..., Zé Maria?

Ficou Nicolau.
Ainda hoje se está sem saber porquê: Nicolau Rosário de Jesus, filho ilegítimo de José Maria de Jesus e de Maria do Rosário.
Pelo Natal, veste-se de vermelho e branco e barrete a condizer, disfarça-se com longas barbas brancas e anda por aí incumbido da tarefa do menino Jesus da minha infância.    

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