Sunday, August 05, 2007

OS DONOS DA BOLA

1951, Setembro


Toda a gente passa na vida por encruzilhadas complicadas, daquelas que ninguém sabe se deve ir por aqui ou por acolá, ou, quando não há outro caminho, aguentar a ver o que dá, e logo se verá. Mas quando quem está na encruzilhada é um puto, e não há por perto quem dê um palpite, o mais certo é começar a dar-lhe volta a barriga.

Foi o que me aconteceu, tinha nove anos, e o António desapareceu por cima de um telhado a buscar uma bola, passou uma eternidade e eu sem saber que volta dar à vida. Para subir ao telhado faltava-me comprimento ou uma ajuda, voltar para casa sozinho nem pensar, que diria eu, que tinha saído de casa com ele, de modo que fiquei ali especado atrás do poste de iluminação pública, não era o melhor sítio porque me tirava visibilidade, mas escondia-me do dono do telhado de onde o António não aparecia, sem eu saber por quê.

Era Setembro, tínhamos estado a jogar a bola no largo da loja, em frente ficava uma casa térrea com uma platibanda a encobrir o telhado, uma daquelas coisas que nunca deveriam ter sido inventadas porque bola que fosse lá para cima ou caía para o quintal das traseiras ou ficava presa na aberração. Os telhados com beirais são muito mais amáveis, se lhes mandamos com uma bola eles depressa a devolvem.

Eu e o António tínhamos coleccionado as estampas que saíam enroladas em rebuçados, os capitais eram reduzidos, a sociedade surgira naturalmente como forma de menos dificilmente financiarmos o investimento, uma bola a valer.

A estampa numerada era a bandeira do Brasil; do escudo de Portugal, viemos a saber mais tarde, havia só cinco estampas, as outras eram mais ou menos difíceis mas havia várias. Quando a lata foi aberta, houve quem tivesse feito correr o boato que a bandeira do México era das mais difíceis, mas depressa se percebeu que não era: ao Barrigana, por dois tostões, saíram três bandeiras mexicanas de uma assentada, que não lhe serviram de muito porque ninguém as quis por troca. Mas, antes disso acontecer, tinham chegado a estar no mercado das trocas, cada uma por dez das outras.

O Barrigana depressa percebeu o funcionamento do mercado e, por uns dias, desandou para outra freguesia a tentar trocar as sobras. Quando voltou, tinha a colecção completa, só lhe faltava a bandeira do Brasil. A ele, a nós, e a mais dois ou três.

Era a primeira vez que aparecia pelas nossas bandas uma promoção de rebuçados com estampas, mas quase sempre os rebuçados iam fora e a colecção só servia ao sortudo a quem saísse a senha numerada, uma por lata, porque era ele levava a bola. Só depois dessa colecção das bandeiras e escudos apareceram as dos jogadores de futebol.

Eu partilhava a colecção com o meu primo António, e ele, mais abonado, conseguira que a sorte e mais tostões lhe tivessem dado dois escudos de Portugal. Trocámos o excedente por quase um terço da colecção com o Serôdio, que comprava noutra loja, e onde o escudo nacional estava chato de sair. Quando o Serôdio veio a saber que, afinal, o escudo de Portugal era, na lata de onde ele gastava, a estampa numerada, quis desfazer o negócio, e a divergência só não deu pancada porque o António concedeu entregar-lhe mais algumas estampas que tínhamos várias vezes repetidas.

Por essa altura, já havia, conhecidas, quatro colecções à espera da senha numerada, ninguém dispunha, contudo, de capital suficiente para arrematar o que sobrava ainda na lata.

Entretanto, a bola de cautchoug "cosida à mão e câmara-de-ar ultra resistente" continuava lá em cima, inacessível e insinuante, à espera que a lata se esvaziasse, porque era certo e sabido que o dono da loja metia sempre a senha numerada no fundo, de outro modo não venderia os rebuçados que não interessavam a ninguém.

Enquanto a lata não esgotava e não saia a redondinha, jogava-se a bola de trapos enfiados numa meia, surripiada muito antes de ter sido considerada inválida por falta de resistência a mais remendos. Encarregava-se de arranjar uma meia o Constantino, porque a mãe dele tinha as pernas grossas, e a bola de trapos enfiados numa meia das dela, depois de cheia, comportava-se bem ainda que não pudesse comparar-se com uma de cautchoug.

Sempre que algum dos coleccionadores inventava maneira de descobrir uns trocos esquecidos e os trocava por meia dúzia de rebuçados da bola, parava o jogo e a trupe toda ia ver o nível da lata e assistir ao desembrulhar das estampas. Para bem assegurar este controlo permanente, transferiu-se o campo de jogos do adro da igreja para o largo da loja, em frente do fornecedor.
.
Quando cinco colecções já estavam quase completas, faltava-nos apenas a senha numerada, a bandeira do Brasil, começaram a rarear as compras: ninguém, a menos que estivesse distraído ou não soubesse fazer contas, queria facilitar o acesso à senha da bola, baixando desinteressadamente o nível do stock e facilitando a compra do resto. Para a compra por atacado do que sobrava não havia capital disponível. Ainda me ocorreu alargarmos a sociedade e juntar os meios dispersos mas o António opôs-se e os outros também não acharam conveniente a proposta.

Até que, uma tarde, já quase ao lusco-fusco, estava a loja quase a fechar e o jogo a terminar, o António, surpreendendo todos, e também a mim que era seu sócio, sacou dos bolsos duas moedas de vinte e cinco tostões com a convicção de um jogador sabido, entrou na loja e esvaziou a lata arrematando os quase cem rebuçados que restavam, e ainda sobrou dinheiro. Acercou-se a malta, mais curiosa e ansiosa que nunca: chegara a hora dos chutos numa bola a sério, aos gomos, com câmara-de-ar e tudo.

A ninguém passava pela cabeça que, saída a bola, os donos fossem brincar sozinhos com ela para um canto. A vantagem de ser o dono da bola não passava, portanto, de um ilusório sentido de posse.

Caprichou a sorte em manter o suspense até quase ao fim, faltava já pouco para desembrulhar quando o António, que metera prudentemente a tonelagem comprada nos bolsos e tirava de lá um exemplar de cada vez, exibiu orgulhoso a estampa da bandeira do Brasil, numerada no verso, que valia a bola.

Demos um salto a casa, que ainda era longe dali, a buscar a colecção e ainda chegámos a tempo de levantar a bola naquele dia. Foi o Tubarão, o mais velho e espigado, quem procedeu ao controlo de qualidade, sacando, de repente, a bola das mãos do António para a apertar entra as mãos até ela chiar; repetiu o gesto duas ou três vezes e sentenciou que era boa mas podia ser melhor. Se fosse dele, foi o que toda a gente pensou, mas ninguém abriu a boca.
.
De boca aberta ficou a malta toda quando o Tubarão, feita a inspecção afinfou na bola um chuto com tanta gana que ela voou como um foguete, fez pááá!!!, e foi aterrar no telhado da casa mesmo em frente, a tal que tinha a platibanda.

Ao António vieram-lhe as lágrimas aos olhos, mas só eu é que reparei, se a fraqueza dele desse nas vistas dos outros era uma vergonha, e o António percebendo isso a tempo, foi o primeiro a escalar o muro que cercava a propriedade, para, a partir dele, subir ao telhado onde parava a bola, empoleirado nos ombros no Tubarão, o autor do desastre.

Na ânsia de chegar à bola antes que fosse tarde, o António descurou as telhas onde punha as botas e deve ter rachado algumas porque o dono da casa abriu a porta e saiu para a rua intrigado sem saber porque lhe estava o telhado a ruir. Mal a porta deu sinal que ia abrir-se, levantou a pardalada, cada um para seu canto, a caminho de casa, e a jornada daquele dia acabou ali. O António, ainda em cima do telhado, agachou-se o mais que pôde para não ser visto, e com a ajuda da chegada da noite, que não era de lua, aguentou até que o homem desconfiado voltou para dentro.

Tínhamos concordado, eu e o António, que na primeira semana a bola seria dele, que morava mais longe e tinha outro grupo, na semana seguinte ficaria à minha guarda. E assim por diante, enquanto houvesse bola. Fiquei ali, portanto, por solidariedade com o sócio e pelo direito de propriedade conjunta.

Passado um tempo sem fim, o António não dava sinais de vida, e a mim começou-me a barriga às voltas, com intensidade imparável. O que é que se faz numa ocasião destas? Foi o que eu fiz, e melhorou mas não passou. Depois assobiei, primeiro baixinho, depois mais forte. Continuei sem saber do António, e o Serafim, era assim que se chamava o dono da casa, talvez alertado pelo assobio, veio outra vez cá fora, de radar às voltas. Esteve ali, descansadamente, de vez em quando parecia que ia regressar para dentro, era o voltavas, a certa altura encostou-se à ombreira da porta, a palitar os dentes e a contar as estrelas. Voltou-me o aperto de barriga sem que eu pudesse descolar-me do poste que me escondia.

Só quando a mulher, de dentro de casa, o chamou por uma razão qualquer que não percebi, é que o Serafim desamparou a loja. O Serafim a fechar a porta e o Tubarão, de mãos nos bolsos, a voltar ao local do crime. Assobiei-lhe e contei-lhe o que se passava.

Combinámos então que, sendo eu mais leve e ele mais alto, repetiríamos manobra que tinha colocado o António no telhado. Uma vez lá em cima, puxei-me até à altura da base da platibanda, mas não vi o António. Fiquei desesperado. O Tubarão deve ter ficado assustado porque sugeriu que invertêssemos as posições, ele subiria para os meus ombros e tentaria alcançar o telhado para um reconhecimento total. Por pouco não caímos os dois do muro para o chão, mas depressa o Tubarão parecia um gato a subir pelo cunhal da casa. Eu voltei ao poste, ansioso de notícias.

Nada. O António tinha-se sumido.

Sem mais opções, o Tubarão encolheu os ombros e pôs-se a andar. A esta hora, está em casa, rematou quando já ia longe.

Ia eu a caminho de casa, de vagar porque quanto mais depressa fosse mais depressa aumentariam os sarilhos, quando vejo à minha frente, a coxear, o vulto do António. Tinha-se esgueirado pelo lado oposto quando viu o Serafim na rua e ninguém no largo. Ao saltar do muro torcera um pé. Mas não era por isso que lhe corriam as lágrimas em bica: a bola, a nossa ambicionada bola, tinha-se rompido com o bruto chuto do Tubarão.

Ainda por cima, o António tinha de mentir à mãe que perdera as duas moedas que ela lhe dera para comprar um quilo de bacalhau na loja.

No comments: