Tuesday, November 01, 2016

HISTÓRIAS PARALELAS - DOUTORA CARICA


Recebi a notícia, sem outro aviso prévio, logo de manhã, pelo telefone: 

- ...  ... Já agora aproveito para lhe dizer que vai apresentar-se aí hoje uma tal Manuela, Manuela C... da Silva, para trabalhar na sua Direcção... 
- Muito bem. E para fazer o quê?
- Qualquer coisa, invente qualquer coisa. Ela tem habilitações, é doutora ... É pessoa de confiança...

O grupo de empresas tinha sido nacionalizado na ressaca do delírio revolucionário pós-25 de Abril, mas a interferência política no recrutamento ou promoção dos quadros da empresa nunca tinha atingido notoriamente os níveis abaixo da administração. Os administradores, sim, esses eram de nomeação governamental, e rodopiavam nos cargos consoante o sentido dos vendavais políticos. Entrou gente muito competente, gente assim-assim, e gente claramente incompetente, a roçar os mais elevados níveis de incompetência previstos no Princípio de Peter, para a administração. Mas a empresa resistiu bem na prova de competitividade a que estava sujeita pela concorrência a nível mundial, cresceu e diversificou, porque a sua estrutura orgânica dorsal tinha experiência e conhecimentos que ombreavam com os melhores do sector, e não foi alterada por influências políticas. O caso da Manuela C ... da Silva seria, naquela altura, a excepção que faltava à regra.

Poucos minutos depois do telefonema que me incumbia de dar trabalho "à doutora", entrou-me no gabinete o Salgueiro carregado de notícias. Eu, que sempre fui alérgico ao diz-se, diz-se, dos corredores, na ausência de quaisquer informações sobre a senhora que iria trabalhar comigo por decisão unilateral do presidente, ouvi atentamente o Salgueiro, que teve o estranho cuidado de se certificar que as portas estavam fechadas, e falou baixinho, começando por avisar-me: Tenha cuidado com a tipa que vem trabalhar consigo! Ela é sobrinha de ... não sei o nome do tio, mas sei que foi Secretário de Estado num governo do Soares. Ora você não espera que a sobrinha de um Secretário de Estado vá trabalhar durante muito tempo sob as suas ordens, pois não? 
Olhe, meu caro Salgueiro, obrigado pelas informações que me traz mas não fico minimamente preocupado de quem a senhora é sobrinha. Se ela é, como diz, sobrinha de quem é, um dia destes talvez venha a ser administradora, tão transitoriamente como todos os outros que têm passado pelo sétimo. Quanto à hipótese que põe de ela, um dia destes, me substituir no cargo que ocupo, fique tão descansado quanto eu, isto é, totalmente. 

Quando, a seguir à hora de almoço, a  Manuela C ... da Silva entrou no meu gabinete, pensei, conheço esta cara de algum lado, era dos corredores da Universidade que ambos tínhamos frequentado. Pouco mais nova que eu, disse-lhe que me recordava vagamente dela, ela disse que não se recordava de mim. Depois deste meio empate, em pouco mais de meia hora de conversa combinámos um conjunto de tarefas que ela poderia desempenhar até que se pudesse redesenhar a estrutura orgânica da direcção de modo a integrá-la consistentemente no conjunto. E disse-lhe que deveria ir à Direcção de Pessoal preencher os requisitos de admissão estabelecidos na norma da empresa. Foi.

Passaram-se muitos meses, a Manuela C ... da Silva desempenhou sem reparos as funções que lhe atribuí, até ao dia em que fui sobressaltado por um indício de fuga de informações para a concorrência. 
Uma das suas funções era a compilação e análise de informações sobre os mercados e, durante uma reunião com um dos nossos principais concorrentes, percebi que ele sabia sobre nós mais do que devia e que, ou era bruxo, ou a Manuela andava a traficar informações reservadas. Registei e activei o meu sistema de alerta. Falei com ela, disse-lhe o que se tinha passado na reunião com o concorrente, e ela, sem deixar transparecer surpresa, respondeu-me que não fazia ideia nenhuma como é que uma informação que só era do conhecimento dela e meu tinha chegado ao conhecimento do concorrente. Será bruxo? Sei lá, respondeu ela, "yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay" . E ficámos por ali.

Ela a sair, e o Carvalhão a entrar.
O Carvalhão, um engenheiro silvicultor, cultivava a intriga mais que os pinheiros e os eucaliptos. 
A meio da tarde, saía do gabinete, e deambulava ao sabor das portas abertas. Como a minha estava quase sempre aberta, o Carvalhão não desistia de tentar contrariar a minha falta de apetite pelas últimas novidades da casa. E, como a Manuela ia a sair, ele entrou para perguntar se eu tinha cinco minutinhos, só cinco, para uma conversa do meu interesse.
Homem, desembrulhe! Quer a porta aberta ou a porta fechada? Geralmente, o Carvalhão fechava a porta, o rosário dele o mais que continha eram contas contra os adversários políticos, que, por coincidência eram os mesmos que os da Manuela e do tio da Manuela. 
O Carvalhão, não sei porque razão, não acreditava que eu fosse politicamente independente, ainda que não neutro, e não desistia de me catequizar com as virtudes do seu lado político já que, em matéria de futebol, outro dos seus assuntos preferidos de conversa, era notório que eu não dava uma para a caixa. Esperava, portanto, que ele voltasse a mais uma sessão de proselitismo. Mas não.

- Meu caro, disse-me ele quase ao ouvido, tenha cuidado com esta que acabou de sair.
- Hum! E posso saber porquê, Carvalhão?
- Cá por uma conversa que um dia haveremos de ter, mas vai ser demorada. Por agora fique sabendo que ela,  ao contrário do que se pensa, não é licenciada.
- Não é? 
- Não, não é. Mande vir o processo dela da Direcção de Pessoal.

Chegou o processo, estavam cumpridos todos os requisitos estabelecidos nas normas. Carvalhão, como pode ver, está tudo nos conformes. Não está, não. Veja a certidão da carta de curso.
Está aqui, assinada, selo branco, e tudo. Como somos mais ou menos da mesma altura, eu mesmo consigo reconhecer a assinatura. Veja melhor, insistia o Carvalhão. Mirei, remirei o documento, não vi nada que me suscitasse dúvidas. A assinatura, aliás muito simples, estava lá e o selo branco por cima. A irreprimível tendência do Carvalhão para a intriga tinha-se claramente excedido.
Bom, acrescentou ele perante a minha incapacidade de ver o que ele via, vou dar-lhe uma ajuda. Fixe-se no selo branco, o que vê? E só, então, eu descobri onde ele queria chegar. 

O selo branco era o resultado da pressão de uma tampa de uma garrafa de cerveja, ou de qualquer outra gasosa, vulgo carica, num formulário subtraído na secretaria da Universidade, sobre uma assinatura falsificada. Logo que o Carvalhão saiu, mandei chamar a Manuela.

- Manuela, este documento foi entregue por si na Direcção de Pessoal?
Ela olhou, frente e verso, e, displicentemente, devolveu-me o documento.
- Foi.
- Tem a certeza?
- Tenho.
- Não quer verificar antes de confirmar que o documento é mesmo seu, aquele que você mesmo entregou na Direcção de Pessoal?
- Não. Porquê?
- Porque este documento é falso, e se você não me entregar até amanhã, em mão, um documento que prove as suas reais habilitações literárias sou obrigado a abrir um processo disciplinar por declarações falsas graves. 

Ficou a olhar uns largos minutos para o chão, numa atitude completamente oposta da frontalidade com que dialogava com todos, e depois disse: Faça como entender. Não posso obter nenhum documento que possa validamente substituir esse. Amanhã já não volto cá.

Cumprimentei-a, desejei-lhe, francamente, sucessos no futuro, até porque, segundo me contara em tempos o Carvalhão, ela tinha cinco ou seis filhos. 
Não houve processo disciplinar, mas rescisão por mútuo acordo, com uma indemnização correspondente ao período em que trabalhara na empresa.
Nunca mais tive qualquer conversa sobre o assunto com o Carvalhão.



---
Obs. - A história é verídica, os verdadeiros nomes dos intervenientes citados são outros. 

No comments: