Saturday, November 19, 2016

HISTÓRIAS PARALELAS - LUCINDA

A Lucinda telefonou há dias, meio satisfeita meio acabrunhada. Tinha, finalmente, metido os papeis para a reforma. Quando informou o chefe, o bruto desejou-lhe uma longa e feliz vida na reforma. Não teve uma palavra, uma palavrinha sequer, a incentivá-la a continuar. O mais certo é já terem outra, ou outro, a caminho para o lugar, mas não lhe disseram que sim nem que não quando ela perguntou se iriam preencher a vaga ou redistribuir serviço pelos outros que ficam. Eu nem quero imaginar, dizia ela, como é que eles podem pensar em redistribuir trabalho que a mim me ocupava o dia inteiro sem ter tempo  para me coçar. O problema é deles, talvez, então, enfim percebam a falta que lhes faço. 
Custou-lhe decidir-se, mas, desta vez, atirou-se para a reforma. Vocês, compreendam: foram muitos anos dentro de um mundo que, de repente, se deixa para trás. São os colegas, os amigos, os tipos do bar onde se toma a bica, o dos jornais onde passamos o olhar pelos títulos expostos no quiosque, os do restaurante onde se almoça, as ruas que se atravessam, as montras que nos piscam o olho, enfim, é como sair deste planeta. A esmagadora maioria daquela gente, com quem convivemos durante quase toda a vida, fica-nos lá para trás, noutro cosmos, para sempre, não é? Não, necessariamente, não se percam os amigos e não se perdem as ocasiões. Há quem continue a encontrar-se em almoços, semanais, mensais, o que entenderem, quanto mais não seja para continuar a dizer mal de quem sempre se disse. Pois é, pois é, ainda há dias encontrei o Vítor, ele já tem agora uns setenta e tais, não menos, está velho, eu não lhe disse isso, mas não o reconheci à primeira vista, olhei, ele olhou, de onde é que eu conheço esta cara, era ele mesmo. Depois de se ter reformado, ele já deve estar na reforma há mais de dez anos, acho eu, só lhe aconteceram desgraças, tantas que nem vou contar-te porque, de cada vez que me recordo do que ele me disse, dá-me vontade de ir à Caixa e pedir que me devolvam os papeis. E disse-lhe, para o animar: temos de ir almoçar com o resto da malta do nosso tempo. Concordou, e, como não tem mais que fazer, fiquei de lhe dar a lista dos contactos, ele perdeu a dele, e é ele que vai organizar um almoço. Um dia destes, vai telefonar-te. Prometeu-me que vai telefonar a toda a gente, sem falta, contamos aí com umas vinte presenças. Vai ser uma animação.
Depois, o que me mais me preocupa não é a mudança de planeta, são as condições de existência noutro planeta, que já habitava, mas a tempo parcial. Em casa, o que é que eu tenho à espera? O meu marido e os gatos, tenho dois. Ele está cada vez mais chato de aturar. Não faz nada, nadinha mesmo, não sabe sequer estrelar um ovo, senta-se à mesa à espera que eu o sirva, eu que nunca gostei, nem sei cozinhar, mas agora tenho de arranjar qualquer coisa, senta-se a ler o jornal e a ver televisão ao mesmo tempo, adormece, acorda, levanta-se, anda a pensar comprar um cão para levar a passear. Só me faltava mais esta: onde é que vamos por o cão? Na varanda. Na varanda, imagina! Se o cão ladra levo com toda a malta do prédio em cima. E com razão! Quem não tem quintal não compra um cão! Gatos, acomodam-se, mesmo assim, são os gatos que me dão menos preocupações. E tenho os netos. Quatro. As minhas filhas, logo que me viram começar a trazer caixotes de papeis para casa, mobilizaram-me para levar e trazer os miúdos da escola. Ah, sim, estou a trazer papéis para casa, claro, se os deixo lá no dia seguinte estão nos reciclados. Aquela gente não faz a mínima ideia da importância que pode ter a papelada antiga. Não lhes diz nada, a mim dizem-me tudo o que fiz na vida naquela casa. São meus, muito meus. Só não vou trazer a secretária porque me disseram que ainda não está totalmente amortizada, mas prometeram-me que, no dia em houver mudança de mobiliário, me telefonam para me entregar a secretária que foi minha toda a vida. Tu sabes bem que que me dediquei inteiramente ao trabalho. Queres crer que nunca saí daqui? Fomos um dia a Madrid e outro a Sevilha. Ah! E fui uma vez a Estrasburgo, havia lá uma conferência, deram-me essa oportunidade dessa vez. Bem, tive outras oportunidades, diga-se em abono da verdade, não muitas, mas tive algumas, mas tinha tanto trabalho às costas que acabei por agradecer mas não aceitar. Ao cinema? Ao teatro? Há anos que não entro numa sala de cinema, de teatro só no tempo da Amélia Rey Colaço, no Dona Maria, já não me recordo o que vi, depois o teatro ardeu, e nunca mais voltei lá. Ah, sim, já lá vão mais de cinquenta anos, eu ainda andava no liceu, devia ter uns catorze anos. Pois é isso, cinquenta mais catorze, mais ano menos ano, é isso mesmo. Já lhe tenho dito, devíamos ir aqui, devíamos ir ali, aos fins-de-semana, porque durante a semana temos os netos, não quer. Arranja sempre desculpa para não sair da toca. Agora queixa-se do reumatismo. É da humidade, claro que é da humidade, precisava de sair, apanhar ar, sair do sofá, vê futebol horas seguidas, parece que há um canal que não dá outra coisa, é o canal dele, só dele. Um dia destes ainda concordo com a compra de um cão para ver se o tiro de casa, por umas horas que seja. Se o cão fosse pequeno, talvez o pudéssemos acomodar dentro de casa, mas ele quer um cão grande ... com barraca na varanda! 

Hoje, a Lucinda voltou a telefonar. Excitadíssima!
Tinha encontrado a Belmira, vocês lembram-se da Belmira?, aquela que, mal passou por lá, não mais que dois anos, foi colocada em Bruxelas? Voltou agora, reformada, claro, com uma pensão de arregalar a vista a qualquer um sem padrinho nem partido. A Belmira está gorda! Ela era uma magricelas, pois era, mas agora está uma matrona. Casou com um francês, depois divorciou-se, casou com um holandês, depois voltou a divorciar-se, e juntou-se há cerca de um ano com um segundo primo que raramente saiu de Braga. Rico, podre de rico. Ela nunca teve filhos, ele tem três, e cinco netos, está divorciado há muitos anos já. Mas a Belmira não aguentou Braga mais que meia dúzia de meses. Começou por vir frequentemente a Lisboa, e o primo em Braga. Um dia, voltou a Braga e disse ao primo que tinha de fixar residência em Lisboa, mas, prometeu-lhe, ir passar todos os fins-de-semana a Braga. E porquê? Adivinham?  Ela esteve sempre bem relacionada com os partidos, no poder ou fora dele, não tem escrúpulos ideológicos, o lema da Belmira é vive e deixa viver. À conta dos conhecimentos em Bruxelas abichou a presidência de um instituto do Estado em Lisboa. Quando a vi no Centro Comercial, estava ela a comprar perfume, reconheci-a logo, mesmo gorda a Belmira era a Belmira que eu conhecia tão bem. Fomos colegas de curso, éramos amigas desde a infância, habitávamos na mesma rua, e mesmo durante todos aqueles anos em que ela trabalhou em Bruxelas, pelo menos no Natal trocávamos cartões de Boas-Festas. O que é que tu fazes, e o que fazes tu, ela estava radiante e eu fazia por isso, estava contente por voltar a vê-la, claro,  mas não me contagiava a felicidade que transbordava dos olhos dela. Com que idade estás, Lucinda? Pois, somos da mesma idade, claro. Toma lá o meu número de telefone, dá cá o teu, um dia destes telefono-te para irmos almoçar juntas. Agora tenho de me despachar, tenho uma reunião às duas e meia. 
E telefonou.
Telefonou anteontem. Ouviste as notícias? Ouviste que agora quem quiser pode trabalhar para além dos setenta? Tinha ouvido, claro que tinha ouvido, e até tinha telefonado para o chefe a perguntar-lhe se podia retirar o pedido e voltar ao trabalho. O bruto respondeu-me que não, que o trabalho tinha sido redistribuído, não tinha havido sequer abertura de vaga. E, malcriadamente, acrescentou que a reorganização dos serviços estava a dar resultados espectaculares. Que não me preocupasse, que gozasse a minha bem merecida reforma ... para quem trabalhou tanto, a reforma deve ser um merecimento irrecusável. Apeteceu-me mandar-lhe com o telefone acima... Mandei-o contra a parede, tive de comprar outro. 
Mas estás assim tão interessada em voltar a trabalhar? perguntou-me ela.
Se estou! Aceito qualquer proposta nem que seja pro bono... Estou farta de estar em casa, e ainda só estou há dois meses reformada ... Aliás, disse lá em casa, quando entrar o cão saio eu. O cão não entrou, se eu sair dou licença para o cão entrar.
Há bocado, há coisa de uma hora, voltou a telefonar-me a Belmira! Sabes o que me disse?
Que me arranja um lugar de vogal no Instituto a que vai presidir! Acreditas? Eu quase que ainda não acredito.
Vamos assinar amanhã a tomada de posse!
Para já, chegamos aos setenta no posto, depois logo se verá. Nunca o futuro me sorriu tanto nem tão bem pago. Com pensão e a retribuição como vogal passo a ganhar o triplo do que ganhava há dois meses ao fim de quase quarenta anos de serviço. E não tenho que aturar marido, nem cão, nem netos, nem matar-me a trabalhar na cozinha. Um dia destes vamos almoçar. Só nós as duas. Não sei é se tenho tempo para ir ao almoço que o Vítor está a programar.
Se puder ir, não falto. Não faltes tu. Preciso de notícias daquela malta.  

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