Saturday, November 05, 2016

HISTÓRIAS PARALELAS - PAPEL DE JORNAL*

Primavera, 1986

- Telefonaram para aí, da parte do gabinete do Ministro, a perguntar se tínhamos suspendido o fornecimento de papel de jornal. Sabe o que se passa?
- Sei. Fui eu que mandei suspender o fornecimento ...
- A todos???
- Aos que não pagam e já nos devem muita massa. Ao Expresso, que continua a pagar, continuamos a fornecer, ao "Diário de Lisboa" que fez um acordo de pagamento do atrasado, e que por enquanto está a cumprir, não suspendemos. Suspendemos aos que não pagam e que, repetidamente, foram avisados de que não poderíamos continuar a fornecer sem receber...
- Fez bem, fez bem. Mas agora vamos ter chatice com o governo ... Sem jornais, amanhã voltam a sair os blindados para a rua ...
- Talvez nos bombardeiem e fica resolvido o assunto. Que quer que eu faça?
- ... ... ...
- Mando retomar as entregas?
- Manda nada. Fez bem, fez muito bem. Já devíamos ter tomado essa decisão há mais tempo.
- E tomámos. Vezes sem conta, mas do ministério mandaram sempre aguentar até terem uma solução alternativa.
- Pois é. ... A porra do governo ... bom, vou falar com o chefe de gabinete do ministro e depois digo-lhe alguma coisa. Até lá, não há mais papel para quem não paga. Ausente-se! Diga ao pessoal que teve de ir ao médico ....
- Isso não, pode dar azar ...
- Então mantenha-se no posto até novas ordens. Quanto é que nos devem?
- Já passa dos cinquenta mil contos ...
- Tanto???
- Está escrito em todos relatórios mensais ...
- Pois está, pois está .... Pois está .... Já lhe digo alguma coisa.
....
....
....

 - Ficou tudo excitado no ministério! Sem papel, amanhã não haverá jornais ... Parece que já estávamos a fornecer só para o dia seguinte ...
- É o que tínhamos combinado ... Mas só para os que não pagam. O Expresso tem papel. O Diário de Lisboa também...
- Pois é, pois é, mas o Expresso só sai aos sábados e hoje é ... Que dia é hoje?
- Segunda ... - E nós não fornecemos papel de jornal. Quem fornece são os finlandeses, nós pagamos aos finlandeses e deveríamos receber dos jornais ... mas a quase totalidade destes não paga.
- É uma porra de negócio, este, em que o Estado nos meteu ...
- Não foi o Estado, foi o governo.
- Pois, pois, o governo ... Este ou anterior?
- Todos, desde 1976, 1977, por aí ...
- Há dias o ministro voltou a perguntar por que razão não produzimos papel de jornal em Portugal.
- Perguntam todos.
- É. São uns ignorantes. ...
- Voltou a explicar porquê?
- Mil vezes! Mas naquelas cabecinhas só entra o que não os chateia ...
- E o que é que eu faço? Mando entregar ou mantenho a suspensão?
- Mande entregar mas só o papel que está em stock, no armazém, e o que vem no barco que já saiu da Finlândia. Depois ... Não há mais nada para ninguém. Entretanto, prepare as contas para as ir explicar amanhã ao ministro, as dívidas de cada jornal, você conhece o ministro não conhece?
- De vista.
- Então vai conhecê-lo pessoalmente. É um tipo simpático, não sabe o que está a fazer mas é simpático. Ele quer ficar bem inteirado do assunto. A coisa escalda, e ele quer ver se não se queima.
Você vai lá na qualidade de administrador-delegado da empresa que nem produz, nem vende, só paga e não recebe, ou quase.
- Espere aí. Eu não sou administrador-delegado da coisa, se fosse, a coisa já teria acabado há muito ...
- Vai passar a ser a partir desta tarde. Já mandei fazer acta.  Ah! E já vai estar na reunião do CA, que se realiza na sexta-feira da semana que vem para aprovação das contas, as tretas habituais.
E não há aumento de ordenado pelo exercício do cargo mas vai almoçar ao Aviz com os outros membros do conselho, são sete, todos não executivos,  três finlandeses, três portugueses e o administrador-delegado, que passa a ser você em substituição do Pilar. No Aviz, hem! Contas aprovadas em menos de um quarto de hora, e depois ala, para o Aviz! Quer melhor?
...
...
...
- É isso, é isso, é dos corredores do Quelhas. Lembro-me de si, só pode ser de lá.  Vamos lá, então, a ver essas contas e as histórias que tem para contar ...
... ...  ...

- Hum! Temos que acabar com isto ... Desta vez vamos mesmo acabar com isto. Depois de esgotado o que está em armazém e o que já foi embarcado na Finlândia não há mais crédito para ninguém ...
- Não chega ...
- Ah! não??
- Não, não chega. Se não suspendemos os embarques na Finlândia, deixando de avançar com o pagamento antecipado aos finlandeses, continua a pressão para o entregarmos ...
- Pois, pois, é verdade. É isso mesmo que devemos fazer, aliás já o deveríamos ter feito há muito tempo. Avisa-se os finlandeses que este barco que aí vem é "la dernière". Depois, eles que arranjem agente. Deve haver quem queira, que lhe parece?
- Parece-me que o problema deixa de ser nosso. E quanto aos créditos a cobrar, que fazemos?
- Cobramos!
- Em tribunal?
- Acha que só podemos apanhá-los em tribunal? Quanto é que temos de incobráveis, você já disse, mas passou-me...
- Para cima de cinquenta mil contos, a subir todos os dias. Não vejo alternativa senão metê-los no tribunal.
- Nem eu... ... ... Bom. Para já estancamos a dívida, não é?  Depois levamos a perdas os valores incobrados. Este ano, vinte por cento, para o ano ... é, em cinco anos temos as contas limpas. Parece-lhe bem?
- Bem, não me parece, mas o senhor ministro manda.
...
...
...
- Meus senhores, agradeço muito a gentileza das vossas palavras de boas-vindas, mas teria de haver grande falta de sinceridade da minha parte para escusar-me a dizer-vos que, tendo analisado as contas de exploração dos últimos cinco anos encontrei nelas várias imprecisões e alguns erros materialmente relevantes. Passo a detalhar;
... ... ...

Quero, contudo, antes de irmos almoçar no Aviz informar este  conselho de administração que a minha representada pretende anunciar hoje a dissolução da empresa e a denúncia do contrato de agência em consequência das suas características claramente leoninas. Os nossos amigos finlandeses aqui presentes sabem bem que recebem antecipadamente os fornecimentos que vêm fazendo há vários anos mas também não ignoram que não temos recebido dos clientes a maioria dos valores facturados.
Não é culpa deles, vai deixa de ser culpa nossa.
... ... ...
- (Quer dizer que este  o almoço de hoje vai ser o nosso último almoço no Aviz?)
- (Comigo, sim)

E foi.
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*A semelhança entre estas "Histórias" e a realidade contemporânea não é pura coincidência. Como neste caso, o Estado, isto é, o dinheiro dos contribuintes, continua a ser chapéu debaixo do qual se abriga gente pouco séria.

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