Monday, November 07, 2016

HISTÓRIAS PARALELAS - ACONTECEU NA CAIXA

"O primeiro-ministro anunciou um investimento de 200 milhões de euros do Estado num programa de coinvestimento para empresas inovadoras que precisam de capital de risco, num evento no âmbito da Web Summit"DN, hoje, 7/11/2016
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Em 1977, O FMI entrou pela primeira vez em Portugal, a pedido de um Governo de Mário Soares, regressando em 1983, por iniciativa do Governo de Bloco Central, também liderado por Mário Soares Entre 1973 e 1985, a inflação anual média rondou os 22%. 

"É público o telefonema nocturno de Silva Lopes, então governador do Banco de Portugal, para o primeiro-ministro, Mário Soares, a avisar que no dia seguinte Portugal poderia entrar em bancarrota. Soares terá respondido que, se assim era, o melhor era deixá-lo dormir, para estar preparado para o dia seguinte" - Expresso/RevistaÚnica/07 Maio 2011
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Verão de 1980

O CMF da Silva não sabia, a esmagadora maioria dos portugueses não sabia, até que ponto as contas externas se tinham deteriorado com o aumento do preço do petróleo, a entrada de quase um  milhão de retornados, as quebras no turismo, as reduções das remessas dos emigrantes, as fugas de capitais, afugentados com os clamores revolucionários, e que nem a venda de divisas e ouro do Banco de Portugal tinha evitado o crescimento do endividamento para níveis insustentáveis sem ajuda externa.
O que o CMF da Silva sabia é que a sobrevivência da sua empresa de equipamentos para indústrias alimentares, em grande parte importados, estava ameaçada.

Porquê Carlos Manuel? 
Não me dão BRI´s, sem BRI´s não posso importar, se não importo não vendo, não pago ao pessoal, tenho de encerrar as portas, percebes? Estamos tramados. Parece que o país não tem divisas, e sem divisas não há meios de pagamento, sem meios de pagamento não há importações, é o que dizem. Este país chegou ao fundo!

E por que é que o meu amigo não pensa em produzir o que agora importa? Leva algum tempo, exige algum capital, mas daqui a um ano, no máximo, pode ter o seu negócio sustentado com produção própria. O IAPMEI e a Caixa estão anunciar em letras gordas um concurso "Aposte no futuro, Construa a sua empresa". Talvez seja uma oportunidade no meio destes tempos de ameaças.
Achas?
É um risco, não há investimento sem risco, mas, no seu caso, parece poder ser um risco calculável. V. disse-me há tempos que o seu amigo Dennis F., comprou casa no Algarve e está a pensar em retirar-se. Por que não fala com ele? Convença-o a conceder-lhe uma licença de produção dos equipamentos que ele produz em Thionville, claro que tem de pagar-lhe royalties, e comissões nas vendas a clientes 
dele em França, Inglaterra, Alemanha, ... Argélia, durante algum tempo. 

O Dennis aceitou a proposta do CMF da Silva, assinaram um acordo, o CMF da Silva submeteu ao concurso um projecto, e o projecto foi aprovado. Recebeu medalha e diploma comemorativo. 
Como possuía economias, avançou para a compra de um lote de terreno, num parque industrial em local com bons acessos rodoviários, em regime de direito de superfície por 50 anos, já não vou durar tanto, disse ele, e avançou. Avançou tanto que, em menos de quatro meses, tinha o edifício construído, pronto para receber as máquinas necessárias à produção. Tudo com os capitais próprios a que se tinha comprometido no projecto aprovado pelos promotores do concurso, a Caixa e o IAPMEI.
Desvanecido, olhava para o edifício, e concluía que tinha ficado teso mas orgulhoso da obra feita.

E, agora, quando é que se montam as máquinas?
Já estão encomendadas, temos que entregar os 30% da ordem para os fornecedores avançarem. 
Estamos à espera que a Caixa desbloqueie a massa. Já perdemos um mês. 

Então Carlos Manuel, quando é que se instalam as máquinas?
Imagina que a Caixa disse-nos ontem que está à espera das facturas pró-forma para desbloquear a massa, e já lá vão dois meses ...
Mas as facturas pró-forma já foram entregues, não foram?
Há mais que tempo. Estamos em Setembro, entregámos em Junho, estava a construção do edifício quase a acabar.  
E que dizem eles?
Que não as receberam. Isto dá comigo em doido! Conheces alguém na Caixa?
Conheço muita gente lá, mas primeiro precisamos de saber onde param as facturas. 
É complicado ...
Talvez não seja assim tanto. Onde é que o meu amigo entregou as facturas?
Naquela entrada que fica nas traseiras da entrada principal, que dá para o Calhariz. 
Então faça como lhe digo: eles fazem micro filmagem de todos os documentos entrados. Lembra-se da data em que entregou as facturas pró-forma?
Perfeitamente.
Então vá até lá e peça que eles visualizem todos os documentos entrados nesse dia.
E eles vão nessa?
É questão de experimentar.

O CMF da Silva assim fez e, porque tinha boa memória, em menos de meia hora ficou provado que as facturas tinham dado entrada na Caixa quatro meses antes, não menos.
A esta altura da saga seria esperável que ao meu amigo fossem apresentadas desculpas pela Caixa e desbloqueado o financiamento contratado, mas a Caixa foi (parece que, trinta e seis anos depois, continua a ser), insensível a razões éticas, e demorou mais um mês para convocar o CMF da Silva e exigir-lhe que entregasse novas facturas pró-forma porque as anteriores tinham caducado ao fim de dois meses das respectivas datas. Com efeito, regra geral, os fornecedores colocam datas limite para os preços indicados nas facturas pró-forma, mas que culpa tinha ele, o meu amigo Carlos Manuel, que na Caixa tivessem perdido os documentos? Nenhuma.

Protestou, escreveu ao presidente da Caixa, não obteve resposta, e resignou-se a pedir novas facturas pró-forma aos fornecedores. Um mês depois, foi convocado para uma reunião.
Saiu-lhe para o encontro um sujeito que ele nunca tinha visto na vida, homem na casa dos trinta e muitos, com cara de poucos amigos.

- Sente-se!, disse ele, enquanto traçava a perna e folheava o projecto.
Consta aqui no relatório do projecto um objectivo de exportação de 4% do total da produção durante os primeiros cinco anos ...
- Sim, pareceu-me prudente não apontar para objectivos ambiciosos em países onde nunca vendemos.
Temos um agente, que conhece bem os mercados, aliás é nosso parceiro neste projecto, temos um contrato que o obriga a dar-nos todas as informações e especificações técnicas de produção, mas queremos abalançar-nos no estrangeiro só quando estivermos bem firmes no mercado interno. 
- Então não há estudo de mercado que justifique este objectivo!
- Há, há. O sr. Dennis F., tem uma carteira de clientes vastíssima que vai, contratualmente, passar a fornecer a partir da produção aqui em Portugal. Aliás, ele tem casa no Algarve, passa cá a maior parte do ano.
- Mas não há estudo de mercado!
- Não sei a que se refere, francamente. Sabemos a dimensão dos mercados, sabemos que quota podemos facilmente atingir, desde que tenhamos produção, que já deveria ter começado há seis meses e ainda não arrancou porque, como deve saber, perderam as facturas pró-forma aqui, na Caixa....

O interrogatório foi suspenso durante largos minutos, enquanto o técnico folheava o relatório, de trás para a frente, da frente para trás.

- Quatro por cento, hem? Por quê quatro por cento? Porque não cinco por cento?
- Dá quase no mesmo. Se há problema nisso, recalcula-se o projecto com outros valores dessa ordem de grandeza, mas estou certo que o resultado final não muda de forma significativa. 
- Por que não dez por cento? Por que não dois por cento?
- Dá quase no mesmo ... Mas se quatro por cento não serve, muda-se ...
- Muda-se, como?
- O sr. dirá o que lhe parecer aceitável ...
- Para eu lhe dizer teria o senhor que me pagar!,

(Nesta altura, houve um largo compasso de espera para o meu amigo Carlos Manuel digerir uma indignação imensa)

- Não, isso não posso pagar. Já esgotei! E para esse peditório nunca paguei, nem pagarei!

E o projecto desmoronou-se naquele dia. 

O técnico reduziu unilateralmente e de forma perturbadora o valor contratado, a Caixa dispunha naquele tempo de prerrogativas de cobrança de débitos idênticas aos que assistiam às Finanças, qualquer processo contra a Caixa demoraria anos, porque não poderia a empresa defender-se num processo executivo movido pela Caixa. À Caixa bastava apresentar, como título executivo, o valor em dívida do empréstimo que a empresa, sem os meios contratados, não poderia reembolsar. 
Caiu antes de começar a gatinhar.

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