Piketty recusou ontem a distinção de cavaleiro da Legião de Honra francesa invocando que não deve competir ao Governo a decisão de quem é "honorável". Não foi o primeiro. Camus, Marie Curie, Sartre, entre outros, recusaram no passado a distinção. No caso de Piketty, é a razão invocada pelo economista que torna mais saliente a sua decisão: não o tendo dito explicitamente é muito óbvio que Piketty não reconhece ao governo (a este e a qualquer um) honorabilidade para distinguir os "honoráveis". É difícil, creio eu, não concordar, também neste caso, com ele.
- Já leste o "Capital no Séc. XXI"?
- Piketty, é isso?
- Esse mesmo.
- Li, li. Mas é uma estopada de séries estatísticas e de conclusões erradas.
- E, tu, leste?
- Já não tenho pachorra para coisas tão pesadas.
- E a ti, que te parece?
- Desde logo, embirro com o título ...
- Mas foi distinguido como livro do ano pelo Financial Times e pela Mckinsey ...
- Pois, ...
- E a ti, que te parece?
- Desde logo, embirro com o título ...
- Mas foi distinguido como livro do ano pelo Financial Times e pela Mckinsey ...
- Pois, ...
O DN de hoje transcreve aqui uma entrevista concedida em Outubro do ano passado. Para quem não esteja disposto a ler e perceber mais de nove centenas de páginas, esta entrevista resume o pensamento de Piketty. Depois de, já há alguns meses atrás, ter lido o pesado "Capital no Séc. XXI" confesso que não sei se todos os dados e resultados de Piketty são exactos e todas as conclusões pertinentes. Mas sei que me identifico com as suas previsões e as suas propostas. Até que me convençam do contrário.
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Para memória futura, não vá o DN descontinuar o registo.
"Crescimento de 4% ou 5% acabou e os políticos já perceberam isso"
por Manuel Queiroz em ParisHoje
Thomas Piketty, economista francês que recusou condecoração do governo,
defende que o capital está cada vez mais concentrado porque a
rentabilidade do capital cresce mais do que a economia e os salários.
O economista francês recusou ontem a distinção de cavaleiro da Legião de Honra francesa
por considerar que não cabe ao governo decidir quem é "honorável".
Piketty defendeu ainda que o Executivo francês faria bem se "se
dedicasse a relançar o crescimento em França e na Europa".
Autor
do livro "O Capital no Século XXI", o economista deu, a 19 de outubro do
ano passado, uma entrevista ao Diário de Notícias, que pode ler na
íntegra:
A certa altura no livro põe a questão central:
trabalho ou herança. As desigualdades que o seu livro quer provar que
vão num sentido crescente, com o rendimento do capital muito mais
elevado do que o do trabalho, podem mesmo acabar onde?
Vamos
numa direção de mais desigualdades, mas até onde não sei porque isso
depende de tomarmos medidas. A principal conclusão é que é preciso mais
transparência, menos opacidade, para não termos um dia uma sociedade
muito diferente daquela que pensamos que estamos a construir e que deve
ter por base o mérito de cada um e a igualdade de oportunidades. O
problema é que tivemos uma longa fase de reconstrução, depois das duas
guerras mundiais, que teve taxas de crescimento da economia anormalmente
altas - do ponto de vista histórico - e tão longas que pareciam
infinitas. Para as novas gerações não voltaremos aos tempos de Balzac e
do seu Père Goriot, mas será outra coisa em relação àquilo que nós
conhecemos. Para saber o que vai ser, teremos de nos ir adaptando e
tomando medidas no sentido de o mérito e o trabalho serem decisivos e
que a herança o seja menos.
O capitalismo é o pior dos regimes económicos com exceção de todos os outros, como Churchill dizia da democracia?
Acho
sobretudo que há diferentes maneiras de organizar as instituições que
permitem continuar o capitalismo. É que de outro modo arriscamos que
seja a democracia a estar ao serviço do capitalismo, em vez do
contrário. Não sou marxista, sou pela propriedade privada, mas há coisas
que a propriedade privada não sabe fazer. Não podemos ter uma
desigualdade que aumenta porque o rendimento do capital, das rendas, das
heranças, é muito maior do que o do trabalho, em que nascer numa
família com posses é muito mais seguro para ter uma vida boa do que
trabalhar muito, a não ser que se consiga entrar no centil ou decil
superior dos salários, como alguns managers. Quando a taxa de
rentabilidade do capital, que eu utilizo quase como definição de
património porque englobo todos os ativos, é maior do que a taxa de
crescimento da economia como foi sempre até ao século XIX e deve voltar a
ser neste século, isso quer dizer que as desigualdades aumentam e,
certamente, pela via pior, que é a da herança. Há que regular a riqueza e
a sua redistribuição.
E no fundo o seu livro aponta num
sentido aterrador: as desigualdades da Belle Époque, a que podemos estar
a voltar segundo as suas contas, acabaram em duas guerras
devastadoras...
Bem, não é inevitável, quero crer. Há
diferentes formas de retorno aos nacionalismos. Há uma fração crescente
da população que acha que a mundialização não traz coisas boas para eles
e esse é o risco principal. Em certos países, é inegável que as
desigualdades têm contribuído para conflitos difíceis. Penso sobretudo
no Médio Oriente onde as questões ligadas ao petróleo e aos rendimentos
dele derivados têm um papel importante. Mas a guerra não é uma
fatalidade. As sociedades democráticas têm de se saber regular e
encontrar os caminhos para resolver os problemas.
Mas uma das ideias essenciais da sua investigação é que, historicamente, o crescimento normal é 1% ou à volta disso.
As
pessoas não dão conta que, no longo prazo, se a economia crescer 1% ao
ano, real, ou seja expurgada a inflação, numa geração, em 30 anos, o
crescimento composto é de 35%, o que é muitíssimo. É uma transformação
muito grande da sociedade, muito rápida, é uma mutação em que já é
difícil toda a gente encontrar o seu lugar. O crescimento mundial desde a
Revolução Industrial, desde 1712, foi em média de 1,6%. Ao longo de
três séculos. Metade desse crescimento tem diretamente que ver com o
crescimento da população e o resto veio da melhoria da produtividade.
Parece um crescimento minúsculo, mas mudou tudo na nossa sociedade. O
que fazer então nesta altura? Eu não sou adepto do crescimento zero, mas
claro que temos de pensar num crescimento mais limpo, temos de investir
na energia e na formação, porque se já temos muita gente nas
universidades temos de dar essa oportunidade realmente a todos. A
difusão do conhecimento é a força mais poderosa que tende para a
igualdade de condições entre todos a longo prazo. É um dos setores em
que tem de se investir largamente - ainda não proporcionamos
oportunidades iguais a todos no que toca a formação.
Nestes
países, as pessoas vão ter de se habituar a que não podem trocar de
carro todos os quatro ou cinco anos ou de telemóvel de dois em dois
anos...
O que eu digo no livro é que os períodos de
crescimento a 4% ou 5% são raros na história e só acontecem em períodos
de recuperação. Como na França e na Alemanha depois da Guerra, ou com a
China e os BRIC agora. Aquilo a que eu chamo o "retorno ao normal" quer
dizer voltar a períodos como o do início do século XX, em que havia
muita inovação, os primeiros carros, o telefone. Mas claro que temos de
nos habituar. Uma das coisas importantes é que os políticos já adaptaram
o discurso a esta nova realidade de crescimento de 1%.
Acha que sim? Em Portugal não...
Bem,
não conheço o caso particular, mas na generalidade na Europa isso já
acontece. Já ninguém acredita que se possa voltar a crescimentos de
economia de 3% ou 4% no nosso continente, porque não será possível.
Sem crescimento o que pode fazer a Europa?
Aí
já entramos na análise mais de futuro. A crise na Europa é de dívida,
mas nós conseguimos transformá-la numa crise mais importante do que
noutros lados. A moeda única é um sistema que não promove uma igualdade
de taxas no seu interior, o que é impensável. Chega a haver diferenças
de 5% nos juros pagos para contrair dívida, o que quer dizer que o
mercado, num caso desses, está a dizer que acredita que dentro de cinco
ou dez anos um dos países deixará o euro. Fizemos prova de egoísmo em
relação aos países do Sul simplesmente porque a Alemanha e a França -
sim, a França também - disseram que nunca iriam partilhar as taxas de
juro. O resultado é mais crise.
Uma das coisas que diz no seu livro é que sem inflação não vão pagar-se as dívidas...
Pelo
menos, sem inflação a diluir uma parte das dívidas vai demorar muito,
muito tempo a pagar. É isso que mostra a história - não se pode reduzir a
dívida rapidamente com uma inflação tão baixa. O Reino Unido no século
XIX é uma boa prova disso. A Itália gasta 7% do PIB em juros, é mais do
que gasta nas suas universidades. É incrível! É inacreditável! O
rendimento do património progride mais do que a dívida e a dívida é em
grande parte até interna - está nos bancos e fundos europeus. E nós não
conseguimos arranjar maneira de a pagar ou de a reduzir? É difícil pôr
em comum as dívidas, ou seja pôr uns a pagar a dívida dos outros, mas é
possível partilhar as taxas. Pôr em comum as taxas, não as dívidas. E
isto mudava tudo. Os países deixavam de estar submetidos aos fundos e
aos mercados da forma que estão. Pedimos ao BCE um papel heroico que é o
de escolher entre as dívidas, como se a Fed americana tivesse de
escolher um dia a dívida da Califórnia, outro dia a do Texas e por aí
fora. Enquanto os governos europeus não derem esse passo decisivo a
desconfiança será muito profunda e agravar-se-á. Há um egoísmo nacional
da Alemanha e da França...
Mesmo de Hollande, em quem votou, suponho?
Sim,
votei Hollande. Eu acho Sarkozy de uma direita perigosa, mais próxima
de Berlusconi do que de De Gaulle, para dar uma ideia. Sarkozy
estigmatiza os trabalhadores imigrados de uma forma que me parece
indigna. Mas Hollande é tão egoísta e vê as coisas tão a curto prazo
como Merkel. E assim não se pode avançar.
Falou de Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu [BCE], há pouco. Também o elogia?
Draghi
tem procurado corresponder ao interesse geral. O BCE tem a vantagem de
não estar bloqueado pela regra da unanimidade e toma decisões por
maioria. Se tivéssemos mais disso na Europa - regra de maioria - as
coisas seriam diferentes. Pomos a soberania em risco e depois temos um
sistema muito antidemocrático entre os países, com a Comissão e tal. É
tudo muito opaco. É por isso que proponho um parlamento da zona euro,
com deputados cooptados nos parlamentos nacionais. E veremos o que dá,
veremos como a Alemanha fará se ficar em minoria. Proponho isso no
livro, se calhar começando apenas com uma parte dos países...
Lá está, a regra da unanimidade é defendida pelos países mais pequenos...
Pois,
mas as instituições europeias têm de ser modificadas. Esse parlamento
permitiria um debate à luz do dia, fora dos conselhos fechados, sobre o
euro. Não podemos viver com uma moeda única e querer depois cada um
manter o seu défice sem nenhum controlo.
Vem aí o semestre europeu de que a esquerda não gosta...
Eu
sou contra o semestre europeu, que é negativo. Vamos ver no outono como
vai gerar descontentamento entre todos e desde logo com a França, que
não quer manter os compromissos do défice. Toda a gente vai ficar
descontente. Mas não se pode ser contra tudo e é preciso propor
soluções. A esquerda às vezes parece que quer que tudo acabe em planos
sociais. Não sei o que decidiria um parlamento da zona euro, como
reagiriam os deputados alemães. Mas seria democrático um debate
parlamentar sobre isto. É difícil, reconheço, mas não vejo outra
solução. E claro que tem de haver algum controlo sobre os défices.
Imagino que Durão Barroso, de saída da presidência da Comissão Europeia, não lhe seja muito simpático.
Não
é bem a pessoa, é mais um problema de instituições. O BCE tem sido
melhor porque tem regras melhores, mais adaptadas, e a Alemanha fica
muitas vezes em minoria nas decisões do BCE. Mas pode haver, isso sim,
um problema de geração com Barroso, como também com Angela Merkel. Para
eles a Europa é importante porque permitiu a democracia de Lisboa a
Varsóvia, o que é formidável, mas isso já não chega para as novas
gerações, que querem mais. Tem de haver uma política da Europa mais
forte e determinada, que se preocupe com a regulação mundial do
capitalismo. Será normal que os Estados Unidos multem como têm feito os
bancos europeus sem nenhuma reação? Será possível que as taxas de
imposto real das grandes empresas sejam mais baixas na realidade do que
as que pagam as pequenas e médias empresas? Barroso brilhou pela
ausência em tudo isso. E mal.
Acha que a esquerda já conseguiu reconhecer-se numa narrativa sobre a crise?
Não,
claramente não. Perturba-nos muito que a crise financeira de 2007-2008,
dos excessos da finança, das acusações aos mercados, se tenha tornado,
em 2010--2011, uma crise de dívidas soberanas, de Estado social, e ainda
não saímos dessa contradição. A verdade é que, ao contrário do que
alguns dizem, esta crise não foi tão grave como a dos anos 1930, em boa
parte porque os governos não deixaram cair o sistema financeiro. E
depois nos anos 1930 o Estado era mínimo e hoje não é. E é também por
isso que a crise leva a questionar muito o Estado. O grande passo do
aumento do peso do Estado já foi dado - era perto de 10% antes das
guerras, agora é de 50% - e não vai haver outro. Mas a partir do momento
em que as despesas públicas representam cerca de 50% do rendimento
nacional, é evidente que haverá nos próximos anos em toda a Europa
debates sobre a melhor forma de organizar as coisas de modo a reformar o
Estado social sem o desmantelar. E a esquerda deve discutir isso
também.
A "utopia útil" como chama à sua proposta de imposto mundial sobre o património é útil em quê?
Não
acredito na imposição, acredito em cooperação internacional reforçada.
Um imposto sobre o património total seria uma forma nova de olhar para
problemas novos. Antes de mais é preciso que se melhore mesmo a
informação entre países e designadamente entre países europeus e chamar a
atenção para isto pode ser útil desde logo. O património deve estar
acessível de forma a que se possa taxar de facto tudo e de forma
progressiva. Há estudos que mostram que hoje há regressividade fiscal
sobre os rendimentos do decil mais elevado - os 0,1% mais altos. Este
imposto seria anual, moderado de 1% a 3% ou 4%, mas teria efeitos. É uma
das formas que encontro para que aquilo que designo como a primeira lei
do capitalismo possa ser controlada. Esta lei implica que os
patrimónios que vêm do passado se recapitalizam mais depressa do que
sobem a produção e os salários, o que cria desigualdades crescentes. O
passado devora o futuro.
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