A União Europeia, e depois, a Zona Euro são frutos da intenção de garantir duradouramente a paz entre os povos europeus, que, por razões diversas, apresentam propensão congénita para ciclicamente se auto destruirem. Na origem, os alicerces dessa essa intenção cimentaram-se numa aliança inicialmente geograficamente limitada de comércio livre partindo do pressuposto historicamente confirmado que o comércio promove a paz entre os povos. O euro (1999) surge meio século depois do lançamento da CECA (1951), que evoluiu, alargando-se geograficamente para a CEE (1957) e, com âmbito e extensão mais alargados para a UE (1993), com o objectivo primordial de garantir as regras de concorrência entre os seus membros. Se o desarmamento aduaneiro for, e tem sido, subvertido pela introdução de outros mecanismos fiscais ou monetários de efeitos opostos, o propósito inicial é arruinado. Outros factores têm contribuido para ameaçar o euro e a União Europeia, mas fixemo-nos por agora naqueles que são conflituantes entre si e ameaçam o projecto original.
Antes de prosseguir, recorde-se uma ideia elementar: As relações entre A e B (sejam o que sejam: indivíduos, empresas, países) só são perduráveis se forem recíprocamente vantajosos para ambas as partes, ou enquanto forem tidas como tal. Da perdurabilidade das relações comerciais entre as partes resulta a perdurabilidade da paz entre elas. Elementar, mas não tanto.
Com efeito, se o desarmamento aduaneiro for ultrapassado por outras regras, ainda que consentidas pelas leis, propiciando a alguma ou algumas das partes vantagens que a eliminação das fronteiras alfandegárias pretendeu eliminar, no âmbito de um concerto de comércio livre, mais tarde ou mais cedo alguém terá de sair do jogo viciado. Tal é o caso da legal concorrência fiscal de alguns países membros da UE que oferecem abrigo, por vezes apenas postal, a empresas de outros países membros.
A situação é conhecidíssima, a comissão europeia nunca a abordou numa dos muitos milhares de regras paridas em Bruxelas. Até ao dia em que um consórcio internacional de jornalistas disse o óbvio: o rei vai nu, neste caso, o Luxemburgo faz batota. Só Luxemburgo? Claro que não.
O sr. Juncker tentou desembaraçar-se há dias das teias iluminadas pelo LuxLeaks argumentando que, enquanto primeiro-ministro e ministro das finanças do seu país, não tinha sido o arquitecto dos contratos de evasão fiscal firmados pelo seu governo com empresas multinacionais. Reconheceu, no entanto, que, sendo esses contratos legais e os seus efeitos convenientes para o Luxemburgo, serão porventura menos éticos. E prometeu, agora que é presidente da comissão europeia, desencadear processos de harmonização fiscal na União Europeia. Cumprirá a promessa?
É improvável. Desde logo porque é luxemburguês e o Luxemburgo vive em grande parte daquela batota. E depois porque o Luxemburgo não está só. Para além de outros estados membros usando e abusando da concorrência fiscal através da tributação das empresas há, obviamente, todos aqueles que são beneficiários duma evasão fiscal, legalmente consentida, que sangra o rendimento nacional dos países mais fragilizados e os contribuintes desprotegidos dessa legalidade imoral: os accionistas e os gestores de topo* das sociedades albergadas em paraísos fiscais. Onde é que esta situação vai desaguar? Incontornavelmente, se as relações comerciais de A com B são subvertidas por regras que favorecem A ou B, essas relações estão condenadas a não perdurar. Dito de outro modo: à legalidade da desunião fiscal só pode seguir-se a legalidade da desunião europeia. E depois costuma acontecer a guerra.
---
*Segundo Piketty (O Capital no Sec XXI) a acumulação de riqueza nas últimas décadas tem decorrido mais dos rendimentos apropriados pelos gestores de topo do que das rendas ou juros dos capitais envolvidos.
Antes de prosseguir, recorde-se uma ideia elementar: As relações entre A e B (sejam o que sejam: indivíduos, empresas, países) só são perduráveis se forem recíprocamente vantajosos para ambas as partes, ou enquanto forem tidas como tal. Da perdurabilidade das relações comerciais entre as partes resulta a perdurabilidade da paz entre elas. Elementar, mas não tanto.
Com efeito, se o desarmamento aduaneiro for ultrapassado por outras regras, ainda que consentidas pelas leis, propiciando a alguma ou algumas das partes vantagens que a eliminação das fronteiras alfandegárias pretendeu eliminar, no âmbito de um concerto de comércio livre, mais tarde ou mais cedo alguém terá de sair do jogo viciado. Tal é o caso da legal concorrência fiscal de alguns países membros da UE que oferecem abrigo, por vezes apenas postal, a empresas de outros países membros.
A situação é conhecidíssima, a comissão europeia nunca a abordou numa dos muitos milhares de regras paridas em Bruxelas. Até ao dia em que um consórcio internacional de jornalistas disse o óbvio: o rei vai nu, neste caso, o Luxemburgo faz batota. Só Luxemburgo? Claro que não.
O sr. Juncker tentou desembaraçar-se há dias das teias iluminadas pelo LuxLeaks argumentando que, enquanto primeiro-ministro e ministro das finanças do seu país, não tinha sido o arquitecto dos contratos de evasão fiscal firmados pelo seu governo com empresas multinacionais. Reconheceu, no entanto, que, sendo esses contratos legais e os seus efeitos convenientes para o Luxemburgo, serão porventura menos éticos. E prometeu, agora que é presidente da comissão europeia, desencadear processos de harmonização fiscal na União Europeia. Cumprirá a promessa?
É improvável. Desde logo porque é luxemburguês e o Luxemburgo vive em grande parte daquela batota. E depois porque o Luxemburgo não está só. Para além de outros estados membros usando e abusando da concorrência fiscal através da tributação das empresas há, obviamente, todos aqueles que são beneficiários duma evasão fiscal, legalmente consentida, que sangra o rendimento nacional dos países mais fragilizados e os contribuintes desprotegidos dessa legalidade imoral: os accionistas e os gestores de topo* das sociedades albergadas em paraísos fiscais. Onde é que esta situação vai desaguar? Incontornavelmente, se as relações comerciais de A com B são subvertidas por regras que favorecem A ou B, essas relações estão condenadas a não perdurar. Dito de outro modo: à legalidade da desunião fiscal só pode seguir-se a legalidade da desunião europeia. E depois costuma acontecer a guerra.
---
*Segundo Piketty (O Capital no Sec XXI) a acumulação de riqueza nas últimas décadas tem decorrido mais dos rendimentos apropriados pelos gestores de topo do que das rendas ou juros dos capitais envolvidos.
No comments:
Post a Comment