Sunday, December 15, 2013

BERNARDINO E MARIA ADELINA

Sou de 39. Fiz 17 no barco em que embarquei para a Venezuela. Estive lá seis anos, mas aquilo não era grande coisa, agora está muito pior, e voltei. Voltei, mas por pouco tempo. A guerra em Angola tinha começado há dois anos, eu tinha escapado à incorporação, era considerado refratário, tinha dois caminhos pela frente: ou me apresentava e ia para o mato ou dava o salto para fora. Casámos em Fevereiro de 64 e em Maio dei o salto para França. Havia muita gente a dar o salto naquele tempo para França, Luxemburgo, Alemanha, a maior parte não fugia da tropa, fugia da falta de emprego. Paguei com quase tudo o que tinha trazido de Caracas, fiquei com quase nada para o que desse e viesse.O engajador levou-me a mim e a mais três até à fronteira espanhola onde nos esperava um tipo que supunhamos ser espanhol mas que, afinal, era português, homem de quarenta e tantos anos, especialista, dizia ele, em contrabando e passagens clandestinas, com quem atravessámos Espanha até à vista dos Pirineus. Foi lá que nos largou, com indicações de trilhos e caminhos, e desejou boa sorte. Trabalhei durante seis anos na região de Paris, nas auto routes, sempre indocumentado. Em 69, salvo erro foi em 69, houve abertura para a legalização, consegui reaver o passaporte através do Consulado. A minha mulher tinha ido ter comigo em 65, em 69 já tinhamos dois filhos, o terceiro nasceu em 70. Nesse ano fomos pela primeira vez passar férias a Portugal. Voltámos a França dois anos depois, e por lá ficámos durante mais vinte e dois, 28 anos ao todo, de França.

Temos sete netos, três na América, dois em França e dois no Brasil. A mais velha trabalha em Manassas, na Virginia, é cabeleireira, o marido trabalha numa imobiliária; vamos passar o Natal com eles, voltamos a 5 de Janeiro. Quando se juntam os netos, não sei como é que eles se entendem, só os brasileiros é que falam português, mas entendem-se. Saímos de Asas Brancas às quatro da manhã, levantámos-nos às três, para apanhar o avião no Porto às seis, em Lisboa às sete e vinte, e em Frankfurt ao meio dia e qualquer coisa. Ao todo, desde que saímos de casa até chegar a Manassas são mais que 24 horas. É muita hora para a nossa idade. De barco, para a Venezuela, levámos cerca de três semanas antes de chegar a La Guaira. Mas eram outros tempos e eu era um rapazote na altura. Quem nos levou até ao Porto foi a nossa filha que está no Brasil mas veio passar duas semanas a Portugal. Em França estivemos na Primavera. Ao Brasil ainda não sabemos quando vamos. É cada vez mais difícil sairmos. Pela idade, sim, mas também por causa dos bichos. Temos um cão e duas gatas. Temos uma vizinha que fica a tomar conta deles e das galinhas mas a gente afeiçoa-se e também nos custa deixá-los. O cão esta madrugada até me fez vir uma lágrima ao canto do olho, acredite. Quando saímos, porque nos vê a fazer as malas, fica ensimesmado e nem come. Quando me levantei, encontrei-o à porta do quarto, parecia que estava a chorar.

De modo que, onde quer que estivermos, estamos sempre ansiosos por sair e para voltar. É assim.

2 comments:

Anonymous said...

... a vida
pelo mundo em pedaços repartida.

ais said...

..que descrição tão triste e ao mesmo tempo tão realista!...
alguns eu conheço que, fugindo à tropa (ou seja à guerra)ou à miséria se desenraizaram e só passam por cá raramente para matar as saudades que não deviam ter...para muitos a vida é (foi) feita de retalhos muito cruéis...