O professor de desenho tinha um nome venerável, Santa Maria, mas idade a mais e saúde a menos para turmas de miúdos que tinham acabado a escola primária, onde a disciplina e o esforço eram garantidos pela palmatória e pelo ponteiro pousados à mão direita do mestre. Mais crescidos e menos constrangidos, mais longe de casa, para a maior parte o primeiro ano da secundária era de libertação.
Aquilo que na primária seria impensável, faltar às aulas, por exemplo, na secundária era uma aventura, desde que o correio fosse convenientemente controlado e o aviso da escola não chegasse aos destinários.
Mestre Santa Maria teria na altura mais que setenta anos, era baixo e franzino, sempre impecavelmente vestido com fato castanho claro, não sei se sempre o mesmo ou diferentes versões da mesma opção, cabelo raríssimo, óculos na ponta do nariz se estava ao perto, pendia-lhe uma corrente do bolso do colete de onde retirava o relógio com os dedos em pinça quando se aproximava a hora do fim da aula, calçava botas com polainitos de camurça castanho claro. Era um dos mártires da rebeldia juvenil subitamente destapada. De tal modo que no terceiro período foi reinternado no manicómio.
Mas isso é uma outra história que, se ainda não contei, um dia destes conto.
Logo no primeiro dia de aulas prescreveu mestre Santa Maria o material exigido nas suas aulas. A lista era imensa, pelo menos vista pela perspectiva de quem não estava habituado, nem lhe era consentido, tanta despesa. Só guaches, Pelikan, tinham de ser Pelikan, cinco: as cores principais, amarelo, azul e vermelho, e o preto e o branco. Acabada a aula, conversaram os menos abonados acerca de tanta exigência e ficou logo ali determinado pelo grupo em que me integrava, que eu compraria o azul, o Frederico, o vermelho, o Álvaro o amarelo, não recordo quem compraria o preto e o branco. E, a bem da economia nacional e da balança comercial, decidimos comprar Cisne, muito mais em conta que os Pelikan.
O acordo funcionou razoavelmente durante semanas, cada qual pintava o menos que podia para não esgotar o material, ainda que tenham surgido alguns atritos com a falta de delicadeza que alguns tinham na ponta dos dedos quando se tratava de colocar um pouco de guacho na borda do godés. Até que um dia, o mestre mandou imaginar e desenhar um animal, e depois pintar. Desenhei um cavalo mas saiu-me mais ou menos um burro. Nada que colocasse em risco a avaliação do período, só faltava pintá-lo. De que cor? Castanho. Saiu verde por falta de comparência do vermelho do Frederico.
Passou o mestre em revista os trabalhos do dia, olhou o meu burro verde, disse, que disparate, onde é que já se viu um burro verde?, e traçou-me sobre o meu burro verde dois traços cruzados às quatro pontas da folha com um lápis vermelho que usava naquelas circunstâncias. O meu futuro como artista plástico ficou traçado ali, debaixo daqueles traços que pareciam de sangue.
Hoje visitámos uma exposição de Chagall. Magnífica. No Kunsthaus museum estão patentes pela primeira vez, suponho, fora da Rússia, algumas das suas obras mais importantes. Mas foi o "burro verde", de 1911 (há pelo menos dois quadros com o mesmo título, o que hoje vi é o da direita, em baixo) que me fez recuar umas décadas e relembrar-me do mestre Santa Maria.
Que não sabia que já em 1911, pelo menos, havia burros verdes na Rússia.
1 comment:
Obrigado pela história tão bem contada de quando eras criança!
E vivam os burrinhos verdes!
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