Meu caro Rui,
Na sua aparente insignificância, a vírgula tem o poder de, mal colocada, adulterar aquilo que era nossa intenção exprimir.
Não é um poder reconhecido pela generalidade das pessoas, que tão descuidadamente a usam, e muitas vezes é até apoucado quando, por exemplo, se afirma "não mudo nem uma vírgula ao que escrevi".
E no entanto, como alguém bem alertou, "a vírgula muda uma opinião. Não queremos saber. Não, queremos saber".
No teu post "Quem tramou o Zé Comuna" afirmas tu que "com maiores ou menores custos, o sistema que fundamentalmente assenta na livre iniciativa e na economia de mercado, sobreviverá; o socialismo experimentado na URSS implodiu irremediavelmente".
Escrito como está, sem vírgulas, o que está portanto em causa é o socialismo experimentado na URSS e não o socialismo como doutrina pois, se fosse essa a tua intenção, terias decerto escrito "o socialismo, experimentado na URSS, implodiu irremediavelmente".
E isto é muito importante? perguntarás tu.
É, porque se houver vírgulas, a afirmação encerra uma insustentável certeza imprópria da preocupação metódica, rigorosa e analítica que se espera sempre de ti. Uma coisa seria a tua esperança ou vontade que o socialismo tenha implodido para sempre, que é uma opinião legítima e respeitável; outra, bem diferente, seria a afirmação categórica de que isso aconteceu, o que, podendo ser uma apetência de um zelote do liberalismo, excederia obviamente a tua competência.
Claro que uma hermenêutica mais rigorosa ao teu texto poderia porventura ter evitado estas lucubrações "virgulinas" já que afirmas, com igual convicção, que o sistema assente na economia do mercado sobreviverá.
Por enquanto dou-te o benefício da dúvida, por pensar que, na hipótese de teres prescindido propositadamente das vírgulas, terás admitido a coexistência dos dois sistemas. Do ponto de vista lógico, do mal o menos.
Um abraço
Artur
Meu Velho Amigo,
Fiquei satisfeitíssimo por receber o teu e-mail que tomei a liberdade de transcrever. Por duas razões, pelo menos: primeiro, pela vaidade que qualquer escriba experimenta quando percebe que alguém teve a pachorra suficiente para ler o que ele escreveu; segundo, porque o meu velho Amigo Artur, que está muito longe de ser um amigo velho, pegou numa vírgula para me confrontar com as minhas nada convencidas convicções. Agradeço-te, Artur, e espero que continues a honrar-me com as tuas críticas, sempre pertinentes e bem humoradas.
O diabo está nos detalhes e eu, reconheço, nem sempre presto a devida atenção à sinalética da vírgula que, se estiver na posição errada, nos conduz ao oposto do pretendido.
No caso em questão, contudo, não se pode marcar à vírgula falta de comparência. O socialismo, enquanto utopia, não implodirá nunca. O sistema que se sustentava nessa utopia implodiu na URSS. O PCP vem agora, através das teses que apresentará no próximo congresso, dizer o que já tinham dito e redito: foram os membros da nomenclatura os traidores da utopia.
O que me pareceu interessante nesta falta de originalidade dos dirigentes do PCP foi a circunstância de o fazerem ao mesmo tempo que Bush se queixava do mesmo: a ganância daqueles (amigos seus, muitos deles) que sabotaram o sistema.
O resto, admito-o sem reservas, é presunção minha: O capitalismo sobreviverá desta crise, a utopia socialista não será nunca exequível num contexto de ditadura. Porque só os mecanismos da democracia poderão garantir os serviços mínimos de sobrevivência dos sistemas de organização social e económica. Poderá o socialismo vingar num contexto de liberdade de opinião e de defesa do direito à propriedade privada? Creio que não.
A China é, na actualidade, o maior laboratório de experimentação da convivência da economia de mercado com um regime não democrático, segundo os padrões democráticos ocidentais. É essa compatibilidade e não a outra, do socialismo enquadrado por um sistema político formalmente não democrático, que está em causa.
Haverá outra? É possível. Mas, por enquanto, não se vislumbra.
Salvo melhor observação.
Um abraço
Rui
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