Saturday, March 24, 2007

NOTÍCIAS DO BLOQUEIO: O TANOEIRO

A ler Anjo-da-Guarda

Ouço-lhe as recordações e liga-se-me a corrente que põe em movimento o mundo dos nossos avós. Era um mundo cheio de gente na rua, nas hortas, nas vinhas, nos pinhais à volta, nos campos de arroz do Mondego. Era um mundo com calor que era uma torreira, com frio que nos enregelava os ossos, com chuva tocada por ventos assobiados por algum deus mal disposto, mas também com o sol sereno das tardes de Outono, as neblinas misteriosas das manhãs de Verão, a apoteose da natureza na Primavera, o tempo passava e a gente sentia-o, gravava-se-nos indelevelmente o enredo, o cheiro, o cenário e a música de fundo. A acção tanto pode ter cinquenta anos como setecentos com ligeiras alterações, com dezenas de protagonistas irmanados no desempenho das suas vidas interdependentes num mundo circunscrito.

E havia também um tanoeiro. Havia dois, aliás: o Xico Pastor e o pai, o Joaquim Pastor. Em Fevereiro aparecia o tanoeiro para fazer obra nova. As reparações ficavam para o começo do Verão, quando a maior parte do vasilhame já estava despejado e tinha de ser aprontado para a próxima colheita. Naquele ano o Pai decidiu fazer um tonel porque as pipas já não cabiam todas na adega.

O Xico Pastor teria, na altura, uns cinquenta anos e pai rondaria os oitenta. O filho era alto e demorado, o pai mais franzino e frenético. O filho tirava da orelha o lápis espalmado, vermelho, de carpinteiro, e fazia com ele círculos no ar à medida que desbobinava a conversa antes de começar a riscar as aduelas. No pai, o bigode torcido nas pontas movia-se ao ritmo dos braços de um maestro a reger sempre em andamento súbito. O filho fazia que ouvia as ordens e tocava pianíssimo. A arte de tanoeiro exigia sensibilidade apurada por muitos anos de trabalho e não se dava bem com andamentos rápidos. A obra era um puzzle que exigia que as peças recortadas se encaixassem definindo um volume elegante e sem a mínima frincha. A madeira de carvalho dobrava-se convenientemente à custa do calor de uma fogueira que ardia no centro da obra e de muita pancada certeira no ponteiro que empurrava os aros para o abraço preciso das aduelas.

O Joaquim, de dedo em riste, a comandar os trabalhos do filho parecia o duque de Saldanha a dar ordens, lá de cima, ao Marquês de Pombal, cai em baixo, negligentemente a passear o leão. Mas estas parecenças, eu só viria a tirá-las anos mais tarde.

Às tantas estava o Xico empoleirado a tentar encaixar a última abraçadeira e o Joaquim redobrava as instruções por minuto. Quando, para chegar ao filho um ponteiro mais rijo, o Joaquim se voltou para trás, ao voltar ao leme, o Xico tinha desaparecido do horizonte. Supôs o Joaquim que ele se tivesse desequilibrado e caído para dentro da obra, mas não: tinha-se concedido um intervalo para apanhar ar e verter águas. De modo que quando o Xico voltou da folga, encontrou o pai dependurado, a olhar para dentro do tonel à procura dele, e perguntou-lhe, irónico: Perdeu alguma coisa, pai?
Respondeu-lhe o velho, sarcástico: Olha, pois perdi, mas não está cá dentro. Deve ter ido de férias.

Era a constante desavença amena que os irmanava.

Hoje, já não há adega, nem tonéis, nem pipas. Sobrou o fuso da prensa, elemento decorativo da adaptação que foi feita. Olho para os braços da prensa e recordo-me dos braços do velho comandante Joaquim Pastor. Tal e qual os braços do duque de Saldanha: enérgicos e ignorados.

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