Tuesday, January 03, 2017

MOISÉS

Ali, mesmo em frente na oblíqua para a esquerda, a menos de cinquenta metros daqui, lá está ele. 
Não, não é fácil distinguir a sua figura esgalgada e enérgica por detrás deste nevoeiro cerrado com mais de trinta anos em cima, mas garanto-lhe que ele continua lá a cavalgar no dorso de um rocinante branco de brita, que se levanta à medida que o cavaleiro prossegue na luta, armado de capacete, viseira, marreta e martelo. E ao lado, fixe-se bem no conjunto, ao lado, cavalga, se é apropriado cavalgar um burro, a companheira do cavaleiro, também ela envolvida na batalha, mas, porque menos vigorosa e menos tempo na luta, o resultado é o que é porque não pode ser maior apesar da boa vontade, trouxe-lhe o almoço no cesto, e deixou-se ficar a fazer como ele faz, consoante a força que lhe resta. 
O capacete, em segunda cabeça, deu-lho o cantoneiro da secção, a quem a bondade da respectiva circunscrição da Junta Autónoma das Estradas voltou este ano a distribuir capacetes novos aos servidores públicos que trabalham ao sol, e à chuva quando não há onde se abrigarem. São cinzentos, da cor da camisa e das calças, com a devida atenção nota-se em cada lado um orifício para ventilação das ideias, lembram soldados da guerra de catorze a limpar valetas. Para o cavaleiro ao lado, aliás cavaleira, não há destas regalias, protege-se com um lenço preto, a cor do uniforme de quem, uma vez de luto, nunca mudará de cor. A viseira engendrou-a o cavaleiro que, além de ser mestre a britar pedra é inventor de tudo o que precisa menos da marreta e do martelo porque alguém se antecipou. Marreta e martelo trouxe-os consigo, eram dele quando era pedreiro, mas por ter caído de um andaime ficou com uma perna mal reparada e incapacitado para o ofício. Sem poder continuar em trabalhos que requerem o equilíbrio de pernas em condições, conseguiu aquele, de britar pedra sentado no dorso do amontoado da pedra que parte, por especial mas retribuído favor do cantoneiro.
Quando surge a vez da troca de capacetes, salta de um para o outro a pena gandaresa de pavão com lugar assegurado há anos no orifício direito, e aí temos Moisés a caminho de S. Tomé da Ferreira que fica a meia dúzia de quilómetros ali para baixo. 
Repare-se agora em pormenor na execução do trabalho do artista britador: Na mão esquerda tamborila a pedra que a marreta já amansou para a apanhar na posição em que o martelo a vai quebrar, segundo as normas, a golpes puxados da altura do ombro direito; e sempre no incessante gosto de falar, falar, falar, entrecortado pelo esforço de malhar o martelo na pedra. Quem passa, se não pára continua a ignorar o que vai para além daquela serra, pequena demais para o nome que lhe dão. Este Moisés, que só não abre caminho através do ribeiro que passa atrás dele porque o ribeiro se passa de um salto, é a agência noticiosa local com fontes fidedignas, o Século aos domingos, e todas as noites a BBC e a Rádio Moscovo.  
Um dia passou por cá o inspector da circunscrição a avaliar o trabalho do cantoneiro e, de propósito ou por acaso, meteu conversa com o britador, que falava de viseira sem olhar os interlocutores, nem era preciso, conhecia-os a todos pela voz, e não saber o martelo de cor o sítio exacto onde Moisés põe os dedos. Perguntou, sabe-se lá porquê mas pode imaginar-se, o graduado ao trabalhador sem vínculo à função pública, se ele sabia escrever o seu nome, estava o cantoneiro ao lado, com cara sofrida, o chapéu na esquerda, a outra no peito, respondeu  Moisés que sim senhor, tinha a quarta classe feita com distinção, sabia escrever muito bem o nome dele e também, se fosse necessário, o de sua excelência se sua excelência lhe dissesse como se chamava porque não o estava a reconhecer pela voz, mas não agora porque tinha de acabar o trabalho antes que chegasse a camioneta que trazia as pedras e levava a brita. E, entre puxadas marteladas, foi perguntando o que queria sua excelência que ele assinasse.  Foi-se embora o inspector, sem bom dia nem boa tarde, e nem Moisés nem o cantoneiro pensaram mais naquilo.
Moisés é, já se disse, quem informa quem quer ser informado, sem divulgar as fontes, mas não admite interrupções na emissão das respostas cadenciadas pelas porradas nas pedras. Interrupção fecha a emissão, Moisés amua com vantagem para o volume do monte de pedra partida. O magazine inclui página nacional, página internacional só para os mais íntimos, coluna mundana preenchida com confidências da sexagenária menina Marquitas, caderno de economia e finanças e suplemento de investigação local. 
Moisés, reparem, brita com alegria e relata com paixão. Se uma tirada é rematada com humor, enquanto as gargalhadas saltam, saracoteia o martelo em prodígios de malabarismo, o cão, ainda não tínhamos reparado no cão, mas reparamos agora que abana o rabo. 
O camião chega ao sábado carregado de pedras carregadas na pedreira, cada matacão pesa não menos que quinze quilos cada, despeja-os naquela nesga de terra à borda da estrada, e carrega a brita que Moisés e a companheira partiram toda a semana. O cabo vem ao lado do motorista, descarrega a carga o ajudante que veio encavalitado nas pedras, assistem à descarga o cantoneiro, o cabo, o motorista, assiste Moisés porque não pode ajudar a descarregar, a perna não deixa, à espera que meçam a brita e o cabo lhe pague o trabalho conforme a medição. De volta a casa, Moisés faz contas de cabeça, a avaliar se o trabalho dará para o sustento semanal dos três lá em casa, dele e da mulher, e do neto, um menino de dez anos, que é, diz ele sem querer trocadilhos nem lugares comuns, a menina dos seus olhos, que a nora lhes viera pôr em casa quando o pai desapareceu  numa explosão na fábrica de foguetes. Àquele menino ensina Moisés, quando já não há sol para ver as pedras, a inventar mundo. Há uns tempos andaram envolvidos na construção de uma chocadeira a carvão por estarem frígidas as galinhas e nenhuma se dispor a cobrir os ovos na capoeira. Da prova experimental com quatro ovos, resultou, segundo Moisés, e testemunhou, rejubilante, o neto, terem nascido um pinto, um pato, os outros dois ficaram escalfados, um sucesso tecnológico que Moisés não regista porque não quer. Também inventou o abano eólico  para arrefecimento da casa nos dias de verão, movido pelo moinho instalado no cume da casa, onde no tempo quente nunca falta a nortada. Quando não faz falta a aragem do abano, a força do engenho é desviada para uma moagem doméstica que até descasca pinhões.

Moisés esteve na guerra de catorze. Era pirotécnico quando foi recrutado, tornou-se pedreiro por ter saído vivo mas gaseado, a guerra tirara-o do fogo luzes e levara-o para o fogo do inferno, sem que ninguém, dos que com ele foram carregados à pressa, soubesse para onde iam e fazer o quê. 
Um dia, já na Flandres, estavam já há uma semana enfiados nas trincheiras sob pressão intensa do fogo inimigo, as baixas não tinham conta, a maioria dos feridos berrava enquanto não desfaleciam e depois morriam exangues. Combatiam, mas era um combate de resistência fincado sobretudo na esperança de não serem atingidos porque nem tinham preparação, nem meios e, pior que tudo, assaltou-os o espectro da fome com a ruptura dos abastecimentos vitais. Quando à noite cessavam os bombardeamentos, atacavam os portugueses as capoeiras das casas mais próximas. E foi numa dessas surtidas à cata de galináceos que Moisés descobriu que por aquelas bandas também havia pirotecnia ao entrar num paiol onde supunha haver um galinheiro. Voltou ao abrigo carregado dos morteiros que conseguiu carregar, mantimentos, viste-os? 

Arreei a carga com cautela e tratei logo de procurar material para uma armadilha. Nem ceei, até porque não havia com que ceasse. Quando a coisa começou a tomar forma, alguns acercaram-se e começaram a ajudar. Trabalhámos toda a noite e ao começo da madrugada tínhamos montado um lança foguetes formidável. Podia atirar sem parar os dois centos roubados se não engasgasse nenhum rastilho. Trabalho acabado, quiseram os outros saber para que servia a engenhoca. Ficaram intrigados, sem resposta e, pensei,  vou dormir até à alvorada. Acordou-me o primeiro sargento com a bota, a olhar-me lá de cima, a querer explicações sem abrir a boca. Lá lhe expliquei como encontrara o fogo e o trabalhão que aquilo nos dera, mas a ideia era boa, tivesse ele fé nela: surpreender o inimigo com uma alvorada de duzentos tiros de morteiro lançados a partir da retaguarda das suas linhas e, deste modo, colocá-lo entre dois fogos, ainda que só um fosse real, mas a proposta foi rejeitada, nunca se aproveita convenientemente a inventiva em Portugal. 

Está Moisés disposto a continuar o relato da campanha do CEP na Flandres, quando chega antecipadamente a camioneta da brita. Não é dia de carga habitual e, por vir vazia de pedras, supõe Moisés tratar-se de algum levantamento ocasional, uma falta em alguma parte para acabar um trabalho que está a meio. E, com essa convicção, entregou a brita e recebeu o dinheiro. Feitas as contas, informa-o o cabo-cantoneiro que, a partir daquele dia, dispensa a Junta Autónoma das Estradas os seus serviços por ter entrado em funcionamento, não longe dali, uma britadeira.
Uma britadeira??? Mas o que é uma britadeira??? pergunta Moisés, mas já todos se foram e o cantoneiro sabe-se lá por onde anda aquela hora.

Não tivesse o cantoneiro escondido o que sabia, e Moisés teria talvez tido tempo de dar combate ao inimigo desconhecido que lhe roubara o trabalho e o sustento da mulher e do neto.  A pensar no neto, Moisés sente redobrado o esforço dos pulmões atingidos pelos gases da guerra. Cambaleia, e senta-se à beira da estrada. Como é que aquilo pudera acontecer? Como é que ele, leitor e ouvinte interessado nos desenvolvimentos das ciências e das técnicas, ele que inventara a chocadeira a carvão,  o abano eólico, a moagem e descascadora doméstica, que até parte pinhões sem partir os dedos, como é que, Santo Deus!, nunca lhe ocorrera inventar uma coisa tão simples de conceber como uma britadeira! Como?, Santo Deus!  
Mas nada está perdido, Moisés, estás a arfar, e o realejo a queixar-se, mas aguenta-te! Aguenta-te porque ainda vais a tempo de conceberes, projectares e construíres uma britadeira mais eficiente e perfeita que alguma vez alguém possa ter concebido ou imaginado sequer. Talvez já não tenhas tempo de a veres funcionar, mas, por amor Oh! Deus!, dá-me tempo suficiente para deixar desenhar o projecto, o meu neto é esperto, muito esperto mesmo, só queria que visses, basta um esboço, não preciso de mais tempo que para preparar um esboço, só isso, compreendes, bom Deus? Uma britadeira é a coisa mais elementar, como é que eu não me lembrei de inventar uma, sabes, bom Deus, afinal de contas já sei, eu gostava do que fazia, as pessoas passavam e ficavam encantadas com o meu trabalho e a minha conversa, perguntavam e eu respondia, gostava de responder, e afinal, uma britadeira é uma coisa tão simples, um motor, um motor a diesel, daqueles que rebocam os cilindros com que pisam as estradas para compactar e endireitar o piso, um motor desses é quanto basta para mover as marretas, eu chamo-lhes marretas mas se calhar já lhe deram outros nomes, que partem as pedras que entram nas tremonhas directamente descarregadas por gravidade das camionetas, dali passam aos martelos que as britam ao tamanho que se quiser, é uma questão de afinação, tão simples, bom Deus, como é que não vi isto? E que cadência! que precisão! que tudo!

Levanta-se Moisés a custo, e lá vai ele a caminho de casa, o que é que irá ele dizer quando a mulher e o neto o virem chegar mais cedo?
Ele, Moisés, que engendrara tudo, até a forma de ganhar a guerra, esquecera-se estupidamente de inventar forma de matar aquele trabalho em que consumia os seus dias antes que outros o matassem e o deixassem depenado. E se ele desconjuntasse a britadeira? Aquilo deveria ser bicho que passava as noites ao relento. Se lhe retirasse uns parafusos, a estrutura animada para britar desconjuntava-se, e a pensar nisto, animou-se, depois a nitidez da inconsequência da sabotagem acertou-lhe no peito como uma marretada, baqueou contra o  valado, esmagado por uma dor insuportável.
Reencontra-se mais tarde em casa, estendido na cama, a mulher a fungar ao lado.
Aturdido, procura o fio da meada e começa a tecer as soluções possíveis. Recusa comer, recusa beber, recusa falar, só o arfar do peito indicia que Moisés sobrevive ainda. Sabe escrever o seu nome? Até o seu, excelência, se me disser quem fala ... Filho de uma grandessíssima puta! Até sei como se constrói uma britadeira, quanto mais manobrá-la! Se quisesse brita de britadeira tivesse dito e ele teria construído uma. Se a ideia era acabar com a brita à custa dos braços, obra mais demorada mas mais perfeita, porque não lhe tinham dado a ele a oportunidade de manobrar a geringonça que já vinha a caminho? Porquê?
Noite alta, a mulher adormecida ao seu lado, Moisés, entre cá e lá, agarra-se e não larga a ideia de construir a sua britadeira. Pagaria os materiais com a venda da vaca, da vaca não, porque sem vaca ficaria o neto sem leite, e, depois, o animal tinha-o tomado a meias com um sovina, da casa, não, porque onde iriam albergar-se a mulher e o neto? Mas poderia pedir emprestado e dar a casa de hipoteca ... E volta ao projecto. A partir da ideia objectiva, idealiza peça a peça. Segue-se a montagem, arranque, afinação, arranque, afinação, corrige alguns desenhos, nunca uma coisa daquelas corre bem à primeira, mas aí está ela agora a funcionar como um relógio suíço, verifica o nível de óleo no motor e a valvulina nos cubos das engrenagens. Só falta afinar as passadeiras rolantes, há uma ou outra que bloqueia a corrente e entope as chegadas às tremonhas. Espera um pouco mais, meu Deus!, espera que isto está quase!, dá-me só mais dez segundos! ...  Linda menina!,  está agora a esfrangalhar blocos de calcário como se esmagilhasse garrafas de vidro, aparece o encarregado e fica abismado, sem pio. Têm agora a  mulher e o neto comida garantida e casa assegurada, a marreta, símbolo de uma tradição, começo da indústria, da sua indústria, pendura-se à porta. 

Sobressalta-se a mulher com tantas convulsões ao lado, acende a luz, e, após alguns instantes de expectativa, de dedos cravados na cara, depara-se desesperada com Moisés finalmente sossegado.

Alhadas
19/02/1986

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