Wednesday, December 20, 2006

A GESTÃO DA ESQUERDA

Quando a União Soviética implodiu e o muro caiu, os futurólogos deram por mortas e enterradas as ideologias, e até o fim da história: a economia de mercado e a democracia representativa iriam definir as margens de uma avenida infinita por onde haveria de passar toda a Humanidade, sem alternativas para os tresmalhados O capitalismo e a democracia tinham passado para o comando exclusivo dum comboio imenso, e, se alguns recalcitrantes surpreendessem a marcha, o tempo encarregar-se-ia de os fazer capitular.

Tal tese, se não foi levada a sério por muita gente e foi consideravelmente ajustada pelos seus autores, teve o condão de colocar uma interrogação incómoda: E agora, que esquerda?

Porque se é certo que a separação das águas já tinha sido feita há muito e os amanhãs que cantam já não se ouviam, a não ser por gente de ouvido tísico, a derrocada do “socialismo real” demonstrara, sem apelo nem agravo, que, se o descomunal laboratório de ensaio social tinha ido pelos ares, o socialismo democrático (ou social-democracia) teria de rever alguns conceitos e acertar algumas posições. A “esquerda democrática” tendo-se demarcado da “esquerda totalitária” não dispensou com essa demarcação a tentação de gerir os meios de produção que considerava estratégicos para conter as ambições da direita. Para além de outros casos, são significativas para nós, pela proximidade cultural, as políticas de nacionalização realizadas em França durante o primeiro mandato de Mitterrand e a adesão dos socialistas portugueses ao “golpe-contra-golpe” que decretou a política de nacionalizações em Portugal após o 11 de Março de 1975. As nacionalizações realizadas em Portugal a partir de um contra golpe revolucionário, num curto período, não foram irreversíveis como os seus mentores e defensores supunham, mas levaram dezenas de anos a reverter. Tanta demora nas privatizações teve custos incalculáveis para a economia portuguesa e não pode se não atribuir-se a uma preponderância de uma ideologia que a si própria se considerava de esquerda. Seria?

O facto da esquerda ter aceite que a sua devoção se colasse à maior ou menor dimensão do Estado sob sua tutela, ofuscou-lhe a imagem dos valores que sempre defendeu mesmo quando a questão da apropriação dos meios de produção estava longe de render adeptos. Tal ofuscamento foi, por outro lado, parcialmente aproveitado pela direita que passou a reclamar para si também a defesa de alguns desses valores, nomeadamente o da solidariedade social, negando à esquerda o exclusivo que esta queria deter.
Esta sobreposição de marcos ideodésicos apagou algumas extremas entre a esquerda e a direita, com cada uma delas a ocupar terrenos da outra, levantando uma questão bizarra, a da pertinência em continuar a falar-se em esquerda e direita políticas, e uma resposta estranha: subitamente a esquerda e a direita tinham desaparecido por confusão de sentimentos.

A esquerda, que não pode apresentar certificados de capacidade de gestão superiores aos da direita, e vice-versa, só pode justificar o seu apego à dimensão do Estado por invocação de que é dentro das muralhas deste que melhor pode defender os seus valores. Será?

A gestão do Estado, pela esquerda ou pela direita, é sempre uma gestão condicionada por circunstâncias que geralmente não coincidem com a adopção das melhores práticas para atingir os objectivos. Porque o que constrange a adopção dessas melhores práticas são as baias políticas e a inimputabilidade da gestão dos interesses públicos. A gestão do Estado tende sempre a ser subalternizada pelos interesses próprios de quem o gere.
Na gestão privada, quando os interesses próprios se sobrepõem aos da entidade gerida, mais tarde ou mais cedo o mercado realizará a correcção conveniente. Na gestão pública, os interesses difusos dos contribuintes não accionam essa correcção ou não a accionam em tempo útil.

A gestão do Estado, nestas circunstâncias, deve resumir-se, e para a avaliação desse resumo deviam ser ouvidos os eleitores, às funções que democraticamente forem sufragadas pelo voto; no pressuposto de que desse voto resulta um maior perímetro do Estado quando prevalecerem as propostas da esquerda, a realização dos objectivos dessa mesma esquerda será sempre tanto mais eficiente quanto mais forem adoptados mecanismos de gestão que caracterizam a gestão privada.

O Estado, qualquer que seja o seu âmbito, tem sempre um peso económico importante. A dimensão de um parceiro nas relações económicas é sempre um dos argumentos mais decisivos na distribuição dos resultados dessas relações, desde que esse argumento seja utilizado de forma conveniente. Essa dimensão, contudo, mede-se pelos montantes em jogo e não pelo número de intervenientes. Dito de outro modo, o número de funcionários públicos dá do Estado uma dimensão de obesidade mas não de musculatura, sendo certo que a força decorre desta e não daquela.

A esquerda, para se afirmar com coerência, deveria pugnar pela defesa intransigente dos seus valores de sempre mas consciencializar-se de que essa defesa passa pela adopção de critérios de gestão que façam jogar as virtualidades da concorrência e da liberdade de escolha.

A recente decisão do governo português de se posicionar de forma intransigente na reformulação da lei da segurança social, não abrindo qualquer possibilidade à liberdade de escolha nem fazendo funcionar os mecanismos de gestão em concorrência, persiste numa estratégia errada que, a médio prazo, se voltará contra a própria esquerda e colocará, lamentavelmente, ainda mais em causa um dos valores por que se bate: o Estado Social.

Porque o que está em causa é a gestão de uma fortuna imensa, correspondente a 34,75% de todos os vencimentos brutos pagos pelas empresas privadas não financeiras. Se não for convenientemente gerida, e não tem sido até agora, não é só a esquerda que se desacreditará no seu principal polo de referência mas sobretudo o efeito desastroso do incumprimento dos compromissos que assume em nome do Estado perante aqueles a quem coagiu a um jogo de que se arrogou o direito de estabelecer todas as regras.

Lamentavelmente, neste caso, a esquerda dá argumentos aqueles que acusam a “ditadura da maioria” de despotismo para apontarem armas contra o próprio sistema democrático.





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