Monday, December 25, 2006

CONTO DE NATAL


Aconteceu quase na Idade Média, poucos anos depois de ter terminado aquela a que chamaram a Segunda Grande Guerra. O nosso mundo tinha passado em pouco tempo da candeia de azeite ao candeeiro de petróleo mas a electricidade ainda levaria mais algum tempo a aparecer.

Naquele tempo a quarta classe era uma coisa puxada: Em Dezembro, cada erro no ditado ja' custava caro, a aritmética para ser resolvida a tempo e horas obrigava ao domínio instantâneo da tabuada, a história pátria já ia na segunda dinastia, as linhas férreas, os sistemas hidrográfico e orográfico estavam metade descascados, e a gramática tinha entrado a bem ou a mal em todas as cabeças do grupo.

Para nem perder a rodagem nem ganhar maus hábitos, o professor entendeu encomendar para as férias meio caderno de contas e uma redacção por dia, temas livres, mas uma delas teria de ser um conto de Natal. Apesar do encargo ainda houve muito tempo para jogar à bola.

Quem não jogou à bola nem fez os trabalhos de casa foi o Silvino porque lhe entrou em casa a papeira, coisa que atrapalhou a valer porque só na data de volta à escola o rapaz e os irmãos, que eram três, estavam todos recompostos. E foi assim, de alma tranquila, que o Silvino se apresentou ao serviço.

O professor é que não entendeu que a papeira fosse impedimento, mesmo atendendo ao facto de ter atingido a casa toda, e exigiu-lhe para o dia seguinte as contas e o conto.

Voltou o Silvino a falhar. Para hilaridade da turma confessou que ou o aperto dos trabalhos ou a sopa da ceia lhe tinham desarranjado os intestinos de forma imparável, de modo que não tinha feito as contas, só tinha escrito o conto.

Não era obra acabada o conto do Silvino, a diarreia não é favorável à inspiração e o Silvino não tinha boas relações com a gramática. Mas, ainda que tosca, a última de seis ou sete frases que o Silvino tinha alinhavado nos intervalos das aflições diarreicas ficou-nos para toda a vida: era, mais ou menos assim,

... e tive de ajudar a tratar dos outros, e aquecer a água para lavar o que nasceu na noite de Natal.

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