Friday, November 17, 2006

CORTE E CULTURA


“Ainda que o liberalismo não seja o eficientismo, não será que, afinal, pese a crueza de olhar para a cultura como um bem económico, tal não se revelará mais benéfico e cuidará melhor dos bens que os acérrimos socialistas pretendem acautelar?” in
A Arte da Fuga


O Relatório da KEA sobre a Economia Cultural da Europa, citado e analisado no "Público" de ontem, em largo artigo com título sugestivo "É A Economia Estúpido!", que conclui, nomeadamente, pela maior importância do sector cultural na economia, tanto pelo seu peso relativo (1,4% do PIB, em Portugal, 3,4% em França) como pelo crescimento (12,3% mais do que o resto da economia europeia), abarca subsectores tão diversificados como o design, a publicidade, os jogos de vídeo, os museus e o teatro. O crescimento vigoroso do consumo de bens e serviços e culturais nas sociedades económicas e socialmente mais desenvolvidas, nos tempos mais recentes, é perfeitamente estendível já que nessas sociedades sobejam recursos depois de satisfeitas as necessidades materiais, mesmo as mais exigentes.

O cabaz cultural, contudo, é demasiado heterogéneo para consentir uma apreciação económica global. Parte importante dos “produtos culturais” tem mais afinidades, em termos de comportamento de mercado, com os produtos e serviços “não culturais” do que os “produtos culturais” entre si. Há produtos e serviços culturais mercantis e outros que se abrigam, necessariamente, nos subsídios ou compensações estatais.

Um dos sectores culturais, o turismo cultural, é uma variante do turismo de “massas”, e, se não nasceram gémeos, vulgarizaram-se em conjunto a partir do crescimento do turismo cultural que brotou, logo a seguir ao rescaldo do após-guerra, a partir de Itália, e, sobretudo de Veneza. O crescimento económico, entretanto observado, permitiu garantir a muitos consumidores turistas os meios e o tempo necessários à fruição da cultura de forma generalizada em quase todo o mundo.

Mas o turismo cultural ancora-se, na maior parte dos casos, na existência de produtos e serviços culturais (museus, exposições, concertos musicais, etc.) que pertencem ou são oferecidos pelos Estados. Estes produtos e serviços funcionam como infra-estruturas que suportam outras actividades económicas tributárias do turismo.

Apesar da sua passagem à condição de produto, com forte incidência nas economias de muitos países e, nomeadamente, da Europa, onde os motivos são mais abundantes, a cultura não perdeu a sua imagem apelativa junto das elites e, sobretudo das elites intelectualizadas, ou pretensamente queridas como tais. Os governos não podiam distrair-se do aproveitamento que a imagem da cultura podia emprestar à sua própria imagem dispensando-se de aproveitar os tablados por onde se veicula o discurso político que passa cada vez mais em pose de actor. E não se distraíram, independentemente do quadrante ideológico em que se inserem.

Estabeleceu-se então, por reciprocidade táctica de interesses, um “trade-off” entre agentes políticos e agentes culturais, que os constrangimentos orçamentais, mais do que as ideologias, fazem emergir.

É este “trade-off” que, em épocas de vacas magras, torna suspeito o produto cultural subsidiado aos olhos da perspectiva económica, e olhados suspeitos de ignorância crassa aqueles que arriscam colocar-se naquela perspectiva. É, então, que a discussão acerca do “corte na cultura” acontece e as ideologias afloram.

Nada que contas bem feitas não possam resolver, argumentam os neo-liberais emergentes.

As contas estão feitas: a cultura assume-se cada vez mais como factor importante, se não o mais importante, do crescimento económico, argumentam os do outro lado.

Há sempre contas mais difíceis de fazer que outras, convenhamos. Difícil, mesmo, é dispensar a intervenção do Estado na construção das infraestruturas da cultura, a começar na educação cultural, passe a redundância. Mas convem fazer contas. Sobretudo em sociedades tão avessas às aritméticas, como a nossa.

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