O texto transcrito a seguir é de autor que desconheço. Circula na Internet e foi-me remetido por um amigo. Arquivo-o aqui no caderno porque regista situações tipo que são exemplares do grau de insanidade moral atingido pela justiça, neste caso fiscal, em Portugal, que persegue os minúsculos e prescreve os grandessíssimos.
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"Ti-Maria (Maria Isabel) tem 83 anos e é uma criminosa.
O local do crime é o fogão, e assim foi durante muitos anos: vende bolo de laranja no café da zona. Sem recibo. E ainda consegue ir mais longe: usa os ovos das suas próprias galinhas. Juntamente com a filha, formam uma organização criminal. Eusébia, com 58 anos, produz uma pequena quantidade de queijo de cabra na sua própria cozinha que vende aos vizinhos a 1 euro a unidade. Um dos vizinhos, José Manuel, utiliza o antigo forno de barro que tem no quintal para cozer pão, faz uma quantidade a mais do que a que ele e a sua mulher necessitam para vender aos amigos, tentando assim complementar a pensão da reforma que recebe.
Alguns dos habitantes mais idosos da aldeia apanham cogumelos e vendem-nos ao comprador intermediário. Novamente, sem passar recibo. Por sua vez, este intermediário distribui-os em restaurantes, passa recibo mas fá-lo pelo dobro do preço que pagou por eles. Marta, proprietária do café da zona, encomendou alface ao fornecedor mas acrescentou umas ervas e folhas de alface do seu próprio quintal. E se pedíssemos uma aguardente de medronho, típica da zona, quando a garrafa oficial, selada com o imposto fiscal, estiver vazia, o seu marido iria calmamente até à garagem e voltava a encher a garrafa com o medronho caseiro do velho Tomás. Podemos chamar a isto tradição, qualidade de vida ou colorido local – o certo é que em tempos de crise, a auto-suficiência entre vizinhos, simplesmente ajuda a sobreviver.
O Alentejo é das regiões mais afectadas pela crise que de qualquer forma afectou todo o país. A agricultura tradicional está em baixo, a indústria é quase inexistente e os turistas raramente se deixam levar pela espectacular paisagem costeira da província. Os montes alentejanos perdem-se em ruínas. Quem pode vai embora, ficando apenas a população idosa a viver nas aldeias, e para a maior parte, o baixo valor que recebem de reforma é gasto em medicamentos, logo na primeira semana do mês. Inicialmente, as pessoas fazem o que sempre fizeram para tentar sobreviver de algum modo. Vendem, a pessoas que conhecem, o que eles próprios conseguem produzir. Não conseguem suportar os custos de recibos ou facturas. Para conseguir iniciar um negócio com licença, teriam de cumprir os requisitos e fazer grandes investimentos que só compensariam num negócio de maior produção.
Ao contrário de Espanha, Portugal não negociou acordos especiais para quem tem pequenos negócios. As consequências: toda a produção em pequena escala - cafés, restaurantes , lojas e padarias que tornam este país atractivo - é de facto ilegal.
Só lhes restam duas hipóteses:
- ou legalizam o seu comércio tornando-se grandes produtores
- ou continuam como fugitivos ao fisco.
Até agora e de certa forma, isto era aceitável em Portugal mas neste momento, parece que o governo descobriu os verdadeiros culpados da crise: o homem modesto e a mulher modesta como pecadores em matéria de impostos. Como resultado, as autoridades fecharam uma série de casas comerciais e mercados onde dantes eram escoadas os excedentes das parcas produções dos pequenos produtores e transformadores, que ganhavam algum dinheiro com isso, equilibrando a economia local.
Há uns meses atrás, a administração fiscal decidiu finalmente fazer algo em relação ao nível de desemprego: empregou 1.000 novos fiscais.
Como um duro golpe para a fraude fiscal organizada, a autoridade autuou recentemente uma prática comum na pequena Aldeia das Amoreiras: alguns homens tinham - como o fizeram durante décadas - produzido e vendido carvão. Os criminosos têm em média 70 anos, e os modestos rendimentos do carvão mal lhes permitia ir mais do que poucas vezes beber um medronho ou pedir uma bica. Não é benéfico acabar com os produtos locais e substituí-los por produtos industriais.
Não para o Estado que, com uma população empobrecida, não tem capacidade para pagar impostos. E não é para a saúde: não são os produtos caseiros que levam a escândalos alimentares nestes últimos anos, mas a contaminação química e microbiana da produção industrial. Apenas grandes indústrias beneficiam desta política, uma política que chega mesmo a apoiar a crise. Sendo este um país que se submete cada vez mais a depender de importações, um dia não terá como se aguentar economicamente. É a realidade, até parece que a globalização venceu: os terrenos abandonados do Alentejo foram maioritariamente arrendados a indústrias agrícolas internacionais, que usam estes terrenos para o cultivo de olival intensivo, para a produção de hortícolas em estufas e também de OGM’s (Organismos Genéticamente Modificados – Transgénicos produzidos pela multinacional americana ‘MONSANTO’ que foi autorizada pelo governo português a cultivar esses produtos internacionalmente proibidos).
Após alguns anos, os solos ficam demasiado contaminados. Em geral, os novos trabalhadores rurais temporários vêm da Tailândia, Bulgária ou Ucrânia, trabalham por pouco tempo e voltam para as suas casas antes das doenças se tornarem visíveis.
Com a pressão da Troika, o governo está a actuar contra os interesses do próprio povo. Apenas há umas semanas atrás, o Município de Lisboa mandou destruir mais uma horta comunitária num bairro carismático da cidade, a "Horta do Monte" no Bairro da Graça, onde residentes produziam legumes com sucesso, contando com a ajuda da vizinhança. Enquanto os moradores do bairro protestavam, funcionários municipais arrancaram árvores pela raiz e canteiros de flores, simplesmente para que os terrenos possam ser alugados em vez de cedidos. Mais uma vez, uma parte da auto-organização foi destruída pela crise. A maioria dos portugueses não aceita isto. No último ano e por várias vezes, cerca de 1 milhão de pessoas - o equivalente a 10% da população - protestou contra a Troika.
Muitos demonstram a sua criatividade e determinação durante a desobediência civil: quando saiu a lei que os clientes eram obrigados a solicitar factura nos restaurantes e cafés, em vez de darem o seu número de contribuinte, 10 mil pessoas deram o número do Primeiro-ministro. Rapidamente isto deixou de ser obrigatório.
Também há alguns presidentes de freguesias que não aceitam o que foi feito aos seus mercados. E assim os pequenos mercados locais de aldeia continuam mas com um nome diferente “Mostra de produtos locais”, “Mercado de Trocas”. Se alguém quer dar alguma coisa e de seguida alguém põe dinheiro na caixa dos donativos, bem... quem irá impedi-lo?!
Existe um ditado fascinante: “quando a lei é injusta, a resistência é um dever”. É este o caso. Não são os pequenos produtores que estão errados mas sim as autoridades e quem toma as decisões - tanto moral como estrategicamente, porque:
- é moralmente injustificável negar a sobrevivência diária dos idosos nas aldeias.
- é estrategicamente estúpido…porque leva ao extermínio destes velhos, de forma encapotada.
Um tesouro raro está a ser destruído: uma região que ainda tem conhecimentos e métodos tradicionais, e comunidades com coesão social suficiente para partilhar e para se ajudarem entre si, estão a ser destruídas.
Uma economia difundida globalmente e à prova da crise é o que aqui acaba por ser criminalizado, ou seja, a subsistência rural e regional, o poder de auto-organização de pessoas que se ajudam mutuamente, que tentam sustentar-se com o que cresce à sua volta.
Ao enfrentar a crise, não existem razões para não avançarmos juntos e nos reunirmos novamente. Existem sim, todos os motivos para nos ajudarmos mutuamente, para escolhermos a auto-suficiência e o espírito comunitário rural. Podemos ajudar a suavizar a crise, pelo menos por agora – se não, no mínimo oferecemos um elemento chave para a resolver.
Quanto mais incertos são os sistemas de abastecimento da economia global, mais necessária é a subsistência regional.
Assim sendo, pedimos a todos os viajantes e conhecedores: peçam pratos caseiros e regionais nos restaurantes. Deixem que as omeletes sejam feitas por ovos que não foram carimbados nem selados. Peçam saladas das suas hortas. Mesmo em festas ou cerimónias, escolham os produtos de fabrico próprio, caseiros. Ao entrar numa loja ou café, anunciem de imediato que não vão pedir recibos ou facturas.
Talvez em breve, os proprietários dos restaurantes se juntem a uma mudança local. Talvez em breve, um funcionário de uma loja será o primeiro a aperceber-se que a caixa de donativos na entrada traz mais lucro do que o registo obrigatório das vendas recentemente imposto. Talvez em breve, apareçam as primeiras moedas regionais como um método de contornar as leis fiscais."
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Comentários anexos ao e-mail transcrito colocados na caixa de comentários
6 comments:
Comentários anexos ao e-mail que transcrevi.
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Impressionante L. É demolidor, mas pergunto: foi a troika que conduziu a esta situação? Ou, honestamente, não será isto o resultante de décadas de governos desonestos e que agora, por actuações irracionais resultantes de contexto de emergência, este governo está a levar com o odioso todo?
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De facto, ocorreu-me raciocínio semelhante. O artigo mete demasiado latim para tratar de duas coisas muito simples.
-a primeira, os excessos da ASAE, que nada têm a ver com a Troyca.
-a segunda, a estupidez fiscal, que obriga agora a que qualquer produtor declare o produtos das suas vendas, 50 quilos de milho, uma dúzia de queijos, 20 quilos de medronho. Francamente, que é que a Troyca tem a ver com isto?
Claro que, enquanto houver um inimigo externo, cá dentro fica tudo justificado. Por mim, estou mais do que farto dessa lenga-lenga.
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Quanto a mim a questão de base que tem perpassado por vários governos e que conduz a todas estas actuações irracionais da administração pública tem que ver com a falta de visão estratégica que permita centrar as suas actuações em desígnios de crescimento económico. Com troika ou sem troika se se persistir neste rumo de navegação à vista, volta que volta aterraremos num banco de areia e ficamos lá parados, ou mesmo numa rocha que nos levará ao fundo.
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A questão é que isto não é navegação à vista, é mesmo navegação sem vista.
E se fosse só no caso relatado, bem que estaríamos. Por outro lado, e não servindo de desculpa, veja-se o alarido que vai por aí quanto ao combate à economia informal ou paralela...Então, deve combater-se ou não? E até que ponto ou até onde?
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Bem observado, A.
Quanto a combater-se a economia paralela, penso que não deveria haver discordância entre gente de boa fé: deve combater-se.
E, então os minúsculos produtores agrícolas ou pescadores, os pequenos artesãos, os pequenos qualquer coisa?, perguntas, e perguntas bem. E até onde é que pode considerar-se pequeno ou minúsculo? Qualquer que seja o mínimo limite máximo, a esperteza nacional é bem capaz de construir um conglomerado de centenas ou milhares de células pequeno produtoras.
Para simplificação do assunto, considero que é de todo o interesse comunitário incentivar o regresso do hábito das pequenas produções hortícolas e frutícolas. Isentava de qualquer imposto todas os produtores individuais, aqueles que produzem com o seu esforço e só esse, bens para consumo próprio ou venda local a terceiros em quantidades que não excedessem o dobro das quantidades por eles individualmente produzidas.
Quanto aos artesãos, aplicaria as mesmas regras do trabalho exclusivo do próprio e venda exclusivamente local.
Todas as outras actividades, independentemente da sua dimensão, devem ser tributadas.
Salvo melhor opinião.
Há um erro óbvio quando escrevo "vendas ... em quantidades que não excedessem o dobro das quantidades por eles individualmente produzidas". Ninguém pode vender o dobro daquilo que produz a menos que seja intermediário.
Considere-se apenas desta frase" Isentava de qualquer imposto todas os produtores individuais, aqueles que produzem com o seu esforço e só esse, bens para consumo próprio ou venda local".
L., escreveu
Parece óbvio que ninguém está em desacordo relativamente ao combate à economia paralela e têm sido feitos reconhecidos progressos nesse domínio, mas como todos os outros, esse objectivo não pode ser cego.
Há dias li, já não me lembro onde, os procedimentos (e despesas) necessários para ter uma actividade aberta.e são claramente impeditivos da pequena economia de subsistência como é o caso em questão.
Aqui não precisamos de inventar muito, outros já o terão feito com bons resultados. Veja-se, por exemplo, o que fazem os países do norte da Europa.
A solução não passa, certamente, por empolar serviços de fiscalização que na ânsia de justificar a sua existência constituem-se como verdadeiros obstáculos ao crescimento.
Esta nossa conversa fez-me lembrar um artigo do JC das Neves que vos envio em anexo: "A asfixia das rendas". É dela que temos que arranjar forma de nos livrar.
O artigo de J C das Neves cit no comentário anterior está aqui
http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=1989093&seccao=Jo%E3o+C%E9sar+das+Neves&tag=Opini%E3o+-+Em+Foco&page=1
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