Sunday, November 01, 2009

CONVERSAS AO ALMOÇO

- E o Caim, o que é que vocês pensam do Caim?
- É uma anedota bem contada.
- Não é nada uma anedota. Pode não ser um grande livro, um livro à altura de outros de Saramago, mas chama a atenção das pessoas para relatos bíblicos que não devem ser ignorados.
- Mas que são conhecidos desde que a Bíblia foi traduzida por Lutero. Até aí, a Bíblia não era, segundo a Igreja, leitura recomendável para os fiéis. A mensagem bíblica tinha de ser filtrada pelos sacerdotes. Já lá vão muitos séculos desde então, e há muito que a interpretação literal do Antigo Testamento deixou de fazer sentido para a Igreja Católica. Sobram, é verdade, ainda alguns ultra-ortodoxos que persistem em acreditar que a humanidade começou mesmo com Adão e Eva, há cerca de 6 mil anos, mas ninguém os leva a sério a não ser eles próprios. Mesmo os criacionistas evoluíram para o Intelligent design, uma teologia que se sustenta das lacunas da teoria da evolução e das controvérsias que essas lacunas suscitam e é, deste modo, uma doutrina construída pela negativa sem qualquer consistência científica.
- Em todo o caso o livro de Saramago desperta as pessoas para factos que elas ignoravam.
- Não creio que haja assim tantas pessoas que se interessem minimamente por estas questões que ignorem pelo menos algumas das mais conhecidas estórias bíblicas. Aliás, muitos autores parodiaram algumas dessas histórias em prosa e verso. Mas esmagadoramente muitos mais se inspiraram nelas para comporem obras de arte que são símbolos grandiosos da civilização ocidental. Saramago com este livro não acrescentou nada. Suscitou apenas polémica.
- O que, mesmo assim, só por isso, vale a pena. Vale sempre a pena despertar as consciências.
- Nem sempre. Quando se suscita a polémica num sentido esgotado e passado retira-se a atenção das pessoas das questões actuais. Que interesse tem a discussão de estórias milenares escritas num determinado contexto, hoje reconhecidamente metafóricas na sua maior parte, quando a Igreja, hoje, continua a fechar os olhos a tanta situação de ignomínia no seu seio em flagrante contradição com a sua doutrina?
- Mas negas a Saramago o direito de escrever sobre o que quiser?
- Claro que não. Nem ninguém me pode negar o direito de considerar Caim um livro menor. Escrito com uma intenção provocatória gratuita. Contrariamente aos fundamentalistas islâmicos que bebem no Corão a inspiração para os seus actos mais satânicos, interpretando à letra muitos dos seus versículos, não penso que o Antigo Testamento sustente as acções imorais ou criminosas de qualquer seita. A Igreja merece muitas críticas, mas também o reconhecimento de ter moldado, para o bem e para o mal, a civilização a que pertencemos. Estórias como as de Caim e Abel, hoje, só podem provocar um salutar sorriso a quem se queira minimamente intectualmente equilibrado.

3 comments:

António said...

"A Igreja merece muitas críticas, mas também o reconhecimento de ter moldado, para o bem e para o mal, a civilização a que pertencemos. "

Para quem não se tenha apercebido que sem Cristianismo e as forças que gerou, hoje seríamos uma espécie de indianos ou pior...

Anonymous said...

offtopic
Boa noite. Se achar pertinente divulgue este vídeo:

http://www.youtube.com/watch?v=iSJ31IBCvj0

obrigado pela atenção.

rui fonseca said...

"hoje seríamos uma espécie de indianos ou pior..."

Depende dos indianos e depende dos portugueses que considerar.

Há indianos e indianos, não acha?
E chineses, e russos, e suíços, e etc.

Do ponto de vista religioso, que eu saiba, nunca a religião hindu motivou alguém para as carnificinas que as chamadas religiões monoteístas causaram.

Sejamos lúcidos: as religiões monoteístas estiveram, e continuam a estar, na origem de grande parte das guerras que afligiram a humanidade.

Quanto ao progresso social, cultural e económico, o Japão, que nunca foi cristão, por exemplo, atingiu um nível de desenvolvimento invejável para muitos países ocidentais. Nos tempos que correm, a China concorre ao lugar de superpotência. Mesmo na Índia observam-se avanços espectaculares em todos os domínios. Há ainda muita desigualdade social? Pois há.
Lamentavelmente, também continuamos a ter alguma por cá.

O equilíbrio na análise destas coisas é fundamental para não cairmos em contradições.