Jacques Sapir não é um liberal, bem pelo contrário. Da entrevista que concedeu ao Público, a ideia mais subversiva, mas muito longe de ser original, resume-se na sua afirmação de que no mundo actual o comércio livre não é sustentável ( Sérgio Aníbal/Público). E não é sustentável, argumenta Sapir, e muitos liberais dia-sim-dia-não concordarão com ele, porque a China aumenta a produtividade mas não aumenta de modo equivalente os salários e apoios sociais aos trabalhadores.
...
A economia mundial já está a sair da crise?
A crise não acabou. Temos uma retoma limitada ligada aos planos de estímulo lançados pelos governos e aos elevados lucros conseguidos pelo sector bancário nos dois últimos trimestres. No entanto, apesar destes lucros, os bancos ainda estão numa situação extremamente difícil. Na segunda metade deste ano, os lucros já não serão tão gloriosos e certamente que não o serão no início de 2010.
Na Europa ou nos EUA?
Nos dois lados, mas provavelmente de uma forma mais acentuada na Europa.
Mas os indicadores económicos, como o consumo, dão sinais positivos...
O consumo das famílias vai manter-se deprimido durante este Inverno e no resto do próximo ano e a recuperação vai ser muito demorada, mesmo no melhor dos cenários, ou seja, sem uma nova crise. E ela pode acontecer a qualquer momento no próximo ano, seja no mercado de matérias-primas ou no mercado de obrigações norte-americanas. Porque há bolhas nos mercados e, como sabemos, elas normalmente explodem.
Essas bolhas são culpa dos bancos centrais?
Não, as políticas de curto prazo seguidas em resposta à crise pelos bancos centrais foram adequadas. Não se poderia fazer outra coisa. O problema está no que não foi feito. É que os bancos foram salvos pelos governos e pelos bancos centrais, mas não mudaram as suas políticas. Reduziram o crédito concedido e estão a investir o dinheiro dado pelo Estado e emprestado pelos bancos centrais em especulação. Não é culpa dos bancos centrais, é um problema no interior do sistema financeiro.
Mas é possível mudar o comportamento dos bancos?
A única política capaz de resolver isto seria a introdução de um maior controlo do sector bancário pelo Estado. Seja através da nacionalização, seja através da nomeação de uma espécie de supervisor. É um sistema que foi usado nos EUA e também em França durante os anos 30. A propriedade continua privada, mas nomeia-se uma pessoa com poderes efectivos para guiarem a política dos bancos.
Como uma golden-share?
Não é bem, é mais a criação de um ditador. Nos EUA, chama-se "czar" a esta pessoa. Actualmente, já temos nos EUA o czar do sector automóvel, após a falência da General Motors. Era muito importante para garantir que a política no sector bancário muda.
Até agora, a mudança mais falada tem a ver com os sistemas de remuneração. Isso é assim tão importante?Pode ser importante. E não é uma questão de saber se estão a ganhar muito ou pouco dinheiro, é uma questão de incentivos: um banqueiro deve ser prudente. Mas mudar apenas o sistema remuneratório não resolve nada. São necessárias outras mudanças. É preciso regressar à divisão entre bancos de investimento e de crédito. É preciso regular o sistema bancário sombra. E é preciso regular o acesso a determinados mercados. Actualmente, temos muita especulação. No petróleo, vamos de um valor de 35 dólares até 187 dólares por barril, o que está relacionado com a entrada de especuladores financeiros nestes mercados. Os mercados de matérias-primas têm de ser limitados aos operadores que têm efectivamente interesse em comprar ou vender esses produtos.
Tem sido um defensor do proteccionismo, uma ideia que é a oposta da defendida pela maior parte dos responsáveis políticos nos seus discursos...
É verdade. Acho que esse é um enorme erro feito por vários governos. Actualmente, o comércio livre não é sustentável.
Porquê?
Porque é livre mas não é justo. Em vários países, há uma grande disparidade entre a produtividade e o nível dos salários, a proteccção social e as condições ambientais. Nos últimos 15 anos, assistimos a um aumento muito forte da produtividade em vários países asiáticos e na Europa de Leste, mas os salários e a protecção social não subiram da mesma forma. Estou convencido que o proteccionismo vai surgir de uma forma ou de outra. O que é importante saber é como é que isso será feito. Ou o fazemos de uma forma desordenada, em que cada um trata de si próprio, ou conseguimos chegar a um acordo entre países.
O que defende é que os EUA e a Europa limitem a entrada de produtos chineses?
Não a entrada. Não apoio a ideia de introdução de quotas. O que precisamos é de tarifas. A produtividade chinesa está entre 30 e 40 por cento da produtividade da Europa Ocidental, mas os salários são dez vezes mais baixos. E isto é um problema. Se os salários na China subirem, as tarifas podem ser retiradas. Mas até que tal aconteça - e demorará sempre algum tempo - temos de proteger as famílias.
As famílias europeias e norte-americanas?
Sim. E também temos de proteger as europeias das norte-americanas. Como é que podemos ter comércio livre quando um país pode desvalorizar a sua divisa em 20 por cento. Isto é exactamente o que os EUA estão a fazer.
Com políticas proteccionistas não se está a limitar o crescimento nos países emergentes e subdesenvolvidos?
Não. O crescimento à custa do resto do mundo foi uma escolha das autoridades chinesas. Não é uma obrigação. O mercado interno chinês tem o potencial para ser o maior do mundo e o Governo pode fazer muita coisa para garantir isso.
E África?
O problema em África é que o comércio livre diminuiu a sua quota no mercado internacional. É completamente falso dizer-se que os países mais pobres estão a ganhar com o comércio livre. É exactamente o contrário.
Não o preocupa a actual escalada de défices públicos?
Sim, há um problema de dívida, mas de dívida global. As pessoas só falam da dívida pública e não falam da dívida dos particulares e das empresas. A prazo, se queremos tornar o sistema sustentável, tem de se voltar a estabelecer uma ligação entre a produtividade e os salários e contrariar a tendência de aumento da desigualdade. Foi assim que a dívida aumentou, porque as famílias de menor rendimento vêem-se forçadas a endividar-se.
E a curto prazo?
A economia mundial já está a sair da crise?
A crise não acabou. Temos uma retoma limitada ligada aos planos de estímulo lançados pelos governos e aos elevados lucros conseguidos pelo sector bancário nos dois últimos trimestres. No entanto, apesar destes lucros, os bancos ainda estão numa situação extremamente difícil. Na segunda metade deste ano, os lucros já não serão tão gloriosos e certamente que não o serão no início de 2010.
Na Europa ou nos EUA?
Nos dois lados, mas provavelmente de uma forma mais acentuada na Europa.
Mas os indicadores económicos, como o consumo, dão sinais positivos...
O consumo das famílias vai manter-se deprimido durante este Inverno e no resto do próximo ano e a recuperação vai ser muito demorada, mesmo no melhor dos cenários, ou seja, sem uma nova crise. E ela pode acontecer a qualquer momento no próximo ano, seja no mercado de matérias-primas ou no mercado de obrigações norte-americanas. Porque há bolhas nos mercados e, como sabemos, elas normalmente explodem.
Essas bolhas são culpa dos bancos centrais?
Não, as políticas de curto prazo seguidas em resposta à crise pelos bancos centrais foram adequadas. Não se poderia fazer outra coisa. O problema está no que não foi feito. É que os bancos foram salvos pelos governos e pelos bancos centrais, mas não mudaram as suas políticas. Reduziram o crédito concedido e estão a investir o dinheiro dado pelo Estado e emprestado pelos bancos centrais em especulação. Não é culpa dos bancos centrais, é um problema no interior do sistema financeiro.
Mas é possível mudar o comportamento dos bancos?
A única política capaz de resolver isto seria a introdução de um maior controlo do sector bancário pelo Estado. Seja através da nacionalização, seja através da nomeação de uma espécie de supervisor. É um sistema que foi usado nos EUA e também em França durante os anos 30. A propriedade continua privada, mas nomeia-se uma pessoa com poderes efectivos para guiarem a política dos bancos.
Como uma golden-share?
Não é bem, é mais a criação de um ditador. Nos EUA, chama-se "czar" a esta pessoa. Actualmente, já temos nos EUA o czar do sector automóvel, após a falência da General Motors. Era muito importante para garantir que a política no sector bancário muda.
Até agora, a mudança mais falada tem a ver com os sistemas de remuneração. Isso é assim tão importante?Pode ser importante. E não é uma questão de saber se estão a ganhar muito ou pouco dinheiro, é uma questão de incentivos: um banqueiro deve ser prudente. Mas mudar apenas o sistema remuneratório não resolve nada. São necessárias outras mudanças. É preciso regressar à divisão entre bancos de investimento e de crédito. É preciso regular o sistema bancário sombra. E é preciso regular o acesso a determinados mercados. Actualmente, temos muita especulação. No petróleo, vamos de um valor de 35 dólares até 187 dólares por barril, o que está relacionado com a entrada de especuladores financeiros nestes mercados. Os mercados de matérias-primas têm de ser limitados aos operadores que têm efectivamente interesse em comprar ou vender esses produtos.
Tem sido um defensor do proteccionismo, uma ideia que é a oposta da defendida pela maior parte dos responsáveis políticos nos seus discursos...
É verdade. Acho que esse é um enorme erro feito por vários governos. Actualmente, o comércio livre não é sustentável.
Porquê?
Porque é livre mas não é justo. Em vários países, há uma grande disparidade entre a produtividade e o nível dos salários, a proteccção social e as condições ambientais. Nos últimos 15 anos, assistimos a um aumento muito forte da produtividade em vários países asiáticos e na Europa de Leste, mas os salários e a protecção social não subiram da mesma forma. Estou convencido que o proteccionismo vai surgir de uma forma ou de outra. O que é importante saber é como é que isso será feito. Ou o fazemos de uma forma desordenada, em que cada um trata de si próprio, ou conseguimos chegar a um acordo entre países.
O que defende é que os EUA e a Europa limitem a entrada de produtos chineses?
Não a entrada. Não apoio a ideia de introdução de quotas. O que precisamos é de tarifas. A produtividade chinesa está entre 30 e 40 por cento da produtividade da Europa Ocidental, mas os salários são dez vezes mais baixos. E isto é um problema. Se os salários na China subirem, as tarifas podem ser retiradas. Mas até que tal aconteça - e demorará sempre algum tempo - temos de proteger as famílias.
As famílias europeias e norte-americanas?
Sim. E também temos de proteger as europeias das norte-americanas. Como é que podemos ter comércio livre quando um país pode desvalorizar a sua divisa em 20 por cento. Isto é exactamente o que os EUA estão a fazer.
Com políticas proteccionistas não se está a limitar o crescimento nos países emergentes e subdesenvolvidos?
Não. O crescimento à custa do resto do mundo foi uma escolha das autoridades chinesas. Não é uma obrigação. O mercado interno chinês tem o potencial para ser o maior do mundo e o Governo pode fazer muita coisa para garantir isso.
E África?
O problema em África é que o comércio livre diminuiu a sua quota no mercado internacional. É completamente falso dizer-se que os países mais pobres estão a ganhar com o comércio livre. É exactamente o contrário.
Não o preocupa a actual escalada de défices públicos?
Sim, há um problema de dívida, mas de dívida global. As pessoas só falam da dívida pública e não falam da dívida dos particulares e das empresas. A prazo, se queremos tornar o sistema sustentável, tem de se voltar a estabelecer uma ligação entre a produtividade e os salários e contrariar a tendência de aumento da desigualdade. Foi assim que a dívida aumentou, porque as famílias de menor rendimento vêem-se forçadas a endividar-se.
E a curto prazo?
A única forma de estabilizar a dívida global, sem afectar o consumo, é permitir que os bancos centrais financiem, a taxas de juro baixas, os orçamentos dos Estados. E que os Estados absorvam parte da dívida de particulares e empresas.
Não teríamos um incentivo perigoso ao despesismo?
Claro que esse financiamento não podia ser usado em despesa corrente, mas apenas em investimento e nos planos de estímulo económico. Agora os bancos centrais emprestam aos bancos comerciais a taxas de juro próximas de zero, enquanto os governos têm de pedir dinheiro emprestado a taxas superiores a três por cento. Este sistema garante ao sector bancário uma renda fácil, em detrimento do contribuinte. Ou mudamos o sistema ou enfrentamos uma nova crise em resultado da aplicação de medidas orçamentais extremamente restritivas. Provavelmente, uma crise pior do que a que já tivemos.
Não teríamos um incentivo perigoso ao despesismo?
Claro que esse financiamento não podia ser usado em despesa corrente, mas apenas em investimento e nos planos de estímulo económico. Agora os bancos centrais emprestam aos bancos comerciais a taxas de juro próximas de zero, enquanto os governos têm de pedir dinheiro emprestado a taxas superiores a três por cento. Este sistema garante ao sector bancário uma renda fácil, em detrimento do contribuinte. Ou mudamos o sistema ou enfrentamos uma nova crise em resultado da aplicação de medidas orçamentais extremamente restritivas. Provavelmente, uma crise pior do que a que já tivemos.
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