Wednesday, October 18, 2017

POR ENTRE OS PINGOS DE SANGUE


Já foi dito e demonstrado que o actual primeiro-ministro é mui hábil manobrador. 
Mas não há habilidade que chegue se o espaço de manobra se estreita e deixa o manobrador sem margem de manobra. 
Depois da tragédia de Pedrogão Grande e arredores percebeu-se muito nitidamente que, para além das circunstâncias naturais excepcionais, a protecção civil do território estava entregue a um conjunto de gente geralmente incompetente. A ministra da Administração Interna, soube-se esta manhã, pediu a demissão, mas o primeiro-ministro sempre confiante no seu jeito e na boa estrela procurou safar-se entre a chuva de sangue que caiu naquela noite de um Junho normalmente tórrido. E não aceitou o pedido de demissão da ministra obrigando-a a desempenhar um papel que ela não queria continuar a exercer.

Terá o ministro da Defesa, embrulhado em discursos contraditórios no caso de Tancos, também visto recusado pedido de demissão que o mais elementar sentido de Estado impunha? Não sabemos, mas as dúvidas levantam-se e não se dissipam porque o primeiro-ministro insiste em refugiar-se atrás das atribuições do Ministério Público ignorando o óbvio: independentemente da identificação dos larápios e eventuais coniventes, em Tancos havia, e continua a haver, cadeias de comando com responsabilidades fixadas que já devem ter identificado, mas não dizem, quem não estava onde devia ter estado e porquê. Não dizem esperando que o tempo passe e a memória colectiva se esqueça. *

Ontem, não tão inesperadamente quanto as memórias curtas terão sido levadas a  supor, o Presidente da República, interpretando o espanto e o desespero dos portugueses foi claro e disse e fez o que se impunha, impedindo que a habilidade do primeiro-ministro pretendesse continuar a escapar intocado entre os pingos grossos de uma segunda chuva de sangue. Ordenou-lhe que revisse os quadros e os esquemas e apresentasse desculpas aos portugueses, assumindo, reconhecendo, que, entre outros,  os serviços de protecção civil tinham provado que não tinham protegido o que deviam ter protegido.

E agora, sr. primeiro-ministro, como se despe a soberba e veste a dignidade de obedecer e pedir desculpas? Logo, veremos.
E agora, srª Catarina Martins, como sustenta a continuidade deste Governo, que circunstâncias inevitáveis obrigaram a tergiversar quando prosseguia uma caminhada de sucesso que parecia imparável? Não tem alternativa, tem de garantir-lhe o voto de confiança que os comunistas não garantirão nem negarão.
Ou caem todos sem se saber quem se levanta.
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* Segundo notícia de última hora, "Armamento roubado em Tancos foi recuperado pela Polícia Judiciária Militar O material de guerra foi encontrado esta noite na região da Chamusca."

A polícia fez o que lhe competia. Falta ao Governo fazer o que lhe compete. Há responsabilidades políticas a que não pode esquivar-se. Caso contrário, para que serve o Ministério da Defesa?

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Correl. -
O PINHAL DO REI

Catedral verde e sussurrante, aonde
A luz se ameiga e se esconde
E aonde, ecoando a cantar,
Se alonga e se prolonga a longa voz do mar:
Ditoso o «Lavrador» que a seu contento
Por suas mãos semeou este jardim;
Ditoso o Poeta que lançou ao vento
Esta canção sem fim ...

Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
Que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
Rei Dom Dinis, bom poeta e mau marido,
Lá vêm as velidas bailar e cantar.

Encantado jardim da minha infância,
Aonde a minh'alma aprendeu
A música do Longe e o ritmo da distância,
Que a tua voz marítima lhe deu;
Místico órgão cujo além se esfuma
No além do Oceano, e onde a maresia
Ameiga e dissolve em bruma,
E em penumbras de nave, a luz do dia.
Por este fundos claustros gemem
Os ais do Velho do Restelo ...
Mas tu debruças-te no mar e, ao vê-lo,
Teus velhos troncos de saudosos fremem .

Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
Que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal louvado,
São as caravelas, teu corpo cortado,
É lo verde pino no mar a boiar.

Pinhal de heróicas árvores tão belas,
Foi do teu corpo e da tua alma também
Que nasceram as nossas caravelas
Ansiosas de todo o Além;
Foste tu que lhes deste a tua carne em flor
E sobre os mares andaste navegando,
Rodeando a terra e olhando os novos astros,
Ó gótico Pinhal navegador,
Em naus erguida levando
Tua alma em flor na ponta alta dos mastros!...

Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
Que vedes no mar?
Ai flores, ai flores do Pinhal florido,
Que grande saudade, que longo gemido
Ondeia nos rames, suspira no ar!
Na sussurrante e verde catedral
Oiço rezar a alma de Portugal:
Ela aí vem, dorida, e nos seus olhos
Sonâmbulos de surda ansiedade,
No roxo da tardinha,
Abre a flor da Saudade;
Ela aí vem, sozinha,
Dorida do naufrágio e dos escolhos,
Viúva de seus bens
E pálida de amor,
Arribada de todos os aléns
De este mundo de dor;
Ela aí vem, sozinha,
E reza a ladainha
Na sussurante catedral aonde
Toda se espalha e esconde,
E aonde, ecoando a cantar,
Se alonga e se prolonga a longa voz do mar…


In  "Ilhas de Bruma", de Afonso Lopes Vieira, (1878-1946)


 D. Dinis

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.

Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
                                                                                   

                                                                                      Fernando Pessoa

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