Sunday, September 28, 2014

VINDIMA

Lá em casa já não há adega, foram-se as cepas atrás do seu dono. Há umas dezenas de anos atràs não havia na aldeia quem não enchesse as suas pipas. Se o verão tivesse apertado, ficava a uva mais doce, a produção minguada, e as falhas de volume baptizavam-se a partir da fonte. Para o mosto desdobrar, argumentava-se, porque quando o baumé é alto demais a fermentação pode retardar-se e o mosto azedar.
- Cantigas, oh! Zé!, no meu não caiu pingo de água, salvo a que veio do céu!
Diziam todos o mesmo, o mesmo é dizer que todos faltavam à verdade. Se estivessem assegurados os 12 da ordem, o vinho aguentava o ano e o pessoal aguentava-se bem com ele. E não havia quem não se gabasse de ter na sua adega a melhor pinga do país.

A vindima era uma festa ao fim de uma actividade penosa e desprezada que empurrava a sair os que encontravam saída. Durante o ano já havia falta de gente capaz para as sementeiras e as colheitas, para descavar, podar, impar, enxertar, arrendar, sulfatar e enxofrar as vinhas. Mas para as vindimas havia sempre gente disponível, menos para alombar com os cestos de posseiro, de verga, até às dornas. Como cantar e comer não calham ao mesmo tempo, na vindima não se importava o patrão que o pessoal levasse o dia a pôr o rol de novidades em dia em vez de lhe comer os cachos. E se alguém arrancava com uma cantilena qualquer, tanto melhor porque se safavam as uvas das goelas dos vindimadores e a vindima ganhava ritmo.

Hoje já não há vinhedos para aqueles sítios partidos em parcelas demasiado pequenas para poderem sustentar alguém. Onde havia um jardim feito de muitos canteiros conquistaram as silvas e as primas delas o seu reino. Um ou outro vai mantendo uns pés de vinha para beber água-pé pelo São Martinho, entreter-se, e não perder a prática, mas é espécie em vias de extinção.

Há dias,  orgulhava-se, num programa televisivo, um vinhateiro de Azeitão da sua vindima mecânica. Fiquei espantado com a invenção, incapaz de imaginar como funcionaria a engenhoca.  Deu-se depois o caso de termos sido convidados para almoçar em casa de um casal amigo, residente para aquelas bandas. E lá fomos para ver aquilo que, à distância, me pareceu pertencer à família dos artópodes diápodes. Não estava o engenho em casa, tinha saído alugada para vindimar numa propriedade vizinha. Mas vimos o modelo em miniatura e ouvimos a explicação do investidor. Que, animado coma evolução da espécie, nos disse que logo que a vindima terminasse e o rebanho de ovelhas desse conta do que sobrasse em folhas e bagos, entrava outra máquina em acção para a poda. A máquina vindimadeira tinha a vantagem de permitir fazer em três dias o que manualmente duraria duas semanas, permitindo a escolha do período ideal da vindima com maior precisão. Além de que retirava logo os bagos secos e os apodrecidos, tudo isto contribuindo para a obtenção de melhor qualidade.

- Assim, um dia destes, não vai ser preciso gente sequer para ver a vinha.
- Gente? Que gente? Hoje já não há gente para estas coisas, senhor. Só mandando vir de fora, da Ucrânia, sei lá. E para ver a vinha estou cá eu.
- Mas se o homem é dispensável aqui e, um dia destes, em todo o lado, quem é que lhe vai beber o
vinho e o do seu vizinho?
- Haverá sempre quem beba do que é bom.
- E os outros? Os que não terão trabalho?
- O trabalho nunca acaba. O que acontece é que há cada vez mais gente que não quer trabalhar.
- Mas também haverá sempre quem queira. É um instinto da condição humana.
- De alguma. Só de alguma.


1 comment:

Unknown said...

Quando prometem muito e não apresentam o que vamos fazer com as pessoas que não são precisas para trabalhar, é porque andam a discutir a quadratura do circulo.
Não vai haver trabanho para todos todo o tempo; a menos que se enverede pelo modelo de "crescimento" dos judeus na faixa de Gaza, os ingleses/franceses na Libia, os Ucranianos ou Sirios.