Thursday, May 01, 2014

LEVITAÇÕES

Se te acontecesse dar de chofre com um tipo dado como morto há uma data de anos atrás, o que é que pensavas? Também pensei nisso depois. Que é um tipo bastante  parecido, um sósia ou um irmão gémeo idêntico. É impressionante a prodigiosa diversidade de uma infinidade de indivíduos nascidos desde o começo do mundo, uma vez por outra aparecem uns exemplares que parecem cópias exactas de outros. Mas, assim, de repente, quem se lembra que pode ser sósia ou gémeo, se a figura que vemos é tal e qual a que conhecemos bem e sabemos que há muito tempo foi dado por morto?
Tremi toda.
E perguntei-me: Estou a sonhar ou também já passei para o lado de lá?
Fui ao shopping fazer compras, ia a meter uma garrafa de azeite no carrinho, e que vejo eu de lado, a uns dez metros de mim, à espera de ser atendido no talho? Ia-me caindo a garrafa do azeite ao chão, distraída, quase errei o  carro das compras, ao ver um grandalhão de barba e cabelos compridos, podia ser um orc mas, garantidamente, disse para comigo, aquele gajo ou é o Vicente ou o diabo por ele. Na surra,  fui empurrando o carrinho, e quanto mais perto me encontrava do bicho mais se confirmavam as minhas suspeitas, mas foi só quando chegou a vez dele, e o ouvi encomendar um quilo de carne do lombo, que ficaria sem grandes dúvidas de quem ele era se não se desse o caso de o Vicente ter sido dado como morto uns dez anos atrás e, ainda para ofuscar mais a nitidez da imagem, o Vicente que eu conhecera não ter massa para comprar umas asas de frango quanto mais um quilo de carne de vaca, e logo do lombo.
Ah! Este Vicente não só se alimentava agora do bom e do melhor como vestia roupa de marca. Como há dez anos atrás já tinha cara de cinquenta quando ainda não tinha chegado aos quarenta, a expressão dos olhos e do rosto, mas sobretudo a voz, tinham-se mantido inalterados. Teria o Vicente estado este tempo todo em câmara frigorífica, uma hipótese que na devida altura ninguém se tinha lembrado de averiguar? Raios me partam se não ponho isto em pratos limpos. Desculpe-me a pergunta: Tu és o Vicente, não és?
Meteu demoradamente o lombo no cesto, todos os gestos do Vicente eram demorados, encarou-me com aquele olhar parado e inocente que lhe conhecíamos tão bem, piscou os olhos, sou, e tu és a Magda. Pois sou.
E calou-se, outra vez o olhar parado, a vaguear entre mim e o lombo. Fiquei varada, sem fala.
Que é que tens feito estes anos todos, arrisquei a perguntar depois de engolir em seco outras perguntas tolas, do género, mas tu não morreste?

O Vicente era, ou é, agora já nem sei se era ou se é, um indolente que trabalhava no Instituto, quando eu entrei já ele por lá andava. A primeira vez que o vi, tinha entrado há dois ou três dias no Instituto, apanhei o primeiro susto com a aparição do Vicente à minha frente. Ia a sair da sala onde trabalhava quando vejo ao fundo do corredor, um corredor frio, até no verão, comprido e alto, típico dos edifícios do estado do tempo em que as ideologias se exibiam em arquitecturas pesadas, cinzento, escuro, iluminado apenas pelas duas janelas abertas em cada topo e a luz eléctrica de meia dúzia de lâmpadas frouxas penduradas do teto, a uma distância de sei lá, de trinta metros, não menos, um grandalhão de roupas largas, recortado pela luz que entrava pela janela atrás dele. Caminhava aos saltos, abrindo e fechando os braços e urrando Uh! Uh! Uh!  à cadência de cada salto em frente. Medonho! Recuei imediatamente, e fechei a porta com a força de todo o medo que se apoderou de mim perante aquela visão sinistra. 
Trabalhávamos três na mesma sala, duas mulheres e um homem. Mas ele tinha tirado férias e ela tinha saído da sala poucos minutos antes. Sozinha e  apavorada, como não havia chave na porta, empurrei a secretária para bloquear a entrada não fosse a bisarma, que  continuava a urrar no corredor, entrar por ali dentro. Os urros soavam cada vez mais próximo, tentei ligar para alguns gabinetes ao lado mas ninguém atendeu. Entretanto, a onda ululante passou rente à porta e passei a ouvi-la a distanciar-se no lado oposto, até que sumiu. Pouco depois, percebi que alguém empurrava a porta, acelera-se-me o ritmo cardíaco e o calor no corpo, tremem-me as pernas, tremem-me os braços, treme-me tudo, até que quem empurra a porta passa a bater nela com os nós dos dedos e a chamar por mim. Magda, estás aí dentro? Era a   colega que voltava à sala. Quem é esse bípede que anda aí fora aos saltos e a urrar pelo corredor?
É o Vicente, diz-me ela como se dissesse aqui toda a gente sabe quem é o Vicente.
Vicente era, é, filho, de uma ninhada de seis, de um engenheiro geógrafo que trabalhara  para o Instituto no Vale do Douro, de uma família de uns viscondes arruinados do norte nos tempos do Dom Pedro.  Já não me recordo bem do nome completo, que era comprido, mas sei que era Vicente qualquer coisa Vilas Boas Monteverde. O pai geógrafo fez o melhor que sabia pelos filhos, e pelo Vicente meteu uma cunha para ele entrar no Instituto como praticante já que o rapaz não sabia fazer nada de útil na vida. Meteram-no a dar entrada e saída do correio da divisão e a distribui-lo pelos serviços. Um trabalho que até  Vicente fazia em meia hora de manhã e outra meia hora à tarde, e ele, que estava habituadinho ao ar livre, e tinha pouco que fazer, volta e meia hora dizia que ia ao 18, que era a número da porta dos sanitários dos homens, e aproveitava para umas demoradas passeatas pelo corredor. Até que um dia, começou a ensaiar levitações e a urrar para facilitar a prática do exercício. No começo, a coisa deu que falar, o Vicente foi alertado que deveria abster-se de saltos e ruídos no local e dentro das horas de trabalho, chegou a falar-se em despedimento, mas depois, porque o padrinho era de peso, e o Vicente era inofensivo, foi dado como doido e aceite a título definitivo para o serviço. 
Sosseguei. Vim a saber depois que o Vicente não era caso único. A instituição, aquela e outras, da alçada do Estado, era albergue de todos quantos, mais ou menos incapazes, se penduravam no orçamento por não terem mais onde se pendurar mas tinham quem os pendurasse lá.
De vez em quando passava por ele no corredor, lá ia o Vicente, Uh! Uh! Uh!, a exercitar levitações. Diziam, nunca se soube se era verdade, que o Vicente frequentava aulas de ciências transcendentais, que acreditava que um dia iria para o céu, e por que não? por que não?, perguntava ele a quem duvidasse, e, sendo assim, como se dizia, o melhor mesmo era preparar a ascensão na altura própria, com suficiente tempo de antecedência. De orc repugnante o Vicente tornou-se com o passar do tempo, sobretudo aos olhos das mulheres, que viam nele cintilações de vestígios de nobreza antiga, um mascote enorme, terno como um enorme urso de peluche, que lhes apetecia acariciar e levar para casa.
Outra singularidade que dava popularidade ao Vicente era o seu escrupuloso cumprimento no pagamento das dívidas que tinha em toda aquela ala do edifício.
Vivia sozinho, num quarto alugado, quem melhor lhe conhecia os hábitos era a Laurinda, a colega com quem partilhava a sala de entrada e saída de correspondência, uns bons anos mais velha que ele, e não escondiam que eram amigos íntimos. Mensalmente, no dia de pagamento, o Caixa entrava com os envelopes com o dinheiro contado e o recibo anexo, a malta assinava o recibo, conferia a massa e nos próximos dias a vida era uma alegria. A primeira vez que recebi um ordenado, ainda estava a conferir o recibo, entra o Vicente pela porta da nossa sala de modo calmo. Trazia na mão um maço de notas de vinte, colocou ao ralenti, como que a provar que, sem margem para dúvidas, a colocava, uma nota de vinte em cima de cada uma das secretárias dos meus colegas, depois disse obrigado, e saiu. Fiquei intrigada, e ainda mais porque nenhum deles tirou a nota do sítio onde o Vicente a tinha deixado, mas olharam para mim e para a minha incredulidade, como quem diz já vais ver o que vai acontecer. Aconteceu dai a meia hora, se tanto. Entra o Vicente outra vez mansamente, e pede emprestada uma nota de vinte a cada a cada um deles, prometendo pagar no fim do mês. Ninguém disse que sim nem que não, o Vicente recolheu as duas notas de vinte que tinha devolvido pouco antes, e pôs-se a olhar especado para mim. Que é que podia eu fazer, com aquela bisarma ululante a estender-me a mão?  Ainda olhei para os outros, responderam-me com silêncio inexpressivo. Abri o envelope, tirei uma nota de vinte  e estendi-a ao Vicente.
Fica descansada que no fim do mês ele paga. E pagou. Pagou e voltou a levar emprestado no fim de cada mês seguinte.
Ocorreu-me então a dúvida à forma como podia o Vicente ajustar as dívidas ao salário mensal se as dívidas aumentavam quando entrava mais pessoal. Descobri mais tarde que funcionava o salário da amiga dele como volante. Às tantas, declaradamente, o Vicente e a Laurinda tinham dívidas conjuntas.
Até ao dia em que o Vicente não apareceu no escritório e nem a amiga sabia o paradeiro dele. Soube-se pela dona da casa que tinha pago a renda de aluguer do quarto, ainda que há alguns meses não voltasse a pernoitar lá. Passada uma semana, a Laurinda, que se definhava dia para dia, foi à polícia dar conta do desaparecimento do colega e amigo. E ficámos todos à espera.
Um mês depois, feitas as diligências conforme os manuais, incluindo observação dos ares, já que se punha a hipótese dos exercícios de levitação terem dado algum resultado, e dos mares litorais, não fosse o Vicente ter ido experimentar caminhar sobre as águas, a polícia decidiu considerar o Vicente no rol dos desaparecidos, e colocar o processo em suspenso "a aguardar melhor prova". Entretanto, com o acontecimento tinha sido aberta uma vaga nos serviços, sem que a actividade dos serviços tivesse dado pela falta, começaram a chover os empenhos de todos os padrinhos dos Vicentes em fila de espera,  mas o director confrontou-se com uma dificuldade inesperada: o Vicente tinha sido dado como desaparecido, mas poderia eventualmente aparecer de um dia para o outro e reclamar, legitimamente, a reocupação do lugar, invocando uma razão justificável, o rapto, por exemplo, segundo o advogado do Instituto. Não se conformou o director com o parecer do advogado da casa, se havia uma vaga, havia que preenchê-la para não prejudicar a eficiência dos serviços, e obteve autorização para recorrer a um jurisconsulto externo. Tinham entretanto passados três meses, o Vicente continuava desaparecido, e a vaga por preencher. Chegou entretanto o parecer do jurisconsulto e o director com parecer na mão, para ultrapassar  o impedimento por desaparecimento do Vicente emitiu despacho, em cumprimento do disposto no Regulamento, dando público conhecimento "que o praticante Vicente Vilas Boas Monteverde, pertencente ao mapa de pessoal da Divisão de Obras do Instituto, cessou o contrato de trabalho por tempo indeterminado, por motivo de eventual falecimento". Se ele um dia ressuscitar, alegou o director, algum lugar se lhe  há-de arranjar. E, por aquele lado, ficou encerrado o assunto. Mas ficaram por pagar as dívidas do Vicente, outro problema às costas do director.
Não pelo valor que o Vicente tinha ficado a dever a cada um, segundo o que era público não mais que uma nota de vinte, salvo o que ele devia à Laurinda, que ninguém sabia, nem ela, talvez, mas porque o Vicente tinha desaparecido do mapa antes de receber o ordenado, e ninguém estava disposto a doar o dinheiro do ordenado por receber ao Instituto. Recorreu o director de novo aos serviços do jurisconsulto, agora por ser o advogado privativo parte interessada, também ele credor de uma nota de vinte. Na posse de novo parecer do jurisconsulto, e tendo já o director despachado o Vicente para o limbo dos eventualmente mortos, pôde o dinheiro ser levantado e entregue aos credores.
Quanto te devia a ti, Laurinda? A amiga, consumida pelo desaparecimento sem aviso do Vicente, acabou por não querer receber nada, de modo que ficaram as contas saldadas, toda a gente se deu por ressarcida. Desde então, o Vicente passou à história, mas de vez em quando, sempre que a conversa proporciona, ainda vêm para a mesa as extravagâncias do Vicente.

Agora imagina o que é uma pessoa dar de caras, de repente, com alguém que devia ter morrido há uns anos atrás? Que tens feito Vicente que nunca mais ninguém soube nada de ti? Andou meio mundo à tua procura, sabes?
Sabia, sabia, nem ele sabia outra coisa. Quando abandonou o Instituto e a amiga sem dizer quando nem para onde, o Vicente acolheu-se a casa de uma viúva, especialista bem sucedida em tarot, com programa televisivo no canal mais popular, directora na universidade de ciências transcendentais e da fenomenologia paranormal para a terceira idade nos arredores da cidade. Conhecerem-se e amarem-se foi obra de uma complementaridade impressionante: ele solteiro e endividado, ela abonada e viúva, ambos devotados por inteiro, livres de outros compromissos, às teorias e práticas da transcendentalidade. O Vicente dá aulas de levitação, só as teóricas, para as práticas tem como assistente uma filha da viúva, licenciada em motricidade humana. Os alunos pagam uma mensalidade simbólica, o que lhes rende mais é o tarot e a venda de trampolins e outros equipamentos para práticas de levitação em casa.
E ganhas bem? 
Dá para os bifes. E, como não existo, não pago impostos.
Ainda lhe perguntei se alguém já levitou, respondeu-me que não há provas concretas mas de vez em quando há uma baixa na classe. Presume-se que tenham levitado, concluiu sorridente e confiante como nunca o tinha visto antes.
Voltei-lhe as costas e vim por aí fora desenfreada. O velhaco deve ter ficado a dever, segundo as minhas contas, mais de uma nota de mil à colega de sala. E a mim, vê bem, ficou a dever-me quase outro tanto. Tudo quanto era colega mulher condoía-se com a miséria do bicho e, malvado instinto de maternidade que deita por fora quando não tem a quem se dar por dentro, entrava por baixo da mesa com mais que a nota de vinte que ele pagava e levantava todos os meses. Mas quem é que ia declarar naquela altura que tinha andado a fazer concorrência à Laurinda?   

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