Sunday, October 02, 2016

ALGUÉM TERÁ DE CEDER

Caro E.,


Aquele artigo* que nos enviaste há dias foi objecto de alguns comentários no almoço de sexta-feira passada. A parábola, que admitimos ser apócrifa, nenhum dos presentes se recorda de ter ouvido Pereira de Moura citá-la, é poliédrica, sugerindo leituras diferentes. 

Desde logo, conclui-se que, na escala de valores do amigo rico, a amizade está mal posicionada: a continuidade da sua presença no almoço vale menos que dez euros por semana. E o mesmo pode dizer-se da escala do medianamente abonado para quem a amizade vale menos que cinco euros semanais. Foram os operários, por outro lado, pouco avisados nas suas reclamações? Sendo, em princípio, menos habilitados merecem atenuantes. 

Numa abordagem menos restrita, na discussão sobre a equidade fiscal, por exemplo, consegue-se uma observação mais nítida da forma como pode atingir-se a sustentabilidade do equilíbrio nas relações sociais. 
Assuma-se que os impostos arrecadados medem 100 unidades, a despesa pública 120, e o défice uns insustentáveis 20. 
Um governo que herdou esta "pesada herança" propõe-se reequilibrar as contas.
Constata que as classes altas pagam, de impostos, 50, as classes médias, 25, e as classes baixas, 25.
O reequilíbrio exige redução na despesa pública mas não evita  um brutal aumento de 15% nos impostos. Como distribuir a carga adicional?

Não há critérios de equidade fiscal unanimemente aceites.
Mas há princípios geralmente tidos como razoáveis. Por exemplo, a isenção de impostos sobre rendimentos baixos até determinados limites; a progressividade das taxas, etc. 
Mas também há situações de cumprimento das obrigações fiscais geralmente conhecidas: aqueles que trabalham por conta de outrem são compulsivamente cumpridores por retenção dos impostos na fonte; os rendimentos mais elevados, sujeitos a taxas de tributação altas, são mais propensos à evasão fiscal.
Ora a evasão fiscal é homóloga do rico que abandona a mesa de convívio semanal por 10 euros. Ao abandonar a mesa, a carga fiscal fiscal evadida recairá sobre os outros contribuintes. E quanto maior o número dos que abandonam maior é a carga sobre os que ficam. 

Atravessamos um tempo de transição para uma sociedade de emprego escasso. Pela ordem natural da vida, já não iremos sentir as consequências sociológicas brutais do desenvolvimento tecnológico sobre a produtividade e a consequente redução massiva do emprego mas já observamos alguns traços desse caminho desconhecido. 

Há dias, Martin Wolf recordava - vd. aqui - o trilema que se coloca à convivência conjunta do capitalismo com a democracia e a globalização. Podem conviver, afirma Dani Rodrik, dois a dois mas não pacificamente os três em simultâneo. Alguém terá de ceder. 
A acumulação de capital no extremo do centil mais à direita da curva de distribuição de rendimentos é incompatível com uma sociedade pacífica. O estado social é uma imposição não já apenas de solidariedade social mas  da segurança interna das sociedades futuras. 

São os mais deserdados das sociedades ocidentais (EUA, França, UK, etc.) que ameaçam colocar no poder aqueles que lhes prometem encerrar as portas à imigração e garantir-lhes emprego, mas estão equivocados. A nossa aldeia é cada vez mais global, o reerguer das fronteiras alfandegárias e a construção de muros não augura senão a emergência do fantasma da guerra.


Isabel Vaz citou um cenário dos anos 60, há cinquenta anos, portanto. Daqui a 50 anos, provavelmente já não haverá operários, existirão legiões de pessoas que não sei o que farão mas dificilmente concebo que passem sem um almocinho pelo menos de vez em quando. 
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"Doutores e Engenheiros", de Isabel Vaz, publicado na  revista Visão

Resumidamente, conta a parábola que sete amigos, antigos colegas na escola primária, se reuniam às quintas-feiras para almoçar. 
Dos sete, um tinha acumulado fortuna, outro era da classe média, os restantes cinco eram operários.
Metade da conta, sempre 100 euros, era paga pelo mais abonado, o quadro médio pagava um quarto, os operários pagavam o outro quarto. Assim, o rico pagava 50, o médio 25, e a cada um dos outros cinco, 5.
Pressionado pela concorrência, o restaurante reduziu os preços em 20%, e a factura dos sete amigos para 80 euros.
O rico pagou 40, o médio 20, e cada um dos cinco, 4 . 
Protestaram os operários que o rico tivesse beneficiado de uma redução de 10 euros, o médio de 5, e eles, operários, apenas 1 euro cada. 
Abespinhou-se o rico com esta contestação dos amigos operários, e não voltou mais aos almoços.
O médio fez o mesmo, no fim de contas os operários se quisessem continuar com os almoços teriam de pagar cerca de 11 euros cada um. 
Acabaram-se os almoços e o restaurante fechou. 

"E foi então que os proletários perceberam que aqueles que acumulam dinheiro, ou poupança, ou riqueza, também são úteis para ajudar a pagar as contas"

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