Thursday, December 24, 2015

O COMPROMISSO

24 de Dezembro de 1948



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- Mãe ... ?
- Diz. 
- Falta muito tempo para Ele chegar?
- Falta, falta. Devias ir para a cama.
- A cama está fria, aqui está mais quentinho, não está?
-  Já tens na cama a botija de água quente à tua espera.
- Só mais um bocadito aqui, depois vou.
...
...
- Mãe, não era melhor tirar as linguiças da chaminé?
- Que disparate! Tirar  para quê?
- Para Ele descer... assim ele não desce porque vê a entrada tapada com as linguiças...
- Hum! Passa bem, nunca se atrapalhou com as linguiças, também não se vai atrapalhar esta noite.
- Vai enfarruscar-se todo ...
- Não enfarrusca nada. Está habituado ...
... 
...
- (aaaaaaaaaan!)
- Não páras de abrir a boca com sono. Vai deitar-ve, vai ...
- Não tenho sono nenhum... Mãe, achas que Ele vem?
- Vem, claro que vem. Vem sempre, todos os anos.
- Vou ficar aqui acordado toda a noite, à espera que Ele chegue.
- Ah!, assim não sei se aparece. Ele gosta de fazer surpresa. Quando chega lá acima, espreita se há alguém cá em baixo. Se vê que há gente não deixa  prenda e segue viagem.
- E se a gente se esconde para que Ele não nos veja?
- Não sei. Ninguém arrisca esconder-se. Ele vê tudo.
...
...
- Mãe, ele é pequeno ou grande?
- Ah! não sei, nunca o vi. Ele não se deixa ver.
- Então como é que sabes que ele vem?
- Porque deixa aqui as prendas.
- Só por isso?
- É. Só por isso. Não chega? Vai deitar-te, se não te deitas ele não desce.
...
...
- Mãe, já sei que prenda ele me traz.
- Já sabes? Então o que é?
- É outro borreguinho de barro ... 
- Pode não ser.
- Então o que pode ser?
- Como é que posso saber? Vai deitar-te, e de manhã sabes.
...
...
- Mãe, eu queria que Ele me desse outra coisa...
- Outra coisa? Que coisa?
- Um aeroplano!
- Um aeroplano? Que ideia é essa? Não tens falado noutra coisa nestes dias. Agora os aeroplanos já não servem para nada. Para que queres tu um aeroplano se a guerra acabou?
- No ano passado Ele deu um aeroplano ao Álvaro...
- O pai do Álvaro é rico. 
-  ... E a mim só me deu um borreguinho ...
- E deu-te umas calças... e umas meias ... 
- Quem deu as calças e as meias foste tu.
- Eu? 
- E calças e meias não são prendas ...
- Então o que são?
- São coisas precisas. Não são para brincar.
- Lá isso é verdade. Mas eu acho melhor que te vás deitar. Se não te deitas, nem um borreguinho desce pela chaminé ...
...
...
- Mãe, por que é que Ele já deu um aeroplano ao Álvaro e a mim só me dá  borreguinhos de barro e coisas assim?
- Porque o pai dele é rico, deve ser por isso, não sei.
- Não é justo.
- O que é que não é justo?
- Se o pai do Álvaro é rico, não precisava que Ele lhe desse o aeroplano....
- E então?
- ... dava-me o aeroplano a mim, já que tu não podes comprar.
- Estás a ser invejoso. Não é bonito. Isso só mostra que estás com sono. Vai deitar-te, vai.
...
...
- Mãe, o que é ser invejoso?
- É querer tudo igual ao que os outros têm.
- Mas eu não quero ter tudo, mãe. Só queria ter um aeroplano como o do Álvaro.
- Então tens inveja do Álvaro...
- Não tenho, não. Não me importo que ele tenha um aeroplano. Só gostava de também ter um.
- Oh!!! Também eu gostava de ter muita coisa e não tenho ...
- Então também és invejosa, és?
- Eu??? Coitada de mim ... Nunca invejei nada de ninguém.
- Eu também não...
- Tu??? 
- Eu também não invejo nada de ninguém. Mas gostava mais que ele me desse um aeroplano que um borreguinho. 
- Agora já estás a dizer sempre o mesmo. O que tu tens é sono. Vai deitar-te ...
...
...
- Mãe, já tenho três borreguinhos, o menino Jesus, Nossa Senhora, o São José, a burrinha, ...
- ... o pastor ...
- ... o pastor ... Já tenho tudo, não tenho? Não preciso doutro borreguinho, pois não?
- Não sei. Tu é que não sais dessa do borreguinho ...
- Então talvez este ano receba o aeroplano...
- Não sei. Mas aeroplano não é coisa que apareça no presépio.
- Porquê?
- Ora porquê ... Tens cada uma. Naquele tempo não havia aeroplanos ou havia?
- Mas agora há, não há? 
- Há, há, e tu deves é ir deitar-te ...
...
...
- Mãe,...
- Ora a minha vida !... Esta noite não dormes, não?
- E tu mãe, não vais dormir?
- Vou, e é para já. Ficas aqui?
- Fico mais um bocadito ...
- Isso é que era bom. Vais para a cama e não há mais conversa.
- Mãe, ...
- Já te disse, não há mais conversa. Vamos deitar, vamos ...
- Mãe, eu queria dizer só mais uma coisa ...
- Que coisa?
- Mãe, eu parti o aeroplano do Álvaro ...
- Partiste o quê? Tu partiste o aeroplano do Álvaro???!!! Como é que tu partiste o aeroplano do Álvaro???
- Foi sem querer ...
- Já percebi: ele deu-te o aeroplano para a mão, tu lançaste o aeroplano ao ar, e era uma vez um aeroplano, foi isso?
- Não... Foi diferente ...
- Foi diferente? Como é que foi diferente?
- O Álvaro levava o avião na saca da escola ...
- Hum!!! E depois?
- Depois eu não sabia que ele levava o aeroplano lá dentro ...
- ... E depois?...
- Ele bateu-me e fugiu ...
- E tu foste atrás dele ...
- ...e dei-lhe um chuto na saca ... 
- ... e partiste o aeroplano...
- Foi isso mesmo...
- E agora queres um aeroplano novo para dar ao Álvaro ...
- Pois, porque se não ele diz que o pai dele vai fazer queixa ao meu pai ...
- E se o teu pai sabe ...
- Pois ...
- Bem ...Vamos para a cama e amanhã tratamos disso.
...
...
...
...
- Tu aqui? O que é que fazes aqui?
- Não consigo dormir ... voltei para aqui para esperar por Ele ...
- ... E para quê se ele nem sabe que partiste o aeroplano?  
- Sabe, sabe. Tu disseste que Ele sabe tudo.
- Sabe tudo mas precisa de tempo. Quando é que partiste o aeroplano?
- Foi na outra semana passada ... Ele teve tempo para me comprar o aeroplano, não teve?
- Como é que eu posso saber? Amanhã, se não tiveres o aeroplano, vou falar com o pai do Álvaro...
- Não, não, não ...
- Porque não?
- O pai do Álvaro não sabe e o Álvaro não quer que ele saiba...
- Mas porque é que não há-de saber? Vocês andavam a brincar, tu partiste o aeroplano sem querer ... não foi?
- Foi, mas eu prometi arranjar o aeroplano ... quando Ele descer vou pedir-lhe muito. 
- Enquanto aqui estiveres ele não desce, já te disse.
- Eu fico aqui escondido, só apareço quando Ele cá estiver mesmo em baixo
- És tonto... Ele sabe que estás aqui, escondido ou não dá no mesmo. E enquanto aqui estiveres não desce.
- Eu sei que ele desce ... 
Sabes mais que eu. 
- Pois sei.
- Ainda estou para ver esse milagre ...
- Então espera aqui comigo.
...
...
...
- Mãe, ...
- Han!?
- Ele já desceu ..
- Ele, quê?
- Desceu enquanto tu e eu adormecemos aqui ...
- Estás a sonhar?
- Estive a sonhar e, quando acordei, vi que ele deixou esta caixa ao teu lado!, e nesta caixa, este aeroplano!
- Hum! Parece milagre ...
- Foi só quase um milagre... 
  ... Milagre mesmo era Ele ter deixado dois aeroplanos!!!....
 ... não era?...

6 comments:

Pinho Cardão said...

Fabuloso conto de Natal, caro Rui.
Autêntico, uma maravilha de realismo.
Um grande abraço de Boas Festas e de um Feliz Natal

Rui Fonseca said...



É grande bondade tua, António.
Mas agradeço-te muito.

Feliz Natal, Óptimo 2016 (e seguintes)

Um abraço

Rui

Bartolomeu said...

É realmente um belo conto. De Natal, mas que poderia ser contado todos os dias.
Boas Festas, caro Rui Fonseca!

Rui Fonseca said...


Festas Felizes,
Boas notícias, também para si, Bartolomeu.

IsabelPS said...

Muito bom.

Boas Festas!

Rui Fonseca said...

Obrigado, Isabel PS
Volte sempre.
Boas Festas e Boas Notícias!